Regresso
obsessivamente à leitura dum passo de André Breton. Há anos que a ele regresso,
sem perceber porquê, pois o seu sentido há muito que se me afigura claro. São
os dois períodos finais do derradeiro texto programático do surrealismo, “Du
surréalisme en ses oeuvres vives”, texto tardio, dado a lume em 1953 e que pode
ser encarado como o derradeiro sinal programático do movimento – e parece que
assim o desejou o autor ao publicá-lo na edição final dos manifestos. Trata-se de momento de monta, em contraponto com os
iniciais do surrealismo, que apresenta um evidente cunho de balanço. Foi
escrito e dado a lume quando o século avançara já o suficiente para se perceber
o que ao longo de décadas, por dentro, no domínio da escrita e da pintura, o
surrealismo fizera e o que fora dele, nos mesmos domínios, acontecera.
Significativo
deste ponto de vista, e sempre em desafio, é o paralelo próximo, todavia mais
pela diferença do que pela afinidade, que Breton faz entre o monólogo interior
joyceano, que disparou em direcções várias e alastrou como mancha de propagação
rápida por muitos sectores da literatura do século XX, e a escrita automática
surrealista. O monólogo interior recorreu a associações verbais livres mas
quedou-se porém pela zona mais à superfície da linguagem, aquela que funciona
como um teclado ou um puzzle de letras. Daí a arbitrariedade do jogo ou a
excessiva impressão de imitação que
dele emana; mais do que a realidade do objecto ele é um segundo objecto – por
força menos autêntico do que o primeiro. Ao invés o surrealismo fez um caminho
diferente. Recorreu também a associações verbais livres mas não se precipitou a
dar-lhes curso escrito de modo a evitar os escolhos de superfície e os jogos
arbitrários da clave linguística. Ensaiou antes perceber o funcionamento
interno do pensamento para aí captar o nó em que se deslaçam as associações.
Procurou pois um instrumento adequado para sondar o continente interior e
atingiu, em estados de alteração da consciência, próximos do sonho, ou do
desdobramento do Eu, esse desdobramento que permite contemplar o corpo e dizer aquele é o meu corpo, a fundura
necessária para contemplar em êxtase o ponto do espírito onde têm origem as
associações livres.
É o que Breton
com a lucidez e a experiência de quem tinha atrás de si cerca de quarenta anos
de prática chama o deitar mão à
matéria-prima da linguagem verbal e pictórica. Identificado o local do
espírito onde esta matéria existia em estado virgem, cartografado o seu
território, foi fácil ao surrealismo retirar desse veio importantes parcelas de
precioso minério. Essas pepitas chegaram à camada da superfície e mesmo ao
exterior através da linguagem verbal e das imagens pictóricas – e isto não
tanto por tradução mas por contacto directo. Que quero dizer com isto? Que a matéria
mesma que a sonda indagava era de natureza acústica ou de ordem óptica. As
imagens sonoras e visuais são a realidade do espírito; fora desta realidade o
espírito humano não existe. A duas linguagens, a pictórica e a verbal, não são
assim sistemas codificados em paralelo e que sirvam em segunda mão para
traduzir um primeiro objecto; ambos os traços fazem parte, ou são, a amálgama
do espírito.
Fosse como
fosse, essas pepitas interiores restituídas ao exterior faziam a vez de corpos
estranhos. Não podia ser doutro modo. Esse ponto do espírito alto e profundo a
que o surrealismo subira, ou descera, é indiferente, era o mesmo onde irrompia
o desejo em estado selvagem, sem interferência da primeira consciência, o local
onde a vontade de incesto ou duma sexualidade sem tabus ditava a sua lei sem
lei. Mas esse ponto é vizinho dum outro, muito activo e laborioso, verdadeira
fábrica de sonhos, se é que não coincide por inteiro com ele, onde se elabora o
bailado dos símbolos com que a segunda consciência expede para a primeira os
seus conteúdos. É também nesse laboratório que se combinam os mitos com que as
civilizações arcaicas narram a sua origem, quer dizer, a passagem dum tempo
homogéneo, sem interditos, pré-civilizacional, ao momento da formação do Eu
civilizacional. O mito guarda desse modo no revestimento narrativo com que se
apresenta uma memória viva do lugar de origem, da terra dos arquétipos ou das
estrelas, ao mesmo tempo que apresenta o momento da sua passagem para um
segundo sistema, o do paraíso perdido, o de Caim e Abel, o da entrada na
História, em que o passado e a sua memória se apagam. Ele, o mito, desempenha
na psique colectiva o papel que o símbolo exerce em termos de indivíduo; o seu
papel, tal como acontece com o símbolo, é guardar aquilo que doutro modo já
está perdido.
Foi a esse vaso
comunicante entre as duas consciências, a essa escada de acesso ao interior do
espírito, que Breton chamou automatismo.
A sua importância é imensa e não pode ser avaliada apenas do ponto de vista
duma ciência que se destina a pesar a qualidade do Belo, a estética, ainda que
deste ponto de vista dificilmente seja possível ficar indiferente a essa beleza
selvagem e estranha, em estado puro e bruto, uma beleza primitiva, por
trabalhar, melhor, por civilizar à força de plaina e lima, beleza que Breton
classificou de convulsiva e Dalí de comestível, e que resulta do encontro
com essa região do espírito, já na segunda consciência, onde se formam os
símbolos e os mitos. É o lugar maravilhoso do espírito, a activa oficina onde
todas as noites se fabricam os sonhos. Muitos dos melhores achados surrealistas
devem-se do ponto de vista estético a essa prática de salto ou a esse convívio
directo e procurado com o lugar que é a fonte de qualquer representação
simbólica, a fenda onde se pode colar a boca e beber o jorro original de toda a
significação.
Para me ater
apenas a dois exemplos que tenho de cabeça, pois escrevo a correr, e não sair
do campo verbal, uma expressão como le
revolver à cheveux blancs, que Breton usou como título dum livro seu, e que
tão pertinente se mostra mesmo do ponto de vista estético, só se justifica como
minério sondado em alta fundura, a muitas léguas de distância da lógica de
superfície, mesmo com travo a Joyce. O mesmo digo para aquela espantosa expressão
de Cesariny que parece ser adiantada de olhos fechados, semi-adormecido, ao
acordar, em estado de não saber o que diz, e que ele tomou também como título
de obra sua, primavera autónoma das
estradas. O que nestas descobertas está em jogo é uma operação de
extraordinária envergadura que não respeita apenas ao teclado arbitrário da
linguagem verbal; toca-se com elas o ponto onde a matéria primeira da
significação, o estado virgem das representações, irrompe na alma humana. É o
ponto sem costura que existe dentro de cada homem, espécie de ônfalo ou umbigo
interior que liga a alma humana ao cosmos infinito, e no qual é possível
encontrar aquele princípio onde, nas
palavras de João, reside o verbo original e criador.
É vã qualquer
tentativa de imitar este empreendimento
de grande pujança – Breton aproximou-o nos prolegómenos de 1942 da procura do
Tosão de Oiro na Grécia arcaica – apenas por um trabalho de superfície. Mais:
qualquer contrafacção que dele se faça arrisca-se a resultado desastroso.
Achados como os de Breton e os de Cesariny não são meros arranhões linguísticos
à flor da pele da linguagem; são jogos verbais que se amalgamam com o que de
mais íntimo e inacessível há no espírito humano e a que só se acede por um
processo de demorada pesquisa. Não é possível pôr mão nessa matéria primeira
sem primeiro tornar consciente o que se perdeu – e isto assim é porque o que se
perdeu se confunde em parte com a matéria-prima verbal. Tentar imitar à
superfície uma frase como aquela que Cesariny foi buscar por um aturado e
persistente trabalho de pesquisa interior a estas quase inacessíveis regiões do
espírito, as mesmas onde tomam forma e lugar as imagens dos sonhos, é obter
como resultado um exercício escolar inoperante como o de António Pedro em 1942
– o mesmo digo da “ode ao surrealismo por conta alheia” de Jorge de Sena – e
que não põe nem tira ao que deveras vai ao surrealismo. Um pechisbeque
levezinho, caçado no exterior, ainda que brilhante, não deve ser confundido com
o maravilhoso e ofuscante minério aurífero, o peredam raríssimo de Daumal, o cristal curvo, que o surrealismo se
propôs trazer à luz do dia dos meandros mais recônditos do espírito humano,
restituindo aos homens nada menos do que a palavra perdida.
Volto agora ao
passo da minha leitura a que sempre regresso no texto de 1953. Que diz ele? O
seguinte: Para isto [para conhecer o
que o rodeia], o grande meio que o homem
tem à disposição é a intuição poética.
Liberta enfim no surrealismo, deseja-se esta não só assimiladora de todas as
formas conhecidas mas atrevidamente criadora de novas formas – quer dizer, em
posição de abraçar todas as estruturas do mundo, manifestado ou não. Só ela nos
mune do fio que reconduz ao caminho da Gnose, enquanto conhecimento da
Realidade Supra-sensível, “invisivelmente visível num eterno mistério”.
Para ser sincero
o que me surpreende no passo é o último período, que é o fecho também dos
textos programáticos do surrealismo. Chave de oiro? É possível que sim.
Revelação daquilo que Breton tanto anos escondera? Também sim. E que escondeu
ele? Diga-se antes de mais: nunca como nestas poucas palavras, nestas duas
únicas linhas, ele abriu tanto o jogo, mostrando de forma explícita o que lhe
interessava. Desde os primeiros anos da aventura surrealista, pelas ligações
que logo se urdiram entre Nerval, o de Les
Illuminés, e o surrealismo, que se sabiam as afinidades entre o movimento e
os que se haviam devotado no século anterior ao ocultismo. Mais tarde, nas
páginas dedicadas a Flamel, percebeu-se a identidade de propósitos entre a
actividade do surrealismo para determinar aquele ponto do espírito onde todas
as contradições deixam de ser sentidas como oposição, e que não é outro do que
aquele onde se fabricam as imagens dos sonhos, no centro do qual jorra da fonte
original de toda a significação a palavra perdida, e a prática dos que haviam
feito da pedra filosofal a meta das suas vidas.
Por aqui se
quedaram as coisas longo tempo, sem novidades de assinalar, até se chegar ao
ano em que Breton escreveu as linhas do derradeiro texto programático do
surrealismo, onde o jogo muda de patamar. Que eu dê nota é dos raros momentos
em que Breton fala da Gnose, ainda por cima fazendo dela nada menos do que a
meta da própria actividade poética como o surrealismo a entendia. Isto quer
dizer esta coisa espantosa: a actividade poética, tal como a concebia o
surrealismo, não tinha por fim a arte mas antes a Gnose. Não vejo na obra do
grande pensador qualquer outro lugar em que ele confesse desta forma a sua
adesão à Gnose (deixe-se passar a maiúscula, que não é minha mas do autor).
Será isso que me atrai no passo, obrigando-me a regressar a ele vezes sem
conta?
Paga pois a pena
indagar: que é a Gnose? A palavra surgiu já nas minhas notas por duas vezes. A
primeira a propósito de Seth, o inconformado filho de Adão e Eva, que não se
quis adaptar às novas condições de existência, as do plano da História, o mesmo
é dizer, as da formação dos interditos do Eu social, por contraste com a
liberdade anterior do Eu arcano a viver no Éden. Seth alimentou e desenvolveu
assim na origem os materiais mnésicos que permitiram depois, na evolução da
humanidade, nunca deixar cair no olvido o glorioso Jardim original. Se a
questão tivesse apenas ficado ao cuidado do primeiro casal e dos irmãos de Seth
o recalcamento do estádio original, seguido em toda a linha pelo esquecimento
dele, teria sido inevitável. As religiões reveladas e a Lei implacável que
impõe invadiriam todos os recantos da consciência; sobraria apenas, no lugar
dos conteúdos anteriores, um imenso buraco negro e vazio, sobre o qual reinaria
um silêncio gelado de pavor e morte e sobre o qual nada se poderia dizer.
O absurdo em que
a existência para tantos se tornou depois da perda do primeiro corpo, aquele
que não conhecia a morte, far-se-ia ainda mais fundo e premente, não deixando
no horizonte qualquer hipótese de saída do cárcere. Se é possível conceber um
inferno, ele é o resultado da operação de subtracção entre o Eu social tal como
existe hoje e a herança que Seth deixou à humanidade e a toda a natureza
afectada pela expulsão do Éden. Essa herança é um bálsamo, uma permanente ponte
entre os mundos, que alimenta a todo o momento a esperança da natureza
traumatizada poder transitar, e até experienciar o transe, ao momento glorioso
da criação – e glorioso porque esse é ponto onde o transitório toca o eterno, o
visível o invisível e o criado o incriado. Sem essa herança, só existe o
“castigo” da expulsão, o trauma da dor, o Eu histórico sem rasto da sua sombra
astral. O Eu físico sem nota de sombra é como queria Chamisso a condição de
qualquer negócio com o Anjo das Trevas. Negociar com este a sombra é
entregar-lhe o corpo astral e ficar reduzido ao reduto fechado do Eu histórico.
Concebe o leitor inferno mais pavoroso? É difícil. Por sua vez inutilizar a oficina
dos sonhos que põe a natureza ferida em contacto com a palavra perdida é o
único alívio do princípio negativo. Cada oficina desmantelada é mais uma sombra no bolso, mais uma alma desfeita
e inutilizada, mais um corpo reduzido só à consciência da sua dimensão
histórica e material.
Que traços
mnésicos foram esses que salvaram do recalcamento o Eu original? Os da Gnose,
enquanto conjunto de representações originais de significação óptica e verbal;
foi por via dessas representações que os conteúdos do Eu arcaico puderam com
relativo à-vontade aflorar à nova camada do Eu, resultado da expulsão do
Paraíso e da entrada forçada na História. A pedra filosofal é um desses traços
mnésicos poderosíssimos pelos quais os elementos em vias de se perderem puderam
ainda ser incorporados na nova sedimentação do Eu. Esses traços representam
assim um vaso comunicante entre o ponto original do espírito, onde reside o
Paraíso perdido, com o seu verbo também perdido, e o círculo excêntrico, à
deriva, cada vez mais longe do centro, em que os filhos de Adão e Caim hoje se
esgotam.
A segunda vez
que toquei na Gnose foi a propósito do poema “Miséria” de Teixeira de Pascoaes.
Pareceu-me claro que era possível associar a abjecção material do poema, e por
ela a de parte importante daquilo que se chama abjeccionismo, com as narrativas
míticas do dualismo gnóstico. Tomei a palavra enquanto sinónimo de
conhecimento, aquele que permite a passagem do plano da abjecção para o do
supra-real e que está pela sua natureza nas vizinhanças daquela operação
interior que deita a sonda pelo espaço estelar psíquico à procura do ponto sem
costura onde se encontra na porta de entrada do Paraíso perdido a oficina dos
sonhos.
De qualquer
modo, Breton no curto passo a que regularmente regresso, e com uma capacidade
de síntese notável para duas linhas, que sempre me toca, apresenta uma
definição de Gnose. Diz ele que a Gnose
é o conhecimento da Realidade
Supra-sensível. Nada disto surpreende, a não ser talvez a substituição do
supra-real por uma nova expressão, muito mais antiga, de raiz platónica, e que
também pouca ou mesmo nenhuma fortuna tivera em textos anteriores, a realidade supra-sensível. Esta, sendo
aquela de que toda a Gnose fala, o mesmo é dizer, aquela realidade anterior à
queda da argila original no mundo sensível, é também aqui o supra-real que
Breton toda a vida procurou. Resta
aquele termo de frase, que aparece entre comas, por ser decerto uma citação,
que não sei donde vem, “invisivelmente
visível num eterno mistério”, e que indica porventura que essa realidade
que importa captar, esse ponto miraculoso onde se toca materialmente o corpo
astral, é invisível aos olhos do corpo, mas doutro modo se pode ver, não perdendo nunca como um céu
estrelado a sua infinita capacidade de sedução. E aqui me pergunto se não é
este mesmo céu estrelado que a última expressão de Breton em mim evoca que
perpetuamente me atrai. Se assim é, debruço-me sobre estas palavras como se
nelas visse cintilar as estrelas do fogo azul do céu. Lê-las é subir ao
derradeiro patamar dum zigurat; relê-las é ter diante de mim a noite infinita e
por cima aquele ponto miraculoso em que o invisível se faz visível, em que o
amado dá ao amante o amor, em que o criado toca o por criar. É então que as
palavras que Daumal escreveu sobre o altíssimo pico do monte análogo se me
fazem inteligíveis: Lá em cima, em pleno
fogo do céu onde tudo escalda, só subsiste a perpétua incandescência.
Posso encerrar
aqui esta nota. O passo de Breton está esclarecido; percebo agora porque
regresso a estas palavras. Não tenho sequer ilusões: a elas regressarei sempre.
Trata-se duma janela aberta sobre o céu das ideias; isso chega para entender o
motivo que me move e moverá sempre para ela com sôfrega e renovada curiosidade.
Quero porém
juntar duas sequências. A primeira relativa à visão cosmogónica de Ibn-Arabi.
Para este pensador andaluz a levedura de argila que serviu no princípio para
criar o primeiro Adão serviu também ao Criador para criar para a sua alma um
universo paralelo, chamado a Terra da Realidade Verdadeira. A criação deste
universo em correspondência com a alma do primeiro homem fez que na criação
posterior, mesmo desapossada já dos seus poderes primeiros, cada alma tivesse
na Terra da Realidade Verdadeira um universo correspondente, intocado esse no
seu primitivo esplendor. Cada elemento da natureza tem a possibilidade de
encontrar e em êxtase contemplar este daemon de si próprio, este real absoluto da sua vida; basta para
isso aprender a conhecer a sua alma, pois tocará nela num ponto onde se inicia
o espaço desta outra Terra. Como não ver no automatismo
que Breton advogou como experiência essencial para o homem criador o fio
condutor que cada um de nós tem para tocar e encontrar este outro plano da
nossa vida? E como não ver nas palavras de 1953 relativas à Gnose a necessidade
de entender este homem criador não
como aquele que se entrega à arte ou à literatura, comércio exterior, muito
distractivo, mas como aquele que tece em silêncio e em recato, dentro de si,
com a paciência e a habilidade das grandes tecedeiras, os trilhos que o põe na
senda do plano que o grande visionário andaluz chamou Terra da Realidade
Verdadeira? Essa que Breton não se acanhou de designar como Realidade Supra-Sensível.
A segunda para
acautelar o seguinte: quando se fala a propósito de surrealismo de ciências
ocultas, de pedra filosofal ou de Gnose nenhuma destas realidades é para ser
tomada como fumo sem fogo. Quero
dizer, nenhum desses segmentos serve para dar ao surrealismo um adorno de
qualquer espécie, nada neles existe para encobrir um qualquer vazio de
projecto. O facto de André Breton em 1953, o ano da morte de António Maria
Lisboa, coar o supra-real do surrealismo como a realidade supra-sensível da
gnose platónica não se deve a qualquer impasse da aventura surrealista. Esses
segmentos não são areia fina para atirar aos olhos do incauto e desse modo
esconder a frivolidade dum movimento que já então passara os trinta anos. Ao
invés o surrealismo em 1924, ou mesmo em 1930, é muito mais bisonho, está muito
mais longe do essencial, do que o de 1953. Entende-se. Breton tivera nesse
entretanto que durou três décadas a possibilidade de cartografar o espaço
interior, estabelecendo trilhos seguros de acesso ao surreal. O registo do
supra-sensível, fazendo da palavra poética o fio condutor da alma para a fonte
do verbo primordial, esclareceu de vez a aventura surrealista, dando-lhe uma
consistência e uma solidez que doutro modo, distraída do essencial, que se
confunde com a matéria-prima do verbal, podia tremer nos fundamentos mesmos com
que se apresentava.
A deriva
política do surrealismo ao serviço da revolução social assinala um espaço
intervalar que obrigou o movimento a marcar passo naquilo que mais importava,
trocando por momentos a sua actividade no interior do espírito humano pelas
lutas no seu exterior. Tome-se por aceitável este momento de paragem; aceite-se
até que alguma coisa de exaltante houve nisso e que Breton nunca perdeu o pé
nesse tremedal cheio de minas e armadilhas; nunca porém se veja nesse segmento
o momento crucial da aventura dum movimento que nasceu para fazer a sua própria
revolução e não para servir a dos outros, muito menos quando estas eram torpes
e criminosas, como a do estalinismo, ou todas as outras que derivavam do
leninismo, e nem sequer estavam dispostas a encarar a dimensão interior da
natureza, reduzindo o homem, com o desastroso resultado que hoje se sabe, e
basta deitar os olhos para a China, anos e anos de retrocesso na libertação do
plano terrestre, a um Eu social, um Eu histórico ainda mais garrotado do que
aquele que chegara ao cosmopolitismo do século XX ocidental depois de sete mil
anos de História e de continuados tabus que bastaram para sufocar a vida
interior e já haviam feito da espécie humana, mesmo sem leninismo e derivados,
uma espécie amputada e aleijada no meio duma natureza muito mais consciente e
autêntica. Daí o inexaurível crédito do passo platónico de 1953.
*****
Capítulo
integrante do livro Notas para a
compreensão do Surrealismo em Portugal, gentilmente cedido pelo autor. Para
conhecer melhor vida e obra de António Cândido Franco, visite: http://literaturaliteraturaliteratura.blogspot.com.br/2014/02/conhecer-antonio-candido-franco-vida-e.html. Página ilustrada com fotografias de Teresa Sá Couto.
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