Desde 1944 que
se documentam as relações de Fernando Alves dos Santos (1928-1992) com António
Maria Lisboa (1977: 386-87). Colegas de escola, ou até de classe, fizeram uma
rápida passagem pelas adjacências do neo-realismo e ambos por causa do
surrealismo cortaram com ele. No final de 1947, quando o grupo surrealista de
Lisboa se formaliza, mantêm-se à distância, ao que tudo leva a crer pela
presença de António Pedro e José-Augusto França. É assim que Cesariny, cujo
diálogo com O’Neill parece ter sido o embrião do G.S.L., os encontra, quando
uns meses depois, farto do esteticismo duns e do rácio idiota de outros, decide
deitar borda fora o grupo. Do encontro, que toca ainda Risques Pereira, Pedro
Oom e Cruzeiro Seixas, e mais tarde Mário Henrique Leiria e Carlos Eurico da
Costa, nasce um novo grupo, os surrealistas, que Cesariny apelidará anti-grupo.
Na palestra manifesto Erro Próprio,
Lisboa vai buscar Alves dos Santos assim: Esqueço
de momento (…) para me fixar de repente na Mala do Viajante que Fernando Alves dos Santos expôs na 1ª
Exposição dos Surrealistas e, ó mais Maravilhoso Avião Interplanetário, ó mais
Brutal dos Terramotos, nos incita, de continente em continente, de astro a
astro, à Viagem Amorosa! (1977; 91)
Fernando Alves
dos Santos publicou em vida dois livros, Diário
Flagrante (1954) e Textos Poéticos
(1957), e deixou um outro preparado para publicação, De Palavra a Palavra; a esta curta obra acrescentam-se quatro
poemas dados a lume em vida e um conjunto de dispersos, manuscritos ou já
passados à máquina, em número de vinte e cinco, por publicar. Esta obra foi
reunida por Perfecto E. Cuadrado num único volume, Diário Flagrante [Poesia] (2005), onde encontro um poema chamado “A
Teixeira de Pascoaes”. Faz parte do conjunto final de vinte e cinco dispersos e
diz assim: O ouro impoluto/ na gota de
água oculto/ se articula e chama/ o deserto./ Das minhas mãos o mar/ escorre
sobre a cama/ devagar/ desperto/ como os sinais das poeiras/ que são do verbo
as trepadeiras/ moldando de verde as mágoas/ que adormecem/ ao sabor das águas/
que envelhecem./ Também os anjos na branca rosa/ são vulto do mistério da
esperança/ na anímica madrugada/ ansiosa/ mas cansada./ No céu uma estrela
dança;/ a Saudade – a grande altura/ – vem nas trevas da Idade/ envolvendo de mística
ternura/ a sua irmã Eternidade. (2005: 149)
O poema não tem
data mas acredito que foi escrito no rescaldo do momento em que Cesariny
antologiou a poesia de Pascoaes em 1972. Não vejo outro momento para o autor de
Diário Flagrante se dedicar a ler a
obra do autor de Regresso ao Paraíso.
O contacto pode ter acontecido por oferta do opúsculo Aforismos (1972), edição de Cesariny e de Cruzeiro Seixas, e da
antologia, Poesia de Teixeira de Pascoaes
(1972), do mesmo ano, que resultou dum pedido de Natália Correia e foi o
primeiro volume impresso a conter trabalhos plásticos de Pascoaes – com
excepção da edição póstuma A Minha
Cartilha, cujo frontispício apresenta um auto-retrato do poeta. Isto não
quer dizer que o poema em causa date de 1972; deixa apenas no ar a
possibilidade do convívio, em força, de Fernando Alves dos Santos com a obra de
Pascoaes ter aberto nesse ano. O poema será mais tarde, porventura anos mais
tarde, o resultado gráfico desse convívio.
Que diz o poema?
Antes de mais vale a pena atentar no dinamismo do título, “A Teixeira de
Pascoaes”. Aquilo que aqui importa é o significado da preposição inicial. Na
verdade o poema podia chamar-se só “Teixeira de Pascoaes”; nesse caso existiria
sobretudo a indicação dum retrato. Ao acrescentar aquela letra inicial, com
valor de preposição, passa-se do retrato à homenagem; as palavras do poema
passam a ser uma oferta, deixando de ser uma simples evocação. O título, tal
como ficou, oferece, não retrata. Ele é sinónimo de: para Teixeira de Pascoaes. O poema suporta todavia a identificação
da preposição com outras que na aparência lhe estão mais distantes; com, de, em, por, sobre. Sendo retrato
homenagem, o poema é também companhia, ligação, presença, defesa, estudo, acto
humílimo de amor e conhecimento.
Depois é preciso
assinalar que se está ante uma única estrofe com vinte e quatro versos. Nesse
único conjunto destacam-se porém quatro núcleos distintos, o primeiro com
quatro versos, o segundo com dez, o terceiro e o quarto com cinco cada um.
Aquilo que estabelece a fronteira entre cada um deles é o ponto final, quatro
na totalidade. Cada núcleo pode funcionar como uma estrofe potencial, com um
miolo autónomo de significação. Em cada centro está uma imagem forte, à volta
da qual giram os restantes motivos. O coração da primeira sequência está no ouro impoluto, o da segunda no mar, o da terceira nos anjos na branca rosa e o da última no céu onde uma estrela dança. Como se percebe de imediato esta é uma poesia
que se organiza por imagens; são os materiais visuais, em sucessão, que
fornecem ao poema a significação. O papel dos materiais sonoros, existindo, é
de muito menor impacto.
Veja-se o
dispositivo visual do poema. As duas imagens de maior pressão são a do início e
a do fecho. De entrada é o ouro impoluto.
Não será difícil associar este metal assim classificado ao lápis filosofal da
alquimia. E já agora ao epitáfio que para si próprio Breton escolheu: je cherche l’or du temps. O ouro é aqui
aquele ponto nobre e sem corrupção, ouro sem mácula, indelével, que equivale ao
estádio primeiro da matéria. É a imagem da terra dos arquétipos que ainda agora
nos veio ao teclado a propósito da anarquia
de Lisboa. A propriedade da construção simbólica deste verso é pois imensa; a
sua força reside na escolha da substância em causa, o ouro, que dá à
experiência poética Pascoaes uma alta perenidade, e na adequação do atributo
que lhe é dada, o que não te sujidade. Também o lugar onde ele surge, indicado
no segundo verso, e desenvolvido nos dois seguintes, aponta para o dinamismo
duma operação que tanto tem a ver com o acto poético como com o labor da
espagírica. Para obter o ouro é preciso secar a gota de água até ao deserto;
dessa operação, onde a chama é o
artigo, se destila então a pepita de ouro. Dito por outras palavras: o
arquétipo a que o poeta aspira e que vive oculto só pela sublimação da crusta
da matéria se revela e mostra.
Basta esta
primeira sequência de quatro versos para se perceber a pertinência simbólica do
poema em causa. Sob imagens na aparência desencontradas, ajustadas por uma
sintaxe difícil, ele diz o que importa sobre um dos passos capitais da obra de
Pascoaes. Passo agora à imagem do fecho. Recordo: no céu uma estrela dança. Céu ou estrela? Céu e
estrela, pois a estrela é o céu como a flor é a terra. Também aqui, nesta
estrela que dança no pano do céu, reconhece o leitor um segmento já seu
conhecido. É o pico do monte análogo, onde ferve o astro da primeira
incandescência do extra-mundo, esse ponto onde a realidade dos arquétipos do
mundo sensível toca aquilo que já não tem qualquer realidade, nem material nem
incorruptível. Estou de novo ante o ouro impoluto do primeiro verso. Uma
diferença porém entre a abertura e o final: no início tenho a fórmula química
do lápis dos filósofos; no final tenho o termo da operação e já viva e
destilada a alma sublime do mundo, a estrela que brilha e dança. O resto
consumiu-se na chama do deserto, gastou-se na combustão do fogo, que separa o
denso do volátil.
Nova surpresa:
este ponto de chegada, a estrela de seis pontas que se destaca do fogo, o astro
que baila no céu mais alto, nata que se côa no seio da Eternidade, nas trevas da Idade, junto do verbo
original, é a Saudade – e a maiúscula
é do poema, não minha. Mais uma vez, nesta palavra, topa o leitor com artigo
conhecido. Ainda há pouco tomei a saudade como uma das mediações privilegiadas
do supra-real dos arcanos. É pela saudade que em Camões a memória da terra de glória abre caminho, outra
forma de dizer a permanência do paraíso dos arquétipos na terra do sensível. E
foi com a saudade que Pascoaes escalou o Marão e deu no pico com a fusão da
alma com o Espírito em fogo de Eleonor. É pois a saudade que fecha a porta
deste poema, para o deixar suspenso sobre o mundo. Apetece perguntar: quem
disse que a saudade desapareceu da poesia portuguesa depois de Teixeira de
Pascoaes? Quem disse que da saudade na poesia portuguesa da segunda metade do
século XX não ficou rasto? A presença dela no surrealismo português é marcante
e pelo menos em três momentos o é: o túmulo verde cravejado de lágrimas de
Sagir, onde tem abissal dimensão; no céu de Fernando Alves Santos, onde não
menos abissal desvão se toca; num poema de Risques Pereira chamado “Saudade”, a
ler noutra nota, que não farei aqui e guardarei para mais tarde. E já agora um
quarto acrescento: uma carta de Lisboa para o mesmo Risques Pereira, com data
de 25 de Janeiro de 1951, Paris, onde se personifica a saudade e se pede para
virar do avesso a dama (1977: 285), a mesma que serviu ao protagonista de Marános para mediar o pico da montanha
cósmica e que, rijo bicho-de-sete-cabeças, cabra montesa com estrela de luz na
ponta do rabo peixe, chegava para pôr um deus sobre a Terra.
Restam as duas
estrofes intermédias com as duas imagens atrás notadas, o mar e os anjos na branca
rosa. Antes mesmo de avançar por alguma delas, e atendendo ao papel da
abertura e do fecho, da fórmula e da estrela, é fácil de inferir que os quinze
versos intervalares do poema correspondem ao momento operativo da espagírica.
No caso da primeira imagem, encontro um dos pontos em que o trabalho poético de
Alves dos Santos se apoia na amálgama sonora, quer dizer, actua por meio
daquilo que Lisboa chama, em passagem já tocada de Erro Próprio, das mais vivas, a cabala fonética. Foi este processo
de associação sonora que serviu a Cesariny para criar alguns dos mitos maiores que pôs a circular em 1958
e ainda para traduzir com inteira propriedade passos obscuros. Tenho à mão uma
nota que tirei da primeira edição do seu Rimbaud (1960), quando ainda vertia o
sal por Uma Época no Inferno, em que
ele diz assim deste seu método: Verbo
mercurial que rouba à linguagem o que devolve à língua. (p. 108) Recorde-se
ainda a decomposição fonética da palavra soldado
que acaba por dar a expressão ou o mito maior sol dado e que nada tendo a ver com a palavra inicial abre o seu
sentido para o focar de luz. E o mesmo Cesariny quando teve de escrever uma
nota introdutória ao Carlos Eurico da Costa de Sete Poemas de Solenidade e um Requiem (1952) intitulou-a pelo
mesmo método “A Volta do Filho Prólogo”.
Por idênticos
processos de associação e reunião, que vezes sem conta destruíam e reconstruíam
no tear do verbo a palavra, pondo a nu o seu dinamismo interior, nada
complacente com a rotina degradante do uso, roubando pois à comunicação o que
era depois devolvido à significação de origem, praticava a cabala judaica a
exegese e o comento do texto bíblico. Daí o jogo de sons, a cabala fonética, que Lisboa refere no
texto de 1949 e que foi um dos processos de fabricação a que se entregou este grupo
de poetas – e apetece fora de qualquer igreja e apenas dentro do segredo
chamá-los poetas sagrados.
No caso do poema
de Fernando Alves dos Santos tenho o seguinte verso: das minhas mãos o mar. A associação fonética de mar e mão permite-me obter a palavra Marão,
que tanta importância tem na leitura de Pascoaes e que no caso deste poema
estabelece o ponto de passagem entre a fórmula inicial do ouro impoluto e o
termo de chegada, a estrela que dança a
grande altura. Ora é nas encostas do Marão que floresce a branca rosa assistida pelas potências
angélicas e que aponta ao pico onde está o olho do extra-mundo ou a estrela da
Saudade. Outro momento importante do trabalho sonoro deste texto está na
palavra chama, no terceiro verso, que
joga na ambiguidade entre a terceira pessoa do presente do indicativo do verbo chamar e o substantivo feminino, chama, enquanto auréola luminosa e
quente que se liberta das matérias incendiadas. E apetece pelo mesmo método de
distorção fonética pegar em duas ou três outras palavras do texto para com elas
obter efeitos de surpresa. A cama por
onde o mar da mão escorre pode dar ama ou
mama e o adjectivo do décimo nono
verso pelo mesmo passe dá galvanizada,
gaseada e até ganzada. Se no
primeiro caso é a erotização adequada do passo que se encontra, pois doutro
modo não há mar que assim se espraie, no segundo é o torpor da euforia que se
desdobra para dentro, tão para dentro quanto a imensidade se abre de forma
infinita para fora, que se apalpa no anil da carne.
Outros elementos
de análise ficam aqui por revelar, como os sinais das poeiras, o verde, o
verbo, a anímica madrugada, o vulto do mistério, as águas e as bagas, mas o que
atrás foi dito, dos elementos visuais e dos sonoros colhidos de passagem, é o
bastante para se ver em mínimo a arejada largueza dos corredores por onde o
poema corre, o limpo e desimpedido caminho para a estrela final, o calibre do
seu arcaboiço simbólico, que tem um átrio azulejado e um zimbório de
planetário. Fernando Alves dos Santos é um poeta de mão aberta, cuja diagnose é
das mais compensadoras.
Não largo o
poema sem o ajustar a um outro do autor, que me parece ter uma relação
indirecta com ele. Trata-se de “Carta ao Cruzeiro Seixas (na oportunidade)”,
que foi publicado no catálogo A António
Maria Lisboa, libreto da exposição do cinquentenário de nascimento do autor
de Isso Ontem Único, ocorrida na
Galeria da Junta de Turismo da Costa do Sol, Estoril, Primavera – Verão de
1978, por invenção de Cruzeiro Seixas. Desse poema tiro os seguintes versos,
abertura e fecho: Tu sabes que soletro
inocentemente/ como as crianças/ o nome de António Maria Lisboa./ Tu sabes que
ele trazia na sua longa mão/ um sol extenuante/ que compartilhava com os
poetas./ (…) Tu sabes que o António Maria/ foi um guerreiro clássico/ do nosso
adolescente desejo de sermos reais e livres./ Tu sabes que ele será sempre um
corsário morto/ sem deixar de ser um homem/ perpendicular/ geométrico/ e real
como qualquer homem. (2005: 80-1)
Mão longa? Sim,
a mão esticada, a pirâmide que toca as camadas mais afastadas da primeira
consciência e lá põe, num arrepio sem medo, com o sol da consciência, um foco
de luz. À luz desse projector vê-se o Cavalo-Triângulo e outras maravilhas
ossoptóicas que vibram no diapasão fixo de Lisboa. Guerreiro de bronze clássico,
mas sem dente de ouro; corsário emplumado morto, varado no mais alto mastro do
seu galeão de assalto, mas sem olho de vidro e com a visão em febre dos xamãs
arcaicos. Cesariny acertou em cheio, quando percebeu a alarmante coincidência
no ano de 1950, na sutura das duas metades do século, do velho e do novo. Tinha
o ancião de Amarante Joaquim Teixeira de Vasconcelos setenta e três anos e o
pequeno António Maria vinte e dois.
*****
Capítulo
integrante do livro Notas para a
compreensão do Surrealismo em Portugal, gentilmente cedido pelo autor. Para
conhecer melhor vida e obra de António Cândido Franco, visite: http://literaturaliteraturaliteratura.blogspot.com.br/2014/02/conhecer-antonio-candido-franco-vida-e.html. Página ilustrada com fotografias de Teresa Sá Couto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário