A história do
surrealismo em Portugal apresenta de forma nítida três pontos de crescimento: o
primeiro, relativo ao seu nascimento, na década de quarenta, com arranque em
1942 e fecho em 1949, altura em que têm lugar em Lisboa duas exposições
surrealistas; o segundo, relativo à década de cinquenta e sessenta, em que se
forma uma nova geração surrealista, que nada conheceu dos anteriores sucessos;
por fim, o terceiro, posterior à década de setenta, quando muitos dos
protagonistas anteriores já não existem e a actividade surrealista ganha nova
situação.
Cada um destes
momentos teve os seus sucessos e desenvolvimentos. A história da década de
quarenta é conhecida, com dois grupos surrealistas distintos, o primeiro tendo
por venerável António Pedro, e o segundo tomando por centro o diálogo entre
dois novos, Cesariny e Lisboa. Não quero insistir aqui no que diferenciou os
dois grupos; o que se disse nas notas anteriores está muito perto de chegar. Só
o grupo de Cesariny e Lisboa parece ter vivido a aventura surrealista com
verdade intrínseca. Daí o irrisório, a roçar o nulo, de certas produções
“surrealistas” que saíram do grupo de António Pedro, como esse Balanço das Actividades Surrealistas em
Portugal (1949) de José-Augusto França. Daí ainda a força singular que
cintila nas criações de Lisboa e de Cesariny.
Uma coisa é
segura: o nascimento do surrealismo em Portugal beneficiou dos avanços do
surrealismo francês, que durante e depois da guerra contra o nazismo se
libertou do marxismo sufocante, se recentrou no que mais importava e se livrou
de vez do que o podia confundir com doutrina religiosa institucional. Só um tal
avanço justifica, para apenas falar de Breton, a importância capital e única na
época e ainda hoje dum livro como A Arte
Mágica (1957), resultado paciente dessa reelaboração de terceiro nível do
surrealismo francês. Ao invés do que se tem dito, a década de quarenta, não
obstante o esvaziamento mediático, ou por causa dele, significou para o
surrealismo um passo em frente e representou para o aparecimento do surrealismo
em Portugal um húmus de excepcional favor. A segunda metade da década de
quarenta foi um meio muito mais favorável à formação do surrealismo português
do que teria sido a década anterior, marcada pelo esforço, e pelo cansaço, da
adesão do surrealismo ao materialismo dialéctico, com o consequente
esquecimento aqui e ali daquilo que era específico ao movimento. Caso o
surrealismo tivesse chegado a Portugal dez ou doze anos antes nunca porventura
teria sido possível chegar à obra dum António Maria Lisboa; o horizonte do
surrealismo português não teria ido além porventura de António Pedro, cujo
tirocínio foi em grande parte produto da década de trinta. A poética de Lisboa,
cuja situação no surrealismo internacional está ainda por entender, mas desde
já se afigura de primeira linha, só no quadro dos passos que se seguiram à
escrita de Prolegómenos e de Arcano 17 se compreende.
Na verdade a
melhor forma de distinguir na década de quarenta os dois grupos surrealistas
que surgiram em Portugal é tomar o grupo tutelado por Pedro como um agrupamento
típico da década de trinta, incaracterístico e repetido, e ver no grupo de
Cesariny e Lisboa um núcleo nascido do choque impressivo do terceiro manifesto
e do leito novo que ele abriu. As alusões a Engels, o desprezo pelo esoterismo,
que ele escreve com i, o assentimento em nota final a Noël Arnaud no caderno de
França não deixam folga de dúvida sobre os horizontes limitados em que o grupo
de Pedro se movia. Caso o surrealismo em Portugal não tivesse dado passo além
do que se reporta no balancete de França e do que se fez na loja de Pedro,
estaria ele na situação irrisória da quase nulidade. Nenhuma obra sua e nenhuma
palavra dele teriam interesse para o surrealismo geral. O escoadouro natural
seria, como aliás foi, em O’Neill e nos outros, a auto-negação e o silêncio,
esse mesmo que Breton pôs nas “Efemérides Surrealistas” publicadas em 1955 como
apêndices da edição desse ano dos manifestos,
e onde não há qualquer alusão ao grupo de Pedro, o único de que o escritor
gaulês tinha notícia, silêncio que se manteve ainda mais frio na reactualização
de 1962.
Com a largueza e
o adianto de aproximações que Cesariny e Lisboa moveram, colocando Portugal na
ponta de avanço do que então se fazia em termos de surrealismo – e nesse ponto
a obra de Lisboa é até premonitória do trabalho de Breton para o livro de 1957,
e o que hoje se lamenta é que o francês, por razões variadas, em primeiro lugar
de língua, não tenha podido aceder à obra do português – , o grupo de Pedro passa
a nota de rodapé das actividades surrealistas em Portugal. E se assim é, ainda
o deve ao facto de no início, Verão de 1947, esse grupo ter nascido grandemente
do empenho de Cesariny e de só a ele e ao círculo dele (Moniz Pereira, António
Domingues, Fernando de Azevedo, Vespeira e Alexandre O’Neill) dever existência.
Também a
história do segundo momento do surrealismo português, a contar nas duas décadas
seguintes, é conhecida. Cesariny dá dela abundância de materiais no texto “Para
uma Cronologia do Surrealismo em Português”, de 1973. Ao contrário da primeira
década, que aqui trato em várias direcções, metendo mão na obra escrita ou
plástica dalguns protagonistas, estas notas não entram nem pouco nem muito,
isto com exclusão das rápidas alusões ao abjeccionismo a propósito do final do
segundo manifesto de Breton, pela criação desse segundo momento do surrealismo
em Portugal, que Cesariny chama nos materiais de 1973, os grupos dos cafés
Royal e Gelo, ambos em Lisboa, dando-os por contaminados de existencialismo, o
que não surpreende em época de irradiação máxima de Sartre, a caminho do Nobel
(1964). Não se nega o enxerto, que levou até à deserção duns tantos para o lado
da literatura engajada ou militante, num fôlego de segunda ou terceira geração
do neo-realismo indígena, mas ainda sobra um resto de alta qualidade.
Para as bandas
do surrealismo conto o seguinte: uma revista com três números, Pirâmide (1959-60), um poeta fulgurante
da prosa, Ernesto Sampaio (1935-2001), em que alguns quiseram mesmo ver o mais
denso e ágil teorizador do surrealismo português, e um outro não menos ardente
do verso, Herberto Hélder (1930). Junte-se um desenhista, João Rodrigues
(1936-1967), cheio de verve e sainete; meta-se um pintor, D’Assumpção
(1926-1969), avaliado já por superior a Vieira da Silva, e ponha-se lá a deriva
do abjeccionismo com a parte mais importante da obra escrita de Luiz Pacheco
(1925-2008). E ainda fica por tocar alguma coisa, ou até muita, o bastante para
ser pepita ou se entender que se tem aqui, no geral desta constelação, o mais
largo alfobre poético desses anos (António José Forte, Virgílio Martinho, José
Sebag, João Vieira, Manuel de Castro, José Manuel Pressler, Benjamim Marques,
António Barahona).
Depois da última
fronteira que o surrealismo conquistara na língua em 1953, ano em que foi dado
à estampa Isso Ontem Único e o
manifesto colectivo Afixação Proibida,
com a obra toda de Lisboa conhecida, não se pode tomar por extemporânea a
riqueza poética que se topa na segunda metade da década e na primeira da
seguinte no seio desses grupos, a coincidir com a edição de cinco livros de
alto voo de Cesariny, que muito devem ter ajudado essa geração a meter no bolso
a valiosa pepita que lograram, Manual de
Prestidigitação (1956), Pena Capital
(1957), Alguns Mitos Maiores (1958), Nobilíssima Visão (1959) e Planisfério e Outros Poemas (1961), este
do mesmo ano de Poesia (1944-1955), o
seu primeiro labor antológico, com admirável intervenção plástica de João
Rodrigues.
Sobre o
abjeccionismo quero ainda dar uma palavra. Paga a pena ver a sua árvore
genealógica e perceber a sua raiz. Já se sabe que o movimento é o resultado da
fusão que aconteceu na segunda metade da década de cinquenta no seio dos grupos
que frequentaram o Royal e o Gelo e se nutriram da herança do grupo dissidente
da década anterior. Também se sabe que quem lhe deu voz pública foi Pedro Oom,
que vinha como Cesariny da década anterior. Isso aconteceu na entrevista dada
em 1962 ao Jornal de Letras e Artes (6 de Março). É o momento em que a
pergunta final de Erro Próprio de
António Maria Lisboa é vascolejada em que
pode fazer um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos
e a aspiração à síntese, tão da estima de Breton, atraído pela subida aos picos
do sublime, é substituída por uma saraivada chã de relâmpagos fatais (mesmo
idealmente, duas proposições antagónicas não se podem fundir sem que logo nasça
uma proposição contrária a essa síntese). Cesariny, não obstante as resistências posteriores, veja-se
por exemplo o que ele diz em notas da edição de 1977 de António Maria Lisboa
(p. 390 e 391), aceitou na época este novo broto, abrindo-lhe sem receio a
porta na antologia imediatamente posterior, SURREAL-ABJECCION-ismo
(1963), uma das últimas que fez, se não a derradeira. Mais tarde dirá assim,
numa rasura definitiva do caso: aqui e agora e sempre em todo o lado o
surrealismo não tem nada a ver com o abjeccionismo ou só terão de comum o
haverem-se conhecido na cadeia, onde vai tanta gente por tão diversos cantares
e até só por recreio, visita de estudo e turismo (…). (in As Mãos na
Água e a Cabeça no Mar, 1985, p. 239)
Metendo na conta
a nota de Cesariny da edição de 1977, fica-se a saber que a abjecção passara já
pelo grupo dissidente de 1949 e que nessa época, a do poema “Um Ontem Cão”, ou
até antes, Oom repetia, sem que Cesariny fosse ao entusiasmo, um preceito
tirado de poeta francês (c’est au fond de
l’abjeccion que la pureté attend son œuvre), e Lisboa dava corpo a algumas
dessas preocupações no manifesto Erro
Próprio, talvez na pergunta final, que serviria depois à torção de 1962 (p.
390). Oom levou a abjecção para os grupos seguintes, Royal e Gelo, dando-lhe
saída pública e obtendo largo favor junto dos novos [João Rodrigues, por
exemplo, em entrevista ao Jornal de Artes
e Letras (15-9-1965), declara-se abjeccionista e não surrealista], se bem
que o parto da ideia remontasse ao grupo de Cesariny e Lisboa, em especial à
conversa nele entre Petrus (nome de guerra de Pedro Oom) e Lisboa, troca de
resto anterior à formação do grupo, pois Lisboa e Oom conheciam-se desde 1944.
Que António
Maria Lisboa sobrevoou a abjecção, que a incorporou até no seu discurso, vinda
de si ou de Oom, nenhuma dúvida, a ponto de se poder dizer que é nos textos
dele que está, pelo menos na escrita, a raiz de tudo. Basta ler com atenção um
texto de Isso Ontem Único, “Alguns
Personagens”, para se provar a presença. Em dado passo diz-se: É no poeta visível a inépcia, que é
abjecção, de si perante e numa vida a que foi chegado. O mundo social, o mundo
como tal organizado, é o obstáculo que o leva nos desencontros sucessivos com a
felicidade e na luta contra ele à mais penetrante percepção do mundo autêntico
– longínquo aqui agora e inumano! (1977: 184) A abjecção é pois a falta de
aptidão do poeta para o mundo social. Doutro modo dito: a abjecção é o retrato
do Eu social do poeta, pouco trabalhado, pouco destro, em tropeções constantes
ou paralisias imobilizadoras, por contraste com a pesquisa viva do Eu arcaico,
que o leva, pela via da construção simbólica, não pela do instinto, à percepção do mundo autêntico e à vida
activíssima do espírito.
Logo o poeta
surrealista está obrigado a viver a abjecção,
mas apenas como contraponto exterior do seu trabalho interior. Trata-se duma
consequência, não duma realidade procurada, e duma consequência nem sequer tão
sufocante e absorvente que não possa ser alijada e até integrada na viagem do
poeta em direcção do que mais lhe importa, a fonte pura dos desejos e das
imagens que jorra na terra dos arquétipos. Um óbolo irreversível nesta
consequência: o poeta – não o que faz versos, mas o verdadeiro poeta, aquele
que se preocupa em exercitar no dia-a-dia a ginástica de Jarry, dormir acordado e viver responsavelmente o sonho – não tem salvação social possível,
e este é aliás o ajuste final do texto de Isso
Ontem Único. Adormecer e ficar acordado, assistir ao espectáculo do
interior, anotar as espécies da alma, não é compatível com as metas invasoras
da dita racionalidade social, as que são avançadas como sendo hoje de concorrência e de optimização, sempre mercantil, entenda-se, com que a sociedade
regula, normaliza, civiliza e socializa à força, sem dar saída ou atenção
mínima à construção simbólica dos conteúdos arquetípicos, o Eu dos seus
membros, o que leva depois aos violentíssimos desajustes dos Reis Ghobes.
Na mesma
direcção vai o uso da palavra, ou do neologismo (abjeccional) que por esta
época e no seguimento da sua conversa com Petrus Lisboa cria a partir do
vocábulo em uso, desta vez sob forma de advérbio de modo, na folha póstuma, Aviso a Tempo por Causa do Tempo,
publicada por Luiz Pacheco em 1956 e republicada no primeiro número da revista Pirâmide. Cito: que sendo individualmente e portanto abjeccionalmente desligados das
normas convencionais (…). (1977: 110) A individualidade de que aqui fala
Lisboa é o Eu arcaico que o poeta tem a obrigação de revelar e conhecer, por aí
se afastando do Eu social, que é vivido de forma abjecta, quer dizer, de modo
desinteressado e inepto, sem jeito
para o negócio e para a vida dita prática.
A consciência
que Lisboa tem da inaptidão social que o poeta desenvolve no seu trabalho de
mineração da alma – e só este labor por dentro, de olhos fechados, justifica a
inabilidade para o lado de fora, o da sociedade – é de tal ordem que não foi
preciso esperar pela segunda metade da década seguinte para aparecer cunhado, e
até em maiúsculas, um sistema em torno da abjecção. A palavra abjeccionismo, que tanta fortuna virá a
ter na primeira década de sessenta, com a obra de Luiz Pacheco, o tratamento de
Oom e a declaração de João Rodrigues, já existe em António Maria Lisboa.
Leia-se o seguinte passo da carta escrita em Abril de 1950 a Cesariny: Como dizia no meu Manifesto Erro Próprio
por outras palavras: não se tratava em
mim (em nós) de negar o Surrealismo e os seus princípios, mas ilibava-me eu de
tomar lugar na querela do eu sou, tu não és. Serei ou não surrealista de hoje para o futuro com a minha
METACIÊNCIA e o NOSSO ABJECCIONISMO – eu não me pronunciarei sobre tal.
(1977: 279)
Metaciência e
abjeccionismo, quer dizer, real autêntico que o poeta visita com o Eu arcaico e
incapacidade de se adaptar a uma sociedade que pede, em nome de novas
orientações de optimização mercantil, a determinar o interdito, a decapitação
desse mesmo Eu e a formação duma nova e castrada entidade de consciência, o Eu
social ou civilizado. Em Lisboa real autêntico e real abjecto são pois como
interior e exterior, verso e reverso do poeta: por dentro, com o olho aceso da
imaginação, vive a experiência activa da consciência a sondar os mundos da
alma; por fora, com os olhos sensíveis meio adormecidos, a paralisia do corpo,
a catalepsia dos sentidos físicos, está a inabilidade do social tal como os
valores da acumulação de riqueza o entendem. Isto quer dizer que no momento do
seu nascimento, só o contacto com a terra dos arquétipos justifica o existir,
para o exterior, do abjeccionismo. Deixo este excurso em torno da palavra para
que se perceba o sentido original do vocábulo no momento do seu nascimento e se
possa assim ter no porvir um termo seguro para aferir da sua evolução semântica
posterior até à rasura final de Cesariny.
Resta o terceiro
momento da história do surrealismo em Portugal, que abre na década de setenta –
a derradeira manifestação dos grupos do Royal e do Gelo, paralisados pelo
desaparecimento físico dalguns dos seus mais valiosos membros (José Sebag, José
Manuel Pressler, João Rodrigues, Manuel de Castro e D’Assumpção), é a
publicação do número único da revista Grifo
(1970) – e vai até à morte de Cesariny. A história deste terceiro momento está
toda por fazer. Deixo aqui alguns dados que poderão ser aproveitados de futuro
num apanhado geral do período. O ponto de partida desse momento, distante o
bastante para se ter nele alguma mão, situa-se na actividade editorial que na
primeira metade da década de setenta Cesariny e Seixas promoveram.
Que actividade
foi essa? Em 1971 a edição de Reimpressos Cinco Textos de Surrealistas em
Português, logo seguida no ano
seguinte, 1972, de Aforismos de Teixeira de Pascoaes e, em 1973, dum
terceiro caderno, Contribuição ao registo de nascimento existência e
extinção do grupo surrealista de Lisboa com uma carta acrílica do mês de Agosto
de mil novecentos e 66 / número da besta / editado em trezentos exemplares por
mário cesariny e cruzeiro seixas no quinquagésimo aniversário da recusa de
duchamp em terminar o grande vidro e no do nascimento sempre possível ainda que
sempre improvável de sete novos justos ignorados, que teve ainda reedição,
no ano seguinte, o da revolução dos cravos, com referência ao 50º
Aniversário do Primeiro Manifesto Surrealista. Esta actividade continuada
marca o ponto de arranque da terceira fase da actividade surrealista em
Portugal, muito mais centrada nos sobreviventes do grupo dissidente da década
de quarenta, onde se coara e enxugara a pedra filosofal do movimento em
Portugal.
Que
novidade há, se novidade há, nesse terceiro momento? Repare-se para já na
natureza das publicações feitas. O primeiro caderno, dado à estampa logo depois
do número único de Grifo, e daí o
salto dum segundo para um terceiro tempo, tem o seguinte material: “A Afixação
Proibida”, “Aviso a Tempo por causa do Tempo”, “Surrealismo e Manipulação”,
“Para Bem Esclarecer as Gentes que Ainda Estão à Espera, os Signatários vêm
Informar que:”, “Não há Morte na Morte de André Breton” “Para Bem Esclarecer as
Gentes que Continuam à Espera, os Signatários vêm Informar que:”. Só os dois
últimos textos são recentes; mesmo assim o derradeiro em glosa de folha
colectiva muito anterior. Todos os outros são textos da década de
quarenta, início de cinquenta, fruto da actividade do grupo dissidente. Está lá
mesmo o ponto de arranque do grupo, o cadáver esquisito A Afixação Proibida, de 1949, que esteve para se chamar “A Única
Razão Ardente” (1977: 273). O terceiro caderno, com
duas edições, uma delas no cinquentenário do manifesto de 1924, tem material
epistolar também da década de quarenta para se palpar o húmus onde rebentou o
chamado grupo surrealista de Lisboa, que depois ficou nas mãos de Pedro e
França mas que nada tiveram a ver com a sua criação. O terceiro caderno contém
uma recolha de fragmentos de Teixeira de Pascoaes feita e anotada por Cesariny.
De tudo isto, o
que se tira? Que Cesariny e Seixas estão preocupados com a história do
movimento surrealista português e que tal preocupação incide no que se passou
na década fundadora. Daí a necessidade de reproduzirem uma avalanche de
materiais que possam esclarecer, ou passar ao crivo, o passado. Esta
inquietação com a história do surrealismo entende-se; Breton morrera já, o
grupo surrealista de Paris dissolvera-se, as referências internacionais
(Jean-Louis Bédouin, 1961) e nacionais ao surrealismo em Portugal, um ser já
respeitável com mais dum quarto de século de vida, eram confusas, parciais,
erradas. Geravam-se estereótipos perigosos no campo da história do surrealismo
em Portugal que era urgente desfazer; caso não, a memória daquele arriscava-se
a ficar voltada do avesso. Só tais receios e práticas justificam a publicação
da correspondência do ano de 1947, que põe à mostra o terreno cru onde brotou o
surrealismo em lusas ruas. Soma-se no mesmo período a feitura do texto “Para
uma Cronologia do Surrealismo em Português”, obra maior de Cesariny, dada à
estampa por Edouard Jaguer na revista Phases
(1973), e que é a principal peça historiográfica do movimento em Portugal.
Mas a actividade
editorial de Seixas e Cesariny na primeira metade da década de setenta não
esteve apenas virada para a memória do movimento. Há uma excepção de monta: a
publicação dos fragmentos de Teixeira de Pascoaes. Estou agora em condições de
responder à pergunta que ficou atrás. Que novidade há no terceiro momento do
surrealismo em Portugal, a coincidir com a urgência de Cesariny se dedicar à
sua história? A única novidade, a única excepção assinalável à pressão
historiográfica do período é o lugar dado a Teixeira de Pascoaes. Paga pois a
pena indagar um pouco melhor desta novidade.
A primeira
questão pode e deve ser: é o autor de Marános
um recém-chegado ao surrealismo em Portugal? Não. Cesariny leu com entusiasmo
no final da década de quarenta o poema Regresso
ao Paraíso e foi com Eduardo de Oliveira ouvir em Março de 1950 uma
comunicação de Teixeira de Pascoaes ao cineteatro de Amarante sobre Guerra
Junqueiro, a que se seguiu visita à casa de Pascoaes, em São João de Gatão.
Sabe-se ainda por carta de António Maria Lisboa (Março de 1950; 1977: 265) que
Cesariny deu a ler o poema a Lisboa, que logo aderiu, lamentando mesmo não ter
ocasião de conhecer o autor, personalidade
que me é grata e que bastante admiro. O autor de Marános não é pois em 1972 um recém-chegado ao surrealismo em
português. Desde o início que ele andava na boca dos protagonistas da aventura
surrealista portuguesa. Isto chega para invalidar parte da tese de Osvaldo
Manuel Silvestre sobre o pai tardio
de Cesariny. Afinal os surrealistas liam Pascoaes com entusiasmo desde o
primeiro momento; a apoteose ulterior do poeta no panteão surrealista português
decorre deste primeiro circuito, não de qualquer premeditação, visando maior
glória literária dos opinantes. E vai por aí nova impugnação da tese de Osvaldo
Manuel Silvestre. Os louros dos jogos florais, com as angústias do Eu social
não subir ao pódio – também dá dizer ao cânone
– é ideia inadequada a Cesariny; ela faz parte da cabeça de quem tem de correr
à cátedra, mas não dum poeta surrealista, que volta costas à abjecção do social, como Cesariny voltou
e revoltou, tocando pelo menos dois sistemas prisionais, o de Salazar e o de De
Gaulle, para se dedicar em exclusivo, ao modo dele, à vida de dentro.
Ler com agrado
Pascoaes não significou todavia integrar de imediato o poeta na memória
colectiva do surrealismo português. Passando a crivo fino os textos de 1949 e
1950, quer de Lisboa, quer de Cesariny, quer colectivos, nunca lá se topa com o
nome de Teixeira de Pascoaes. Comparecem Gomes Leal, Raul Brandão, Fernando
Pessoa, Mário Sá-Carneiro, Almada Negreiros, mas não Teixeira de Pascoaes. Será
preciso esperar pelo início da década de sessenta, primeiro no prefácio à
tradução de Rimbaud (1960), depois em entrevista ao Jornal de Letras e Artes (29-8-1962), para encontrar Cesariny a
falar de Teixeira de Pascoaes, o de Regresso
ao Paraíso, dando-lhe no segundo momento um lugar de quase isolado.
Assinale-se ainda no final dessa década uma pasta dedicada ao poeta do Marão no
Jornal de Letras e Artes (Maio de
1968), da responsabilidade de Cesariny, que revela já um convívio por dentro
com o espólio de Teixeira de Pascoaes. De qualquer modo nada disto representa
ainda a apoteose de Pascoaes junto do surrealismo português. Mesmo com a vida
de quase magnífico que Cesariny lhe dá na entrevista de 1962, mesmo com o
destaque capital da pasta de 1968, ainda se fica a um palmo de pulso da recepção
final que o autor de Marános terá
junto dos surrealistas – Fernando Alves dos Santos por exemplo só dedicou em
vida de sessenta e quatro anos poemas a dois poetas: primeiro António Maria
Lisboa, depois Teixeira de Pascoaes. O palmo, mesmo de pulso, não chega porém
para o pai tardio; para tal
posteridade era preciso uma légua da Póvoa, se não um continente. E tal ângulo
não existe, pois desde 1950 que Pascoaes andava, se bem que discretamente, como
quem não quer a coisa, a fazer lugar junto do surrealismo em Portugal e não
apenas de Cesariny.
A consagração de
Pascoaes na memória do surrealismo português chegará pois em força no ano de
1972, primeiro com o caderno dos aforismos,
publicado em Junho por Cesariny e Seixas, e depois, no final desse mesmo ano,
com uma antologia maior, de centenas de páginas, Poesia de Teixeira de Pascoaes, cobrindo toda a obra do poeta,
incluindo pictórica, que pela primeira vez apareceu em livro, e que mostra no
domínio do convívio com o espólio de Pascoaes um destríssimo Cesariny. Basta a
colectânea magna de 1972 para se pôr o autor de Pena Capital ao lado do melhor editor do poeta do Marão, Jacinto do
Prado Coelho. Aos dois momentos, acrescento um terceiro, de valor extremo:
aquele em que Cesariny, de forma sibilina e cortante, no texto “Para uma
Cronologia do Surrealismo em Português” (1973), deixa cair o fragmento (que
levou ao desnorte do pai tardio): Teixeira de Pascoaes, poeta bem mais
importante, quanto a nós, do que Fernando Pessoa. Dedicou-se neste estudo
toda uma nota à leitura desta frase, trocando por miúdos as palavras oraculares
dela. Remeto pois o leitor para ela, nota, e passo.
Se o apoteótico
momento de Pascoaes junto do surrealismo português marca a entrada deste numa
fase nova, a da maturidade final, tocada também pela necessidade de revisitar a
história do passado fundacional, conforme e esperado é que tal idade se
desenrole em muitos instantes, todavia não exclusivos, sob o signo de Pascoaes.
Em Cesariny, em Cruzeiro Seixas, em Fernando Alves dos Santos segue-se nesse
período o rastro do poeta de Regresso ao
Paraíso, quer através de contributos editoriais de peso, quer por meio de
homenagens pictóricas e poéticas, algumas à espera ainda de leitura. A estes
ainda se pode juntar Natália Correia, que chegou ao surrealismo com Dimensão Encontrada, 1957, e tocou o
tecto com Auto da Feiticeira Cotovia,
1959, tudo em época de café Gelo e pela mão do editor histórico do surrealismo
português, Luiz Pacheco de seu título. Há ainda a assinalar neste segmento
próprio a Pascoaes, e no ascendente que ele toma, a sátira anti-pessoana de
Cesariny, que dará as edições epidémicas de Virgem
Negra (1989; 1996), uma anti-mensagem
em que só o lobo do Marão escapa à algazarra escolástico-cartesiana da cultura
do Ocidente.
Tal como nos
momentos anteriores, também este braço final do surrealismo em Portugal se
desdobrou em novos brotos, diversificando as acções e agregando a si gente
nova. A mais fecunda ramada neste campo foi a de Manuel Hermínio Monteiro
(1952-2001), que nasceu no distrito de Vila Real, recebendo à nascença os raios
de bronze do Marão, tudo no ano da morte de Teixeira de Pascoaes e a poucos
meses da passagem de António Maria Lisboa. Vinha ele ao mundo, publicava
Pascoaes as suas derradeiras obras em vida e estreava-se Lisboa numa pobre e
desconhecida tipografia de tipos móveis e manuais. Chegava ele aos vinte anos,
em 1972, e dava Cesariny a lume com a colaboração de Cruzeiro Seixas os aforismos de Pascoaes e logo depois, no
mesmo ano, a sós, a antologia magna. Este garoto tinha com ele uma estrelinha
portátil que o habilitava a pedir para si um papel de primeiro plano nesta
derradeira fase do surrealismo. E não tardou a subir ao tablado para o
desempenhar com uma fortuna de oiro, que só a sua morte precoce veio tingir de
sombra, ou talvez não, que a morte é tirocínio e nunca má sorte. Tomou em mãos
a edição dos dois irmãos, António
Maria Lisboa e Teixeira de Pascoaes, a reedição de 1977 do primeiro é sua e do
segundo pôs em livro milhares de páginas, por aqui se mostrando o mais generoso
herdeiro desta terceira idade e um dos que por muitas razões, da edição à
criação poética, que Cesariny prezava, pois antologiou com gosto poemas dele,
merece ter o nome escrito na história do surrealismo em Portugal. A sua
actividade editorial foi tão significativa para o movimento como outrora fora a
de Luiz Pacheco, a de Bruno da Ponte, a de Victor Silva Tavares, ou mesmo a de
Cesariny, só que desta vez, em sítio de nova extensão, juntando-lhe em força
Teixeira de Pascoaes, o que nenhum outro fizera.
Os herdeiros do
surrealismo português na terceira fase não se limitam a Manuel Hermínio
Monteiro. Outros há. Mas de todos, Hermínio foi aquele que se antecipou e o que
mais cedo entendeu que a partir de 1972 os destinos do surrealismo português
passavam pelos refúgios montanheses de Pascoaes e estes pela admirável
maravilha daqueles. E Hermínio, através duma acção editorial conduzida com mão
segura de estratega, foi porventura quem dos novos mais extensamente contribuiu
para soldar, ao menos de forma visível, os dois ramos, surrealismo e Pascoaes,
que antes de 1972 andavam soltos, desarticulados, cada um pelo seu lado.
*****
Capítulo
integrante do livro Notas para a
compreensão do Surrealismo em Portugal, gentilmente cedido pelo autor. Para
conhecer melhor vida e obra de António Cândido Franco, visite: http://literaturaliteraturaliteratura.blogspot.com.br/2014/02/conhecer-antonio-candido-franco-vida-e.html. Página ilustrada com fotografias de Teresa Sá Couto.
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