quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Um Passo Gnóstico de André Breton


Regresso obsessivamente à leitura dum passo de André Breton. Há anos que a ele regresso, sem perceber porquê, pois o seu sentido há muito que se me afigura claro. São os dois períodos finais do derradeiro texto programático do surrealismo, “Du surréalisme en ses oeuvres vives”, texto tardio, dado a lume em 1953 e que pode ser encarado como o derradeiro sinal programático do movimento – e parece que assim o desejou o autor ao publicá-lo na edição final dos manifestos. Trata-se de momento de monta, em contraponto com os iniciais do surrealismo, que apresenta um evidente cunho de balanço. Foi escrito e dado a lume quando o século avançara já o suficiente para se perceber o que ao longo de décadas, por dentro, no domínio da escrita e da pintura, o surrealismo fizera e o que fora dele, nos mesmos domínios, acontecera.
Significativo deste ponto de vista, e sempre em desafio, é o paralelo próximo, todavia mais pela diferença do que pela afinidade, que Breton faz entre o monólogo interior joyceano, que disparou em direcções várias e alastrou como mancha de propagação rápida por muitos sectores da literatura do século XX, e a escrita automática surrealista. O monólogo interior recorreu a associações verbais livres mas quedou-se porém pela zona mais à superfície da linguagem, aquela que funciona como um teclado ou um puzzle de letras. Daí a arbitrariedade do jogo ou a excessiva impressão de imitação que dele emana; mais do que a realidade do objecto ele é um segundo objecto – por força menos autêntico do que o primeiro. Ao invés o surrealismo fez um caminho diferente. Recorreu também a associações verbais livres mas não se precipitou a dar-lhes curso escrito de modo a evitar os escolhos de superfície e os jogos arbitrários da clave linguística. Ensaiou antes perceber o funcionamento interno do pensamento para aí captar o nó em que se deslaçam as associações. Procurou pois um instrumento adequado para sondar o continente interior e atingiu, em estados de alteração da consciência, próximos do sonho, ou do desdobramento do Eu, esse desdobramento que permite contemplar o corpo e dizer aquele é o meu corpo, a fundura necessária para contemplar em êxtase o ponto do espírito onde têm origem as associações livres.
É o que Breton com a lucidez e a experiência de quem tinha atrás de si cerca de quarenta anos de prática chama o deitar mão à matéria-prima da linguagem verbal e pictórica. Identificado o local do espírito onde esta matéria existia em estado virgem, cartografado o seu território, foi fácil ao surrealismo retirar desse veio importantes parcelas de precioso minério. Essas pepitas chegaram à camada da superfície e mesmo ao exterior através da linguagem verbal e das imagens pictóricas – e isto não tanto por tradução mas por contacto directo. Que quero dizer com isto? Que a matéria mesma que a sonda indagava era de natureza acústica ou de ordem óptica. As imagens sonoras e visuais são a realidade do espírito; fora desta realidade o espírito humano não existe. A duas linguagens, a pictórica e a verbal, não são assim sistemas codificados em paralelo e que sirvam em segunda mão para traduzir um primeiro objecto; ambos os traços fazem parte, ou são, a amálgama do espírito.
Fosse como fosse, essas pepitas interiores restituídas ao exterior faziam a vez de corpos estranhos. Não podia ser doutro modo. Esse ponto do espírito alto e profundo a que o surrealismo subira, ou descera, é indiferente, era o mesmo onde irrompia o desejo em estado selvagem, sem interferência da primeira consciência, o local onde a vontade de incesto ou duma sexualidade sem tabus ditava a sua lei sem lei. Mas esse ponto é vizinho dum outro, muito activo e laborioso, verdadeira fábrica de sonhos, se é que não coincide por inteiro com ele, onde se elabora o bailado dos símbolos com que a segunda consciência expede para a primeira os seus conteúdos. É também nesse laboratório que se combinam os mitos com que as civilizações arcaicas narram a sua origem, quer dizer, a passagem dum tempo homogéneo, sem interditos, pré-civilizacional, ao momento da formação do Eu civilizacional. O mito guarda desse modo no revestimento narrativo com que se apresenta uma memória viva do lugar de origem, da terra dos arquétipos ou das estrelas, ao mesmo tempo que apresenta o momento da sua passagem para um segundo sistema, o do paraíso perdido, o de Caim e Abel, o da entrada na História, em que o passado e a sua memória se apagam. Ele, o mito, desempenha na psique colectiva o papel que o símbolo exerce em termos de indivíduo; o seu papel, tal como acontece com o símbolo, é guardar aquilo que doutro modo já está perdido.
Foi a esse vaso comunicante entre as duas consciências, a essa escada de acesso ao interior do espírito, que Breton chamou automatismo. A sua importância é imensa e não pode ser avaliada apenas do ponto de vista duma ciência que se destina a pesar a qualidade do Belo, a estética, ainda que deste ponto de vista dificilmente seja possível ficar indiferente a essa beleza selvagem e estranha, em estado puro e bruto, uma beleza primitiva, por trabalhar, melhor, por civilizar à força de plaina e lima, beleza que Breton classificou de convulsiva e Dalí de comestível, e que resulta do encontro com essa região do espírito, já na segunda consciência, onde se formam os símbolos e os mitos. É o lugar maravilhoso do espírito, a activa oficina onde todas as noites se fabricam os sonhos. Muitos dos melhores achados surrealistas devem-se do ponto de vista estético a essa prática de salto ou a esse convívio directo e procurado com o lugar que é a fonte de qualquer representação simbólica, a fenda onde se pode colar a boca e beber o jorro original de toda a significação.
Para me ater apenas a dois exemplos que tenho de cabeça, pois escrevo a correr, e não sair do campo verbal, uma expressão como le revolver à cheveux blancs, que Breton usou como título dum livro seu, e que tão pertinente se mostra mesmo do ponto de vista estético, só se justifica como minério sondado em alta fundura, a muitas léguas de distância da lógica de superfície, mesmo com travo a Joyce. O mesmo digo para aquela espantosa expressão de Cesariny que parece ser adiantada de olhos fechados, semi-adormecido, ao acordar, em estado de não saber o que diz, e que ele tomou também como título de obra sua, primavera autónoma das estradas. O que nestas descobertas está em jogo é uma operação de extraordinária envergadura que não respeita apenas ao teclado arbitrário da linguagem verbal; toca-se com elas o ponto onde a matéria primeira da significação, o estado virgem das representações, irrompe na alma humana. É o ponto sem costura que existe dentro de cada homem, espécie de ônfalo ou umbigo interior que liga a alma humana ao cosmos infinito, e no qual é possível encontrar aquele princípio onde, nas palavras de João, reside o verbo original e criador.
É vã qualquer tentativa de imitar este empreendimento de grande pujança – Breton aproximou-o nos prolegómenos de 1942 da procura do Tosão de Oiro na Grécia arcaica – apenas por um trabalho de superfície. Mais: qualquer contrafacção que dele se faça arrisca-se a resultado desastroso. Achados como os de Breton e os de Cesariny não são meros arranhões linguísticos à flor da pele da linguagem; são jogos verbais que se amalgamam com o que de mais íntimo e inacessível há no espírito humano e a que só se acede por um processo de demorada pesquisa. Não é possível pôr mão nessa matéria primeira sem primeiro tornar consciente o que se perdeu – e isto assim é porque o que se perdeu se confunde em parte com a matéria-prima verbal. Tentar imitar à superfície uma frase como aquela que Cesariny foi buscar por um aturado e persistente trabalho de pesquisa interior a estas quase inacessíveis regiões do espírito, as mesmas onde tomam forma e lugar as imagens dos sonhos, é obter como resultado um exercício escolar inoperante como o de António Pedro em 1942 – o mesmo digo da “ode ao surrealismo por conta alheia” de Jorge de Sena – e que não põe nem tira ao que deveras vai ao surrealismo. Um pechisbeque levezinho, caçado no exterior, ainda que brilhante, não deve ser confundido com o maravilhoso e ofuscante minério aurífero, o peredam raríssimo de Daumal, o cristal curvo, que o surrealismo se propôs trazer à luz do dia dos meandros mais recônditos do espírito humano, restituindo aos homens nada menos do que a palavra perdida.
Volto agora ao passo da minha leitura a que sempre regresso no texto de 1953. Que diz ele? O seguinte: Para isto [para conhecer o que o rodeia], o grande meio que o homem tem à disposição é a intuição poética. Liberta enfim no surrealismo, deseja-se esta não só assimiladora de todas as formas conhecidas mas atrevidamente criadora de novas formas – quer dizer, em posição de abraçar todas as estruturas do mundo, manifestado ou não. Só ela nos mune do fio que reconduz ao caminho da Gnose, enquanto conhecimento da Realidade Supra-sensível, “invisivelmente visível num eterno mistério”.
Para ser sincero o que me surpreende no passo é o último período, que é o fecho também dos textos programáticos do surrealismo. Chave de oiro? É possível que sim. Revelação daquilo que Breton tanto anos escondera? Também sim. E que escondeu ele? Diga-se antes de mais: nunca como nestas poucas palavras, nestas duas únicas linhas, ele abriu tanto o jogo, mostrando de forma explícita o que lhe interessava. Desde os primeiros anos da aventura surrealista, pelas ligações que logo se urdiram entre Nerval, o de Les Illuminés, e o surrealismo, que se sabiam as afinidades entre o movimento e os que se haviam devotado no século anterior ao ocultismo. Mais tarde, nas páginas dedicadas a Flamel, percebeu-se a identidade de propósitos entre a actividade do surrealismo para determinar aquele ponto do espírito onde todas as contradições deixam de ser sentidas como oposição, e que não é outro do que aquele onde se fabricam as imagens dos sonhos, no centro do qual jorra da fonte original de toda a significação a palavra perdida, e a prática dos que haviam feito da pedra filosofal a meta das suas vidas.
Por aqui se quedaram as coisas longo tempo, sem novidades de assinalar, até se chegar ao ano em que Breton escreveu as linhas do derradeiro texto programático do surrealismo, onde o jogo muda de patamar. Que eu dê nota é dos raros momentos em que Breton fala da Gnose, ainda por cima fazendo dela nada menos do que a meta da própria actividade poética como o surrealismo a entendia. Isto quer dizer esta coisa espantosa: a actividade poética, tal como a concebia o surrealismo, não tinha por fim a arte mas antes a Gnose. Não vejo na obra do grande pensador qualquer outro lugar em que ele confesse desta forma a sua adesão à Gnose (deixe-se passar a maiúscula, que não é minha mas do autor). Será isso que me atrai no passo, obrigando-me a regressar a ele vezes sem conta?
Paga pois a pena indagar: que é a Gnose? A palavra surgiu já nas minhas notas por duas vezes. A primeira a propósito de Seth, o inconformado filho de Adão e Eva, que não se quis adaptar às novas condições de existência, as do plano da História, o mesmo é dizer, as da formação dos interditos do Eu social, por contraste com a liberdade anterior do Eu arcano a viver no Éden. Seth alimentou e desenvolveu assim na origem os materiais mnésicos que permitiram depois, na evolução da humanidade, nunca deixar cair no olvido o glorioso Jardim original. Se a questão tivesse apenas ficado ao cuidado do primeiro casal e dos irmãos de Seth o recalcamento do estádio original, seguido em toda a linha pelo esquecimento dele, teria sido inevitável. As religiões reveladas e a Lei implacável que impõe invadiriam todos os recantos da consciência; sobraria apenas, no lugar dos conteúdos anteriores, um imenso buraco negro e vazio, sobre o qual reinaria um silêncio gelado de pavor e morte e sobre o qual nada se poderia dizer.
O absurdo em que a existência para tantos se tornou depois da perda do primeiro corpo, aquele que não conhecia a morte, far-se-ia ainda mais fundo e premente, não deixando no horizonte qualquer hipótese de saída do cárcere. Se é possível conceber um inferno, ele é o resultado da operação de subtracção entre o Eu social tal como existe hoje e a herança que Seth deixou à humanidade e a toda a natureza afectada pela expulsão do Éden. Essa herança é um bálsamo, uma permanente ponte entre os mundos, que alimenta a todo o momento a esperança da natureza traumatizada poder transitar, e até experienciar o transe, ao momento glorioso da criação – e glorioso porque esse é ponto onde o transitório toca o eterno, o visível o invisível e o criado o incriado. Sem essa herança, só existe o “castigo” da expulsão, o trauma da dor, o Eu histórico sem rasto da sua sombra astral. O Eu físico sem nota de sombra é como queria Chamisso a condição de qualquer negócio com o Anjo das Trevas. Negociar com este a sombra é entregar-lhe o corpo astral e ficar reduzido ao reduto fechado do Eu histórico. Concebe o leitor inferno mais pavoroso? É difícil. Por sua vez inutilizar a oficina dos sonhos que põe a natureza ferida em contacto com a palavra perdida é o único alívio do princípio negativo. Cada oficina desmantelada é mais uma sombra no bolso, mais uma alma desfeita e inutilizada, mais um corpo reduzido só à consciência da sua dimensão histórica e material.
Que traços mnésicos foram esses que salvaram do recalcamento o Eu original? Os da Gnose, enquanto conjunto de representações originais de significação óptica e verbal; foi por via dessas representações que os conteúdos do Eu arcaico puderam com relativo à-vontade aflorar à nova camada do Eu, resultado da expulsão do Paraíso e da entrada forçada na História. A pedra filosofal é um desses traços mnésicos poderosíssimos pelos quais os elementos em vias de se perderem puderam ainda ser incorporados na nova sedimentação do Eu. Esses traços representam assim um vaso comunicante entre o ponto original do espírito, onde reside o Paraíso perdido, com o seu verbo também perdido, e o círculo excêntrico, à deriva, cada vez mais longe do centro, em que os filhos de Adão e Caim hoje se esgotam.
A segunda vez que toquei na Gnose foi a propósito do poema “Miséria” de Teixeira de Pascoaes. Pareceu-me claro que era possível associar a abjecção material do poema, e por ela a de parte importante daquilo que se chama abjeccionismo, com as narrativas míticas do dualismo gnóstico. Tomei a palavra enquanto sinónimo de conhecimento, aquele que permite a passagem do plano da abjecção para o do supra-real e que está pela sua natureza nas vizinhanças daquela operação interior que deita a sonda pelo espaço estelar psíquico à procura do ponto sem costura onde se encontra na porta de entrada do Paraíso perdido a oficina dos sonhos.
De qualquer modo, Breton no curto passo a que regularmente regresso, e com uma capacidade de síntese notável para duas linhas, que sempre me toca, apresenta uma definição de Gnose. Diz ele que a Gnose é o conhecimento da Realidade Supra-sensível. Nada disto surpreende, a não ser talvez a substituição do supra-real por uma nova expressão, muito mais antiga, de raiz platónica, e que também pouca ou mesmo nenhuma fortuna tivera em textos anteriores, a realidade supra-sensível. Esta, sendo aquela de que toda a Gnose fala, o mesmo é dizer, aquela realidade anterior à queda da argila original no mundo sensível, é também aqui o supra-real que Breton toda a vida procurou. Resta aquele termo de frase, que aparece entre comas, por ser decerto uma citação, que não sei donde vem, “invisivelmente visível num eterno mistério”, e que indica porventura que essa realidade que importa captar, esse ponto miraculoso onde se toca materialmente o corpo astral, é invisível aos olhos do corpo, mas doutro modo se pode ver, não perdendo nunca como um céu estrelado a sua infinita capacidade de sedução. E aqui me pergunto se não é este mesmo céu estrelado que a última expressão de Breton em mim evoca que perpetuamente me atrai. Se assim é, debruço-me sobre estas palavras como se nelas visse cintilar as estrelas do fogo azul do céu. Lê-las é subir ao derradeiro patamar dum zigurat; relê-las é ter diante de mim a noite infinita e por cima aquele ponto miraculoso em que o invisível se faz visível, em que o amado dá ao amante o amor, em que o criado toca o por criar. É então que as palavras que Daumal escreveu sobre o altíssimo pico do monte análogo se me fazem inteligíveis: Lá em cima, em pleno fogo do céu onde tudo escalda, só subsiste a perpétua incandescência.
Posso encerrar aqui esta nota. O passo de Breton está esclarecido; percebo agora porque regresso a estas palavras. Não tenho sequer ilusões: a elas regressarei sempre. Trata-se duma janela aberta sobre o céu das ideias; isso chega para entender o motivo que me move e moverá sempre para ela com sôfrega e renovada curiosidade.
Quero porém juntar duas sequências. A primeira relativa à visão cosmogónica de Ibn-Arabi. Para este pensador andaluz a levedura de argila que serviu no princípio para criar o primeiro Adão serviu também ao Criador para criar para a sua alma um universo paralelo, chamado a Terra da Realidade Verdadeira. A criação deste universo em correspondência com a alma do primeiro homem fez que na criação posterior, mesmo desapossada já dos seus poderes primeiros, cada alma tivesse na Terra da Realidade Verdadeira um universo correspondente, intocado esse no seu primitivo esplendor. Cada elemento da natureza tem a possibilidade de encontrar e em êxtase contemplar este daemon de si próprio, este real absoluto da sua vida; basta para isso aprender a conhecer a sua alma, pois tocará nela num ponto onde se inicia o espaço desta outra Terra. Como não ver no automatismo que Breton advogou como experiência essencial para o homem criador o fio condutor que cada um de nós tem para tocar e encontrar este outro plano da nossa vida? E como não ver nas palavras de 1953 relativas à Gnose a necessidade de entender este homem criador não como aquele que se entrega à arte ou à literatura, comércio exterior, muito distractivo, mas como aquele que tece em silêncio e em recato, dentro de si, com a paciência e a habilidade das grandes tecedeiras, os trilhos que o põe na senda do plano que o grande visionário andaluz chamou Terra da Realidade Verdadeira? Essa que Breton não se acanhou de designar como Realidade Supra-Sensível.
A segunda para acautelar o seguinte: quando se fala a propósito de surrealismo de ciências ocultas, de pedra filosofal ou de Gnose nenhuma destas realidades é para ser tomada como fumo sem fogo. Quero dizer, nenhum desses segmentos serve para dar ao surrealismo um adorno de qualquer espécie, nada neles existe para encobrir um qualquer vazio de projecto. O facto de André Breton em 1953, o ano da morte de António Maria Lisboa, coar o supra-real do surrealismo como a realidade supra-sensível da gnose platónica não se deve a qualquer impasse da aventura surrealista. Esses segmentos não são areia fina para atirar aos olhos do incauto e desse modo esconder a frivolidade dum movimento que já então passara os trinta anos. Ao invés o surrealismo em 1924, ou mesmo em 1930, é muito mais bisonho, está muito mais longe do essencial, do que o de 1953. Entende-se. Breton tivera nesse entretanto que durou três décadas a possibilidade de cartografar o espaço interior, estabelecendo trilhos seguros de acesso ao surreal. O registo do supra-sensível, fazendo da palavra poética o fio condutor da alma para a fonte do verbo primordial, esclareceu de vez a aventura surrealista, dando-lhe uma consistência e uma solidez que doutro modo, distraída do essencial, que se confunde com a matéria-prima do verbal, podia tremer nos fundamentos mesmos com que se apresentava.
A deriva política do surrealismo ao serviço da revolução social assinala um espaço intervalar que obrigou o movimento a marcar passo naquilo que mais importava, trocando por momentos a sua actividade no interior do espírito humano pelas lutas no seu exterior. Tome-se por aceitável este momento de paragem; aceite-se até que alguma coisa de exaltante houve nisso e que Breton nunca perdeu o pé nesse tremedal cheio de minas e armadilhas; nunca porém se veja nesse segmento o momento crucial da aventura dum movimento que nasceu para fazer a sua própria revolução e não para servir a dos outros, muito menos quando estas eram torpes e criminosas, como a do estalinismo, ou todas as outras que derivavam do leninismo, e nem sequer estavam dispostas a encarar a dimensão interior da natureza, reduzindo o homem, com o desastroso resultado que hoje se sabe, e basta deitar os olhos para a China, anos e anos de retrocesso na libertação do plano terrestre, a um Eu social, um Eu histórico ainda mais garrotado do que aquele que chegara ao cosmopolitismo do século XX ocidental depois de sete mil anos de História e de continuados tabus que bastaram para sufocar a vida interior e já haviam feito da espécie humana, mesmo sem leninismo e derivados, uma espécie amputada e aleijada no meio duma natureza muito mais consciente e autêntica. Daí o inexaurível crédito do passo platónico de 1953.


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Capítulo integrante do livro Notas para a compreensão do Surrealismo em Portugal, gentilmente cedido pelo autor. Para conhecer melhor vida e obra de António Cândido Franco, visite: http://literaturaliteraturaliteratura.blogspot.com.br/2014/02/conhecer-antonio-candido-franco-vida-e.html. Página ilustrada com fotografias de Teresa Sá Couto.






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