A história de
Violette Nozière conta-se em poucas palavras: Violette Nozières é uma rapariga
de dezoito anos, que vive em Paris, e que nada indicia que venha a ter qualquer
notoriedade. Os pais são modestos, vivem num bairro popular, e ela abandonou os
estudos, trocando-os por uma vida de boémia nocturna. De supetão, em finais de
Agosto de 1933, a jovem de dezoito anos é presa e o seu caso salta para as
páginas dos jornais; está acusada de homicídio de pai e mãe. As notícias
despertam a curiosidade do público. Os jornais voltam ao caso. Violette
envenenou na noite de 21 de Agosto os pais, mas a mãe sobreviveu e denunciou a
filha. Dias depois, nova pitada de sal no argumento: a rapariga acusa o pai de
violação sexual continuada. Apesar da acusação, Violette permanece presa, o
auto policial prossegue, a imprensa relata pormenores escabrosos sobre a
licenciosidade sexual da jovem.
É
nesse momento que o grupo surrealista de Paris intervém. O que choca os
surrealistas é a hipocrisia duma moral social que defende, sem folga, a
interdição do incesto e depois faz tábua rasa dele para acusar, livre de
obstáculos, uma jovem de dezoito anos. Os surrealistas deixam no ar uma
pergunta: Violette Nozières, carrasco ou vítima, criminosa ou inocente?
Entretanto o processo judicial segue, com uma opinião envolvente cada vez mais
envenenada. O desinteresse pela violação é de tal ordem que o ministério
público chega a oferecer à jovem em troca da retirada das acusações contra os
pais uma redução da pena. É então que o grupo surrealista decide intervir em
força. É preparada uma brochura intitulada Violette
Nozières, com uma tiragem de dois mil exemplares e que se destina a marcar
a posição do grupo a favor da rapariga. Colaboram nela nove artistas plásticos
(Man Ray, Dalí, Yves Tanguy, Max Ernest, Victor Brauner, René Magritte, Marcel
Jean, Hans Arp e Alberto Giacometti) e oito poetas (A. Breton, René Char, P.
Éluard, Maurice Henry, E-L-T. Mesens, César Moro, B. Péret e Guy Rosey). É uma
homenagem à vítima do que têm por um massacre de expiação colectiva.
Quando
decidem a impressão do opúsculo, dão-se conta que todas as portas se fecham. As
tipografias francesas estão proibidas pela polícia de imprimir o panfleto
surrealista. Para contornar a proibição, pensa-se na Bélgica, onde o interdito
não funciona. Criam-se para o efeito, com o apoio dos surrealistas belgas, as
edições Nicolas Flamel, onde finalmente aparece a brochura Violette Nozières, capa de Man Ray, quarenta e quatro páginas e a
seguinte data: 1 de Dezembro de 1933. Alguns exemplares foram apreendidos na
fronteira pela polícia mas grande parte da edição – constituída por vinte
exemplares numerados e dois mil em edição vulgar – entra em França, é
distribuída em livraria e vendida por baixo do balcão. O grosso da difusão coincide
com o momento em que o julgamento se inicia, em Outubro de 1934. Apesar da
ruidosa defesa dos surrealistas, Violette na barra do tribunal acaba condenada
à morte, pena que, atendendo à idade e género, foi comutada em prisão perpétua.
Vinte anos depois, em 1953, Breton volta ao caso, com um texto “Réhabilitez-la.
Cachez-vous!”. Violette Nozières foi reabilitada em 1963 e morreu três anos
depois, no mesmo ano de Breton.
Conte-se
agora outra história, esta em Portugal, setenta e sete anos empós. Em 20 de Julho
de 2010 um homem de quarenta anos é preso a norte de Lisboa, na zona Oeste,
lugar de Carqueja, concelho da Lourinhã, freguesia de São Bartolomeu dos
Galegos, já a caminho de Peniche. Chama-se Francisco Leitão; exerce no lugar a
profissão de sucateiro. Vai acusado de quatro crimes: o primeiro em 1995 e os
três seguintes entre 2008 e 2010. O primeiro recai sobre um colega de
profissão, bastante mais velho, e os seguintes sobre jovens da região, Tânia
Ramos, Ivo Delgado e Joana Correia. Os corpos estão por descobrir; fala-se
vagamente em crimes passionais no que diz respeito aos três jovens. A ponta do
caso foi o desaparecimento de Joana Correia, em Março de 2010, o único
comunicado à polícia. Ao que parece nesse mesmo dia os pais participavam num
programa sobre jovens desaparecidos. Pouco mais se sabe; o comunicado da
polícia é parco. O homem foi levado para a Unidade Nacional Contra o
Terrorismo, da polícia judiciária, em Lisboa.
No
dia seguinte há uma torrente nova de informação. Não é todos os dias que
aparece um assassino em série e os jornais e as televisões estão dispostos a
explorar o caso. Precipitam-se para a Lourinhã, na tentativa de obterem mais
pormenores. Nova surpresa: Francisco Leitão vivia num recinto que ele próprio
construíra, sem paralelo com nada conhecido. É uma arquitectura pessoal, misto
de palácio encantado em miniatura e de habitação infantil. O recinto de entrada
está cheio de estatuária em pedra ou em gesso que evoca o titanismo alado do
Aleijadinho. Na região a morada é conhecida pelo castelo. A reputação de Francisco Leitão junto dos conterrâneos é
boa. Homem prestável, pronto a ajudar, de boa convivência e boas palavras.
Passa por excêntrico, mas não por criminoso. A sua alcunha entre os da zona é
Chico do Avião, porque um dia adaptou um volante de avião a um automóvel. A
princípio a alcunha ainda fez algum caminho na imprensa escrita e nos
telejornais. O assassino em série era o Chico
do Avião. Não colou porém. No mesmo dia chegam outras notícias: há filmes
na rede que correm em nome de Francisco Leitão, todos captados no interior da
casa. O carnaval é patente: móveis do século XIX ao lado de imagens de índios.
Numa das sequências anuncia um terramoto para Agosto de 2010, noutra
considera-se o rei dos gnomos, o rei Ghob, noutra ainda faz passes de magia.
Anuncia o fim do mundo e o início duma nova era. Correm as primeiras
fotografias: o homem é baixo, atarracado, espesso e terroso. Pouco lhe falta,
dizem, para anão. Está encontrado o nome mediático de Francisco Leitão: Rei
Ghob.
No
mesmo dia o homem é presente ao tribunal de Torres Vedras, onde vivem os pais
de Joana Correia. Tem dezenas de populares excitados à espera. Querem fazer
justiça; insultam-no e agarram-no. Ele mostra-se de cara descoberta,
indiferente à desordem. Comporta-se como um alienígena; tem mais pressa do que
medo. Os pormenores da acusação saltam para a imprensa: deixando de lado o
colega de profissão, de que pouco se sabe, a não ser o nome, Pisa Lagartos, os
dois primeiros jovens, Tânia Ramos e Ivo Delgado, desaparecidos em 2008, são
namorados; Leitão, perdido de amor pelo rapaz, comete assim um duplo crime
movido pelo ciúme. O terceiro é uma rapariga, Joana Correia, dezasseis anos,
que namorava uma outra paixão de Leitão. O processo usado nos três foi o mesmo:
sequestro num subterrâneo da habitação, preparado para o efeito, um simples
buraco de pouco mais dum metro no pátio da casa, seguido de homicídio. Mais
tarde ocultação dos corpos. O acusado nega tudo e recusa dizer mais.
É
decretada a prisão preventiva de Francisco Leitão. Recolhe ao calabouço da
polícia judiciária em Lisboa, Nos dias próximos, chovem as imagens do Rei Ghob,
extraídas dos filmes que correm na rede e do momento da chegada ao tribunal de
Torres Vedras. Entrevistas com os pais das vítimas e familiares do acusado. Tem
irmãos, cunhados e foi casado. A mulher deixou-o por lhe ter descoberto casos
de homossexualidade. Exploram-se as imagens da casa e dão-se a conhecer
pormenores da acusação. Leitão teria os telemóveis das vítimas. Só isso explica
que os pais de Tânia e de Ivo nunca comunicassem o desaparecimento dos filhos.
De quando em quando, recebiam mensagens escritas, dando notícias do paradeiro
dos filhos. Entretanto as novas que chegam da polícia não são animadoras: os
corpos, apesar das buscas, continuam por encontrar e Leitão persiste em tudo
negar.
Chegam
entretanto as revoluções do mundo árabe e por momentos a imprensa distrai-se. O
caso arrefece. Quando o primeiro aniversário da detenção de Francisco Leitão
passa, em Julho de 2011, aparecem dados novos. Fala-se de dezoito a vinte
violações sexuais de menores feitas no castelo. Regressam as imagens da exótica
moradia de Carqueja e os pormenores da vida sexual de Leitão. Está descoberto o
sentido do Rei Ghob: os gnomos são os miúdos que ele virava do avesso no
castelo. Desfiam-se pormenores: drogas, magias, hipnoses, uma actividade sexual
desmedida. Novo processo judicial, desta vez no tribunal da Lourinhã, por abuso
sexual de menores. Francisco Leitão continua em Lisboa, em prisão preventiva, a
aguardar julgamento. Em Novembro o processo de Torres Vedras é marcado para 9
de Janeiro. Os corpos continuam por aparecer e o acusado nega qualquer
implicação nos homicídios. Mais não diz. Começa o processo na barra do tribunal
de Torres Vedras e o caso volta em força aos jornais e às televisões. O homem
recusa dizer seja o que for. Por fim, no final de Março de 2012, quando é
condenado à pena máxima, vinte e cinco anos de prisão, sem que os corpos tenham
aparecido, faz uma breve declaração de inocência: não matei ninguém! Está tudo por explicar.
É
neste momento que Cruzeiro Seixas se lembra da história de Violette Nozières e
da tomada de posição do grupo surrealista de Paris. Por que razão se lembrou
Cruzeiro Seixas de Violette Nozières? Decerto pelo crime e pelo processo
judicial que a levou a ser condenada à morte. Para além da condenação, que
outros elementos podem ter feito no espírito de Seixas a associação com o caso
de Francisco Leitão? Poucos ou nenhuns. Leitão acabou condenado por três homicídios,
sem que seja possível invocar para ele a condição de vítima que os surrealistas
franceses pediram para a jovem de Paris. Esta foi vítima de abusos por parte do
pai, a quem depois, aos dezoito anos, assassinou; aquele, por ciúme, ao que se
deu por provado, cometeu três homicídios, sem que tivesse sofrido qualquer mau
trato por parte das suas vítimas. Que levou pois Seixas a associar os dois
casos? Não mais do que a força do crime, a violência do acto e a pesada
condenação dos acusados nos dois casos.
Seixas
foi porém além do que a associação permite; pretendeu intervir em favor do
condenado. Entrou em contacto com velhos amigos que na década de cinquenta e de
sessenta estiveram ligados à actividade surrealista em Portugal, falou-lhes de
Violette Nozières e propôs-lhes um estudo do caso e a feitura dum comunicado à
imprensa em que se tomaria a defesa de Francisco Leitão. Ninguém se lembrava de
Violette; olharam-no pois com frieza e desconfiança; ninguém se quis
comprometer. Reformulou então o projecto, sem todavia desistir dele. Quase
cego, com mais de noventa anos, pediu a uma amiga, que o guiasse até Carqueja,
na ponta da Lourinhã, para falar com as pessoas do local e montar a história.
Demais, queria fotografias do lugar e da casa. Não conseguiu obter um único
testemunho, pois todos recusaram falar. Obteve porém as fotografias que
desejava. Depois, por problemas de saúde, foi obrigado a afastar-se para
Famalicão, Minho, deixando Lisboa e arrumando até ao momento em que escrevo
(final do Verão de 2012) o caso.
Que
levou Cruzeiro Seixas a tomar a defesa de Francisco Leitão? Começo por outra
pergunta: que motivo de interesse viu Cruzeiro Seixas em Leitão? Na verdade foi
aquilo que nele o interessou, que o levou a tentar uma intervenção surrealista
a seu favor. A única resposta à pergunta é a seguinte: foi a casa do Rei Ghob
que lhe despertou a atenção e o atirou para a personagem. Desde Julho de 2010
que ele vira as primeiras imagens da casa nos telejornais da noite. Nessa
época, de mistura com as acusações e com dificuldades de visão que se agravavam
dia para dia, pouco ligou, pelo menos de forma consciente, ao que viu ou ouviu.
Foi preciso esperar pelo regresso do caso, no final do ano de 2011 e nos
primeiros meses de 2012, com o julgamento, para reparar nos pormenores do caso
(homossexualidade, ciúme, paixão exacerbada, delírios mágicos) e observar com
atenção a casa da Carqueja. A surpresa nesta foi enorme. Procurou imagens de
jornal para poder atentar nela mais de perto. Nesse momento, o do julgamento de
Torres Vedras, todas as noites, as televisões e os jornais passavam notícias do
caso; a abundância de imagens era farta. À medida que o conhecimento dos
pormenores da casa crescia, mais o espanto subia. Estava diante daquilo que
Dalí elogiara como uma arquitectura onde a beleza se fazia comestível, tão rara
em época de normalização clássica. Ao tempo que isso acontecia, caía a pena
máxima em cima de Francisco Leitão. Foram estes cruzamentos que levaram
Cruzeiro Seixas a encarar na Primavera de 2012 uma intervenção surrealista a
favor de Leitão.
Como
ler esta intervenção? Já se viu que o paralelo entre Violette Nozières – ou até
Germaine Berton, que matou a tiro em 1924 o secretário de redacção de L’Action Française e que motivou no ano
seguinte a sua defesa pelos surrealistas franceses – e Francisco Leitão não
existe. A rapariga foi vítima de atitudes que a sociedade actual condena;
actuou pois em legítima defesa. O homem não sofreu qualquer dano; os seus
actos, provados em julgamento, não têm atenuante. Logo não será por aqui que
passa o caso do português. O trilho de leitura é outro. Também a aproximação
deste caso com o de Timothy Mc Veigh, que mereceu de Mário Cesariny uma
intervenção plástica em sua defesa, não tem saída. Veigh foi condenado à morte
por electrocussão depois de acusação de terrorismo político, pena que cumpriu
em 2001 e que está na origem da intervenção de Cesariny. Esta é para ser
encarada como protesto contra a pena de morte. Nada de semelhante no caso de
Francisco Leitão.
A
intervenção de Seixas só pode ter uma justificação (aceitando como provados os
crimes cometidos): chamar a atenção para uma situação em que o Eu social tinha
pouca consistência. Só uma tal fragilidade explica os delírios proféticos, os
furores passionais, os transportes mágicos, os entusiasmos imaginativos. É ela
que explica ainda os crimes de sangue e até a falta de arrependimento posterior
(aceitando sempre que ele cometeu os crimes pelos quais foi condenado). Este
homem tinha um largo e extenso Eu arcaico, sem censuras de qualquer espécie,
que se sobrepunha ao seu pequeno Eu social, muito pouco trabalhado e
desenvolvido e no qual empenhava apenas uma curta parcela da sua vida, aquela
que lhe permitia ter no dia-a-dia uma boa vizinhança com as pessoas do lugar.
Mas até aí o Eu arcaico vinha ao de cima, com os delírios arquitecturais da
casa. Em tudo o resto, do amor ao entendimento social, na vida privada ou no
relacionamento com as instituições, este homem vivia sem Eu social. Ao
contrário dos casos em que o investimento no Eu civilizado é total, abafando
por inteiro o Eu arcaico, o que aqui se encontra é o caso dum homem que por
razões pessoais ou de isolamento geográfico, ou pela mistura das duas, ignorava
as restrições do Eu social e vivia segundo os ditames livres do Eu arcaico.
Que
quero dizer com isto? E que tem isto a ver com a intervenção surrealista em seu
favor? Cruzeiro Seixas percebeu o Eu arcaico deste homem pela arquitectura que
dele viu. Tratava-se duma arquitectura muito mais essencial do que todas as que
são feitas hoje pelos arquitectos de renome de hoje. Era o caso dalguém que não
aceitava a normalização na construção (piscina, relva e rectângulo) e sem nada
conhecer de Dalí, de Gaudí, de Breton (escrevendo sobre o Facteur Cheval) ou de
Hundertwasser empreendera uma obra que tinha fortes afinidades com as criações
e as teorizações destes autores. Foi isso que o atraiu para Leitão. Viu nele a
situação dalguém que chegava ao automatismo psíquico sem nunca ter lido uma
linha sobre o assunto; tocava por processos seus o que muitos surrealistas
haviam tocado doutro modo. Que faltou então a este homem para ser Dalí ou
Gaudí, mesmo que só o Dalí e o Gaudí da Carqueja? Doutro modo: que tiveram a
mais do que ele Dalí, Gaudí, Hundertwasser ou Breton (que afirmou no manifesto
de 1930 que o mais simples dos actos
surrealistas era vir para a rua de pistola em punho e disparar ao acaso sobre a
multidão)? Tiveram a mais a alquimia do verbo ou a das cores e a das formas.
Uma coisa é incendiar o mundo, outra representá-lo. Há pois uma diferença entre
um Eu arcaico que se vive de forma espontânea e simples e um Eu arcaico que é vivido em termos de representações
simbólicas, de enriquecimentos progressivos de conteúdos. Breton teve sempre o
cuidado de avisar que o mais simples não era o mais recomendável. Uma coisa é
ser Germaine Berton, Violette Nozières ou Francisco Leitão, outra é ser marquês
de Sade, André Breton ou António Maria Lisboa.
É
pois muito fácil perceber agora o que Cruzeiro Seixas pretendeu com a sua
intervenção a favor do Rei Ghob: é preciso dizer a uma sociedade normalizada,
fruto das interdições milenares que criaram a Lei e o castigo, que nem sempre é
possível recalcar o Eu arcaico. Há indivíduos que por motivos vários continuam
de forma irrefragável ligados a essa matéria primordial, em que os interditos
(incesto, pedofilia e homicídio) não existem. Tais indivíduos são naturalmente
refractários à formação e ao amadurecimento do Eu social; constituem uma
minoria, já que a grande maioria segue o caminho inverso, interiorizar os
interditos a tal ponto que sufoca em nevoeiro o Eu arcaico, que se torna assim
um Encoberto recalcado. Trata-se todavia duma minoria visível, que se manifesta
de forma ruidosa, deixando uma marca à sua volta. A sociedade dos interditos inventou
as prisões, os hospícios e os asilos para esconder e castigar essa minoria
anormal. Entre essa fauna estão os parricidas, os tarados sexuais, os
assassinos em série, os estripadores, quer dizer, todos os que vivem seu Eu
arcaico de forma imediata (Breton diria simples), sendo incapazes de lhe
sobrepor o Eu social.
O
que Seixas quer dizer com a sua chamada de atenção é que tais seres podiam dar
saída diferente ao seu Eu arcaico caso houvesse desde a infância outra
educação, que não aquela que prepara para a concorrência desenfreada em volta
do dinheiro, e que exige a formação dum Eu social sufocante e exclusivo.
Francisco Leitão podia ter sido tão-só o Gaudí ou o Bataille da Carqueja se lhe
tivessem ensinado, além ou aquém dos processos do recalque, que ele não pôde
incorporar, as técnicas da construção simbólica. Que teria sido o poeta de Isso Ontem Único sem tais técnicas?
Porventura só parricida e violador da mãe. Em vez de ser hoje um grande poeta
exemplar, seria sem tais avanços apenas mais um caso prisional. Assim, com a
elaboração simbólica que interiorizou e desenvolveu graças ao surrealismo e ao
automatismo, foi um ser discreto, em permanente trânsito, capaz de fazer um
equilíbrio complexo mas eficaz entre as suas tendências instintivas mais fundas
e pessoais, os desejos irreprimíveis do seu Eu primitivo, e as imposições
sociais exteriores. Assim porventura teria sido Francisco Leitão caso lhe
houvessem dito ou mostrado que além da dicotomia entre a censura e o acto de
satisfação imediata dos desejos primitivos e originais, os mais imperiosos
nestes casos de absoluta insolubilidade do Eu arcaico, existia um terceiro
termo, o da representação simbólica, capaz de conciliar com eficácia as duas
vias.
*****
Capítulo
integrante do livro Notas para a
compreensão do Surrealismo em Portugal, gentilmente cedido pelo autor. Para
conhecer melhor vida e obra de António Cândido Franco, visite: http://literaturaliteraturaliteratura.blogspot.com.br/2014/02/conhecer-antonio-candido-franco-vida-e.html. Página ilustrada com fotografias de Teresa Sá Couto.
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