quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | As Posições Políticas do Surrealismo e o Testamento de Pascoaes


Em finais de 1924 surge o primeiro número da revista A Revolução Surrealista, tendo como directores Pierre Naville e Benjamin Péret. O projecto da publicação resume-se nesta declaração em primeira página: A actividade inconsciente do espírito parece não ter sido explorada até hoje senão em função de fins duvidosos (psicológicos, médicos, metafísicos, poéticos). A revolução surrealista propõe-se libertar em absoluto esta actividade. É preciso chegar a uma nova declaração dos direitos do Homem. O surrealismo não pedia menos do que uma nova declaração dos direitos do Homem. Nesta exigência que só ele, surrealismo, estava em condições de cumprir se percebe a autonomia do movimento então nascente e o largo horizonte de actuação de que ele dispunha e que ia muito além da actividade típica dum grupo unido em torno da literatura ou mesmo da poesia. As possibilidades abertas pela pesquisa da vida interior, pela descoberta e observação dos sedimentos esquecidos e recalcados, abriam ao surrealismo um campo de acção muito diferente do da arte e deixavam entrever nessa actividade uma verdadeira revolução.
Pouco tempo depois, em 1926, uma outra questão se colocou ao grupo: sendo o surrealismo uma força revolucionária destinada a revelar regiões doutro modo inacessíveis, que ligação devia ele estabelecer com as restantes forças que procuravam revolucionar o mundo? Para responder a esta pergunta o surrealismo oscilou por um momento entre dar o seu aval ao movimento libertário, que apresentava então todos os grandes pergaminhos da luta operária em França, de Proudhon à Comuna de 1871, de Réclus ao anarco-sindicalismo, ou em alternativa ligar-se ao jovem partido comunista francês, consequência da recente tomada do poder na Rússia pelos bolcheviques. Depois dalguma hesitação e mal-estar, que acabou por se traduzir em rupturas dentro do grupo, de que resultou a saída de Artaud, o responsável por um dos mais inspirados exemplares da Révolution Surréaliste, o número 3, a escolha acabou por recair na segunda opção, originando uma violenta guinada, de que só muitos anos mais tarde o surrealismo se recompôs e ainda assim à custa de muitos e penosos rasgões. O mais fatal equívoco desta escolha terá sido identificar como idênticos os objectivos das duas forças.
Ora uma revolução que nascera do mais elementar desprezo pela vida interior do homem, que se tornara enquanto ditadura a mais directa e exaltante fonte de inspiração para todas as aventuras políticas autoritárias, incluindo as da direita mais execrável e sinistra, e que evoluía a olhos vistos para formas cada vez mais criminosas de socialização em que o Eu social, produto dos tabus civilizacionais anteriores, quer dizer, de milénios de acumulação de riqueza, se estava ainda a escravizar mais aos imperativos dessa mesma acumulação, chamasse-se esta riqueza ou progresso, uma revolução assim, dizia, não podia de jeito nenhum coincidir nos seus propósitos com aquela vontade de libertar as regiões humanas recalcadas com que o surrealismo despontara e surgira na vida colectiva, propondo-se nada menos do que uma nova tomada da Bastilha, desta vez para demolir aquela prisão interior que cinco milénios de História se entretiveram a construir e reforçar, para de seguida, sem muros de prisões, proclamar os novos direitos duma humanidade pós-civilizada.
Na verdade o materialismo dialéctico enquanto filosofia não foi capaz de passar no exame prático dos factos; posta em prática, mostrou-se um colossal fracasso, de pesadíssimas consequências para os que se empenhavam com seriedade na libertação progressiva do homem e da natureza. Sob o nome de marxismo-leninismo, mas com uma prática ditatorial que nada devia às piores experiências do passado no domínio do terror político, com um centralismo autoritário que nunca se inibiu de recorrer às piores violências e uma gestão de mercado agressivíssima que está a fazer dele no presente o principal combustível da acumulação do capital no mundo, o materialismo dialéctico foi e é para o movimento revolucionário uma nota de débito tão pesada que serão necessários séculos e séculos para poder liquidar a sua nefasta memória. O que o movimento operário desejou na aurora do socialismo oitocentista foi o falanstério de Fourier ou a comuna livre de Proudhon não o campo de concentração de Estaline nem tão pouco a execrável fábrica de exportação mundial em que se tornaram hoje a China ou o Vietname, para não falar no asilo hospício dos Sung norte-coreanos.
A história das relações do surrealismo francês com o partido comunista, melhor, com o marxismo-leninismo em geral, é pois das mais confrangedoras que é possível conceber, um monumental mal-entendido que pouco ou nenhum interesse apresenta, a não ser para se perceber como de surpresa em surpresa, de desilusão em desilusão, de humilhação em humilhação, cada uma mais feroz do que a outra, se chega no início da década de 40 à ruptura definitiva, com Breton a declarar nefasta para o surrealismo toda e qualquer actividade partidária, mas sem que isso significasse que dava por acabada a luta política do movimento. Resultou daí o manifesto Rupture Inaugurale (1947) e a colaboração regular que Breton e o seu grupo passaram a dar à imprensa libertária. É como se depois de 1940 – e da mudança metamorfose ficaram as soberbas páginas de abertura de Arcane 17 (1945) e o texto “La Tour Claire” (1952) – o surrealismo tivesse necessidade de regressar à encruzilhada dos tempos iniciais, para arrepiar caminho e repensar as suas escolhas políticas. Não podia refazer quinze de História, que tinham sido quinze anos perdidos, mas podia reajustar a rota e partir na direcção certa, posto que com um atraso de década e meia.
Aos que no intervalo haviam ficado pelo caminho, só pagava a pena dizer-lhes bom-dia. De heróis, de estátuas, de medalhas, de fardas, de discursos, de pencas e de meias de nylon o surrealismo conhecera muito e não gostara. Uma coisa era segura: depois do materialismo histórico e da sua chegada em força à História, com a URSS, e de tudo o que dela decorreu, a Bastilha continuava por tomar e estava até mais alta, mais rija, mais inacessível. Por isso ao surrealismo tanto lhe faziam agora as teses de Marx como a púrpura de Lenine ou a do papa. O materialismo histórico era excelente, do melhor que o mundo dera, mas tão-só para subverter com os materiais mnésicos da segunda consciência. E nunca o surrealismo voltou a ser tão ele como quando soube dar esse passo, pondo a jogar o Eu libertário e transformando o materialismo histórico em materialismo histérico. Nas relações do surrealismo com o marxismo-leninismo o Eu libertário demorou o seu tanto a surgir mas quando chegou tirou a gravata com que se estava a deixar garrotar e desarrumou de vez a sala.
O panfleto francês de 1947, e a exposição internacional que logo se lhe seguiu em Julho, “Le Surréalisme em 1947”, na galeria Maeght, com a participação de vinte e cinco países e dois importantes textos de Breton, republicados no livro La Clé des Champs (1953), representam pois na história do surrealismo momentos de grande significado, passos de envergadura gigantesca, que voltaram a pôr o movimento em contacto com a rota perdida, afastando-o daqueles que lhe estavam a roubar o tutano e a sugar o sangue. A exploração do espírito, a viagem pelas terras de dentro, sem porém esquecer nunca o que essa viagem punha para a libertação social, mas desta vez libertação e não sujeição, voltava a ser o itinerário natural dum movimento que nascera para dar ao mundo uma nova revolução, em domínio só por ele pressentido, e não para seguir de mãos atadas atrás das costas as revoluções dos outros, adiando, ou mesmo fazendo prescrever, aquela para nascera. Viajar à procura do ponto fulcral da alma do mundo, onde se originavam as tintas da aurora, partir para os mundos invisíveis do interior, voltava a ser a consigna dum surrealismo que saía de quinze anos de mal-estar político, com avanços próprios e recuos forçados. As espécies dos primeiros contrafortes valiam já o novo passeio; o surrealismo em 1947 ambicionava porém mais, desejava tocar a forja onde se fabricavam as imagens dos sonhos e se fundia o metal de que eram e são feitos os mitos, para de lá tirar a matéria-prima com que pudesse moldar um novo mito, capaz de colocar o homem em etapa superior do seu destino.
O manifesto de 1947, que limpou do surrealismo toda a ligação partidária, e o afastou do marxismo, dando-lhe de novo por espaço natural as paisagens oníricas do sonho e do mito, veio a ser um dos condimentos de peso na criação do surrealismo português. Isso afirma Cesariny nas linhas em que historia e desenha a vida do surrealismo em Portugal. Não podia ser doutro modo. “Rupture Inaugurale” foi dado a público no final de Junho de 1947 e Cesariny esteve em Paris pouco depois, em Agosto, para conhecer André Breton e iniciar os primeiros contactos com vistas à formação dum grupo surrealista em Portugal. Teve aí ocasião de ler e reler o panfleto e meditar, no quadro das campanhas que Sartre movia a Breton na revista Les Temps Modernes, a que se juntou no mesmo ano Étiemble, a sua importância. Mais tarde, na tábua biográfica que organizou para o volume Mário Cesariny (Lisboa, Secretaria de Estado da Cultura, 1977), no respeitante ao ano de 1947, aponta a folha francesa como de ruptura com todo o sistema de obediência marxista-stalinista e faz dela um dos elementos cruciais da formação do surrealismo português, que nasceu tanto por oposição à gravata forca da cultura oficial dominante como por contraponto à laçada prisão do neo-realismo oposicionista, tutelado com mão de ferro pelos activistas do partido comunista português. Nem uma nem outra, gravata ou laçada, interessavam o surrealismo, que queria mãos, pés, pescoço e cintura bem livres para bater as ignotas regiões do espírito, de todo desdenhadas quer pelos da Lei revelada quer pelos da Lei selada, todos filhos dum mesmo pai sem alma e sem sombra, desinteressado de todo do que perdera lá para trás, nada menos do que o Paraíso, a terra gloriosa que não conhecia dor e morte, e muito contentinho até com o solo áspero e seco da História que o querubim da expulsão lhe terá dado para pisar.
O surrealismo português nasceu pois num dos raros picos do surrealismo geral. E neste grande favor não entra tanto a temperatura mediática para com ele, que era só tépida, e nada de novo se esperaria em instante de distracções sartrianas e outras, mas entra muito e só a meta que então com rara lucidez ele visa. O momento em que Cesariny capta Paris, aos vinte e quatro anos, é dos mais cristalinos; só tem paralelo, e mesmo assim à distância, dada a verdura do propósito inicial, com aquilo que se passa em 1924, quando Breton lança o primeiro manifesto e o grupo cria o Bureau de Recherches Surréalistes e edita o primeiro número de A Revolução Surrealista. É o ano da folha volante “Rupture Inaugurale”, da exposição da galeria Maeght, do importante prefácio de Breton ao catálogo desta exposição, “Diante da Cortina”, onde Pascoal Martins e Claude Saint-Martin são a tradição acroamática da cultura que a universidade recalca, e da Ode a Charles Fourrier; é ainda o ano em que Julien Gracq elabora o seu André Breton, que verá a luz no princípio de Janeiro de 1948. E nos arrabaldes deste ano está a publicação em 1945, ainda no exílio, Nova Iorque, de Arcano 17, que se tornou o cadinho de elaboração do caminho ulterior do surrealismo, o do passo gnóstico de 1953, e cujos números, 17, anunciam os do ano capital do regresso definitivo de Breton a Paris, 1947 – chegou no ano anterior mas este foi o da definitiva reinstalação.
Uma das obras que melhor chamou a si a nova situação do surrealismo, dando de barato uma gravata com quinze anos e aproveitando a seu favor a vigorosa lufada de ar fresco que se sentia correr, foi a de António Maria Lisboa. A importância dela no cômputo geral das aquisições do surrealismo está ainda por fazer e não posso nem quero tomar nas mãos aqui o assunto, que merece só por si um estudo em separado. A partir das notas anteriores, que tentam fazer o estudo cerrado dalgumas parcelas da poesia que ele deixou, poderá o leitor ter uma ideia da rapidez com que essa obra atravessou os céus, três curtos opúsculos foi tudo o que editou em vida, mas também do brilho excepcional da sua luz. A obra de Lisboa é como uma daquelas estrelas que morreu há milhões de anos mas cuja luz continua ainda hoje a ser captada pela ocular dos telescópios.
Também no que agora interessa a esta nota, o rasgão na década 40 do surrealismo com o marxismo, a obra de Lisboa tem pontos capitais. Um deles está em Erro Próprio, no momento em que ele toma o acto poético como libertário e amoroso (1977: 78), e outro vem ao de cima na importante missiva que ele escreve a Cesariny na segunda metade do mês de Abril de 1950 e que este toma como manifesto. Formula aí Lisboa, na continuidade daquilo que tomara de empréstimo em Paris talvez a Sarmento de Beires, uma síntese final das artes mágicas a que chama metaciência, outra forma de nomear o meta ou supra-real. No capítulo desta supra-ciência há um conjunto de fragmentos que surgem e se desenvolvem como captações da supra-visão, sinais do osso, e que em alguns momentos estabelecem tomadas de posição política. Por exemplo: A Anarquia e a Poesia são uma obra de séculos e irrompe espontaneamente ou não irrompe. E ainda, de forma decisiva: Politicamente a Metaciência ao pronunciar-se dirá que a verdadeira democracia só será possível quando todos os homens forem poetas. Mas a isso não chama ela democracia – mas ANARQUIA! (1977: 279-80)
É possível que a mais importante declaração política do surrealismo português tenha sido esta última. Não é uma tomada de posição ante factos, não se coloca no plano da realidade, mas tem de outra sorte, ou talvez por isso, um alcance notável. São três linhas delgadas, escritas numa carta, mas nelas se condensa a experiência política do movimento, desde a oscilação inicial entre os dois braços da corrente operária, a autoritária e a libertária, a centralista e a federal, até ao momento do corte com o marxismo, passando pelos estádios intermédios, ligação ao partido comunista, corte com o estalinismo, aproximação ao trotsquismo e ao que dele decorria, sempre porém no horizonte fechado do marxismo-leninismo. A declaração de Lisboa está já fora das quatro paredes do materialismo dialéctico, tal como a actuação de Breton depois do regresso a França em 1946 também está. A fuga ao marxismo em Breton tem talvez o momento inaugural, ao menos como expressão, na escrita de Arcano 17, entre Outubro de 1944 e Janeiro de 1945, misturando na mais auspiciosa carta do Tarot, A Estrela, o décimo sétimo arcano do baralho, os espaços livres da Gaspésia, no Quebeque, com as bandeiras negras do operariado anarquista da adolescência de Breton em Paris (1913).
A pergunta a fazer é a seguinte: que quer dizer a anarquia maiúscula de Lisboa? Entende-se o que o anarquismo significou para Breton – o impulso transfigurador do socialismo operário extra-parlamentar tal como o século XIX o vira acontecer. Com tal tinta se haviam escrito algumas das mais comoventes linhas da História de então, a Comuna de Paris de 1871, a fundação da I Internacional operária, o Congresso de Saint-Imier. Mal percebeu que o marxismo-leninismo não passava a prova de fogo dos factos, e se estava a tornar numa monstruosa impostura, Breton regressou de forma decidida a este primeiro broto, no qual de resto fizera a sua formação inicial de adolescente. Em António Maria Lisboa a questão é outra. Antes de mais ele nada esperou do marxismo-leninismo – ou a expectativa dele, se a houve, foi infinitamente mais baixa do que a de Breton; depois, não é o anarquismo, enquanto movimento, tradição, história e selo que o chama, e que talvez aborrecesse, ou em grande parte desconhecesse, mas a anarquia. Daí a pergunta que comecei por fazer: que quer dizer a anarquia em Lisboa?
Releia-se o passo transcrito de Lisboa. Traduzo por outras palavras: a anarquia é a expressão política duma sociedade de poetas. Que pretende o poeta em Lisboa? Recorde-se: o ofício de poeta não é escrever versos, menos ainda versos perfeitos, pois tal tarefa pertence ao versificador, não ao poeta. O poeta em Lisboa é o expedicionário da vida interior, o batedor dos caminhos que vão florir nas fontes originais da significação, o corsário das estrelas que aspira tomar de assalto o lugar onde estão os materiais de natureza acústica e de natureza visual a que os conteúdos da segunda consciência recorrem para criar os seus símbolos e elaborar as suas histórias. Trata-se de deitar mão a um verdadeiro tesouro, que milénios de civilização soterraram e esconderam e que só um aventureiro intrépido, que se entregue de forma sistemática à sua procura, poderá de novo aproximar e repor em circulação. O acto poético em Lisboa não é assim da natureza dos versos mas do domínio da aventura psíquica e da elaboração onírica.
Logo a anarquia só ganha sentido para os homens que vivem por dentro a aventura das terras interiores. Mais: a anarquia só se percebe como um dos materiais, e dos adiantados, que o batedor encontra na exploração da geografia análoga que pesquisa; a sua expressão só na fonte original da significação se colhe. É uma forma primordial, uma flor rara, que diz respeito às camadas mais arcaicas da consciência universal; como em qualquer forma com essas características, esteve sujeita a um progressivo processo de recalque, que a torna hoje um cristal desconhecido. Fora do jorro da origem tal forma não se capta; ela é exclusiva ao processo da formação do Eu original. Também ela, a anarquia, enquanto palavra, é para ser encarada como um material simbólico, um poderoso sinal da alma elaborado pelos conteúdos da segunda consciência. Boa parte do seu significado pode escapar, como num sonho absurdo, ao entendimento da primeira consciência. Anarquia quer dizer à letra sem princípio. A palavra é formada por um prefixo que indica a negação e por uma palavra tema, arquia, sinónimo de princípio, presente em outras palavras da língua, como autarquia, monarquia, sinarquia, oligarquia, hierarquia e algumas outras. Anarquia é pois o que nega o princípio, o que não tem princípio.
Regresso ao ponto de que atrás falei, esse que na geografia psíquica interior se confunde com a forja onde os conteúdos da segunda consciência vão adquirir forma e ganhar revestimento. Tais vestes são as formas originais, os arcanos, os princípios ou os arquétipos que são ao enxame neste ponto, assaz longínquo, das terras de dentro. Desse chão chegou por exemplo aquele Cavalo-Triângulo que Lisboa colocou no “Poema do Começo”. Ora tal ponto é o lugar onde o mundo das formas respira boca a boca com o mundo sem formas. Por isso as formas que aí estão nesse ponto são as primeiras e esse chão é o dos arquétipos; ele marca uma fronteira entre um mundo anterior sem formas e um ulterior, sensível, onde os moldes originais se degradaram. Dito doutro modo: nas camadas mais puras e mais arcaicas da segunda consciência não há sequer formas; as formas, mesmo as arquetípicas, os princípios, são já fruto dum pacto entre as duas consciências. Os princípios ou arquétipos são a forma original a partir da qual se desenvolveu a primeira consciência, o primeiro nódulo embrionário do Eu social futuro. Por esse motivo o Eu histórico nunca conseguiu dinamitar as pontes de acesso à terra de origem, ao paraíso do Éden onde as formas se originaram sob o desenho de princípios exemplares, mesmo que para isso fosse obrigado a retomar contacto com conteúdos entretanto recalcados e que muito lhe custavam recordar. O paraíso das formas originais tem a liberdade plena do relâmpago original e no mesmo passo condensa já uma memória das cristalizações futuras.
Ora este jardim original, esta forja onde se fabricaram os primeiros moldes, é o ponto superior do monte análogo, onde a terra, qualquer terra com formas, mesmo arquetípicas, bate boca com boca com aquela pura incandescência sem história nem tempo, a que é forçoso chamar o incriado. Os arquétipos que vivem no paraíso são a primeira camada da criação, a mais plena, daí as cidades esmeraldinas da tradição gnóstica oriental, mas o momento anterior a esta criação é a pura incandescência que Daumal entreviu no céu do monte análogo. Antes das formas incorruptíveis, vivendo a sua eternidade dentro do tempo da criação, houve um extra-tempo, sem formas nem criação. Falo dum inimaginável anterior ao relâmpago do big-bang, que dista daqui apenas catorze biliões de anos. Que soma irrisória! Para aquilo que falo nem triliões de triliões! É neste incriado que reside a anarquia mais genuína, a literal, a única que é possível aceitar como plena. Só no momento em que não há realidade nenhuma, sensível ou arquetípica, já que esta é ainda real, real absoluto, a pura abstracção da anarquia pode acontecer em pleno. A anarquia é o imprincipiável, não muito menos do que isso. Essa ordem magnífica que existiu antes do universo, melhor, fora dele, e que nunca morreu, porque nunca nasceu nem existiu, pois é disso que se trata quando se fala do que não tem princípio, do imprincipiável, é talvez o que de mais ideal e de mais sublime o homem pode alcançar e intuir com o espírito.
Aquele que se preocupa em estar em contacto com a terra dos arquétipos, aquele que não olha aos interditos ou às ambições do Eu social e procura tocar o ouro sem mancha da origem, o que dedica a sua vida a forçar a entrada no continente perdido, o que se torna um alpinista da montanha cósmica interior, o poeta, o corsário dos tesouros que ficaram esquecidos no primeiro paraíso perdido, esse, um dia, quando conhecer os raios da forja divina, estará em condições de olhar o céu imponderável do extra-tempo, sem tempo nem criação, e ver lá traçado em luz irreconhecível as letras sem letras da anarquia. Numa terra de imortais, de moldes destinados a durarem o que o tempo demorar a ser, talvez esse vislumbre final sobre o além do que não tem além, o sem princípio do princípio, o respirar boca a boca com a extra-incandescência do que está depois do derradeiro pico, seja o mais grato galardão do homem que tudo alcança e tem. Nesse instante, em que se toca o sem instante, o poeta será poeta e o seu círculo uma anarquia, uma anarquia que não é o imprincipiável, e se o fosse nem palavra teria, mas tem dele, na raiz, boca a boca, um vislumbre de fogo.
Há almas que são originais. Dedicam toda a sua vida a recordar o passado mais remoto, aquele que a entrada na História da civilização esqueceu e recalcou. Tais almas transitam sem dificuldade para as camadas mais arcaicas da vida e da consciência, de todo se desenraizando do Eu social da consciência de superfície. Na verdade tais seres nem se dão conta que vivem na História; para eles a vida do paraíso original continua – ou nunca dele foram expulsos ou o reconquistaram pelo poder mnésico. Essas almas, indo beber à fonte primeira, convivendo tu cá tu lá com os modelos primeiros, acabam por desenvolver uma memória tão extraordinária, que se conseguem lembrar do instante anterior aos protótipos, quando não existia ainda qualquer separação entre a criação e o criador. Esses seres são na acepção de Lisboa os poetas e são eles que têm nos olhos gravados a luz irreversível da anarquia.
Faço um pequeno acrescento ou desvio à frase de Lisboa, recorrendo agora a Natália Correia (1923-1993), que bem merece aqui comparecer e não apenas, se mais espaço houvesse, pela frase de Lisboa. Natália leu a carta de Lisboa, pois Cesariny fez dela um folheto, em 1963, nos dez anos da passagem do autor de Isso Ontem Único, numa colecção sua, “A Antologia em 1958”, que a autora conhecia bem, pois nela se fez editar. Quando se tratou, a partir do surrealismo, de antologiar a poesia da língua, já a Revolução dos Cravos estava quase a entrar, Natália pegará nas relações do surrealismo com a política deste modo: A bandeira negra dos anarquistas é a única que verdadeiramente guia a marcha do surrealismo contra a ordem e toda a espécie de constrangimentos. (O Surrealismo na Poesia Portuguesa, 1973) Neste comento sente-se a mistura de vários metais anteriores; é uma liga de boa resistência que junta o itinerário de Breton e do seu grupo com a sumptuosa síntese mnésica – é disso que se trata, não menos – de Lisboa.
Tudo isto está certo e se encaixa em sucessivos planos ou sentidos, que têm por motivo recorrente a encruzilhada política em que o surrealismo se debateu na origem, aí por volta de 1925-26, e à qual regressou na época da maturidade. Entre a comuna libertária, tal como os primeiros socialistas a sonharam, sem partidos e sem escravos, com homens livres e conscientes, e a caserna cor de cinza do Marx passado à prática, com tudo voltado à farda, os surrealistas não hesitaram e abandonaram a parada militar. Estavam melhor no falanstério. O que espanta deveras é que pela época em que se operava a ruptura do manifesto de 1947 do grupo de Paris e Lisboa escrevia a sua profissão de fé na Anarquia, Teixeira de Pascoaes pudesse estar a escrever os versículos de A Minha Cartilha, que é o seu testamento político. O que lá se encontra é em tudo congénere ao que se diz pela mesma época em Breton e em Lisboa. Veja-se esta declaração: Ser anarco-comunista ou cristão-pagão é defender a justiça espiritual e a económica, o direito à liberdade de pensar em alta voz, e ao pão nosso de cada dia. Tocamos sempre a questão do pão: o do corpo e o da alma. Para os corpos, o mesmo pão; e a cada alma, o pão da sua fome Espiritualmente há várias fomes; materialmente há uma, que a matéria é unidade, e o espírito multiplicidade. Se os corpos são redutíveis a um só corpo, as almas são irredutíveis a uma só alma. (1954: 33) E ainda esta: O homem, como criador e anarquista, exige a liberdade de criar; como criatura é comunista e sujeita-se ao estabelecido. Os corpos são irmãos; as almas não. E por fim esta: Vivamos enfim no: Faça-se a luz! E no Amai-vos uns aos outros! Faça-se a luz é o grito do anarquista. Amai-vos uns aos outros é o dos comunistas. (1954: 40)
Teixeira de Pascoaes era quase vinte anos mais velho do que Breton; sobre Lisboa tinha um adianto de mais de quarenta anos. A estrela que o regia era porém a mesma que governava os outros dois. Como Breton e Lisboa, ele foi uma das almas originais que não se conformou com a perda do paraíso. Aquilo a que ele chamou saudade foi na verdade um caminho de alquimia interior na direcção do lugar, anterior ou ulterior, onde a memória duma ordem superior sem coacção nem sanção fosse muito mais do que uma nostalgia.

  
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Capítulo integrante do livro Notas para a compreensão do Surrealismo em Portugal, gentilmente cedido pelo autor. Para conhecer melhor vida e obra de António Cândido Franco, visite: http://literaturaliteraturaliteratura.blogspot.com.br/2014/02/conhecer-antonio-candido-franco-vida-e.html. Página ilustrada com fotografias de Teresa Sá Couto.






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