quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Para uma História do Surrealismo em Portugal


A história do surrealismo em Portugal apresenta de forma nítida três pontos de crescimento: o primeiro, relativo ao seu nascimento, na década de quarenta, com arranque em 1942 e fecho em 1949, altura em que têm lugar em Lisboa duas exposições surrealistas; o segundo, relativo à década de cinquenta e sessenta, em que se forma uma nova geração surrealista, que nada conheceu dos anteriores sucessos; por fim, o terceiro, posterior à década de setenta, quando muitos dos protagonistas anteriores já não existem e a actividade surrealista ganha nova situação.
Cada um destes momentos teve os seus sucessos e desenvolvimentos. A história da década de quarenta é conhecida, com dois grupos surrealistas distintos, o primeiro tendo por venerável António Pedro, e o segundo tomando por centro o diálogo entre dois novos, Cesariny e Lisboa. Não quero insistir aqui no que diferenciou os dois grupos; o que se disse nas notas anteriores está muito perto de chegar. Só o grupo de Cesariny e Lisboa parece ter vivido a aventura surrealista com verdade intrínseca. Daí o irrisório, a roçar o nulo, de certas produções “surrealistas” que saíram do grupo de António Pedro, como esse Balanço das Actividades Surrealistas em Portugal (1949) de José-Augusto França. Daí ainda a força singular que cintila nas criações de Lisboa e de Cesariny.
Uma coisa é segura: o nascimento do surrealismo em Portugal beneficiou dos avanços do surrealismo francês, que durante e depois da guerra contra o nazismo se libertou do marxismo sufocante, se recentrou no que mais importava e se livrou de vez do que o podia confundir com doutrina religiosa institucional. Só um tal avanço justifica, para apenas falar de Breton, a importância capital e única na época e ainda hoje dum livro como A Arte Mágica (1957), resultado paciente dessa reelaboração de terceiro nível do surrealismo francês. Ao invés do que se tem dito, a década de quarenta, não obstante o esvaziamento mediático, ou por causa dele, significou para o surrealismo um passo em frente e representou para o aparecimento do surrealismo em Portugal um húmus de excepcional favor. A segunda metade da década de quarenta foi um meio muito mais favorável à formação do surrealismo português do que teria sido a década anterior, marcada pelo esforço, e pelo cansaço, da adesão do surrealismo ao materialismo dialéctico, com o consequente esquecimento aqui e ali daquilo que era específico ao movimento. Caso o surrealismo tivesse chegado a Portugal dez ou doze anos antes nunca porventura teria sido possível chegar à obra dum António Maria Lisboa; o horizonte do surrealismo português não teria ido além porventura de António Pedro, cujo tirocínio foi em grande parte produto da década de trinta. A poética de Lisboa, cuja situação no surrealismo internacional está ainda por entender, mas desde já se afigura de primeira linha, só no quadro dos passos que se seguiram à escrita de Prolegómenos e de Arcano 17 se compreende.
Na verdade a melhor forma de distinguir na década de quarenta os dois grupos surrealistas que surgiram em Portugal é tomar o grupo tutelado por Pedro como um agrupamento típico da década de trinta, incaracterístico e repetido, e ver no grupo de Cesariny e Lisboa um núcleo nascido do choque impressivo do terceiro manifesto e do leito novo que ele abriu. As alusões a Engels, o desprezo pelo esoterismo, que ele escreve com i, o assentimento em nota final a Noël Arnaud no caderno de França não deixam folga de dúvida sobre os horizontes limitados em que o grupo de Pedro se movia. Caso o surrealismo em Portugal não tivesse dado passo além do que se reporta no balancete de França e do que se fez na loja de Pedro, estaria ele na situação irrisória da quase nulidade. Nenhuma obra sua e nenhuma palavra dele teriam interesse para o surrealismo geral. O escoadouro natural seria, como aliás foi, em O’Neill e nos outros, a auto-negação e o silêncio, esse mesmo que Breton pôs nas “Efemérides Surrealistas” publicadas em 1955 como apêndices da edição desse ano dos manifestos, e onde não há qualquer alusão ao grupo de Pedro, o único de que o escritor gaulês tinha notícia, silêncio que se manteve ainda mais frio na reactualização de 1962.
Com a largueza e o adianto de aproximações que Cesariny e Lisboa moveram, colocando Portugal na ponta de avanço do que então se fazia em termos de surrealismo – e nesse ponto a obra de Lisboa é até premonitória do trabalho de Breton para o livro de 1957, e o que hoje se lamenta é que o francês, por razões variadas, em primeiro lugar de língua, não tenha podido aceder à obra do português – , o grupo de Pedro passa a nota de rodapé das actividades surrealistas em Portugal. E se assim é, ainda o deve ao facto de no início, Verão de 1947, esse grupo ter nascido grandemente do empenho de Cesariny e de só a ele e ao círculo dele (Moniz Pereira, António Domingues, Fernando de Azevedo, Vespeira e Alexandre O’Neill) dever existência.
Também a história do segundo momento do surrealismo português, a contar nas duas décadas seguintes, é conhecida. Cesariny dá dela abundância de materiais no texto “Para uma Cronologia do Surrealismo em Português”, de 1973. Ao contrário da primeira década, que aqui trato em várias direcções, metendo mão na obra escrita ou plástica dalguns protagonistas, estas notas não entram nem pouco nem muito, isto com exclusão das rápidas alusões ao abjeccionismo a propósito do final do segundo manifesto de Breton, pela criação desse segundo momento do surrealismo em Portugal, que Cesariny chama nos materiais de 1973, os grupos dos cafés Royal e Gelo, ambos em Lisboa, dando-os por contaminados de existencialismo, o que não surpreende em época de irradiação máxima de Sartre, a caminho do Nobel (1964). Não se nega o enxerto, que levou até à deserção duns tantos para o lado da literatura engajada ou militante, num fôlego de segunda ou terceira geração do neo-realismo indígena, mas ainda sobra um resto de alta qualidade.
Para as bandas do surrealismo conto o seguinte: uma revista com três números, Pirâmide (1959-60), um poeta fulgurante da prosa, Ernesto Sampaio (1935-2001), em que alguns quiseram mesmo ver o mais denso e ágil teorizador do surrealismo português, e um outro não menos ardente do verso, Herberto Hélder (1930). Junte-se um desenhista, João Rodrigues (1936-1967), cheio de verve e sainete; meta-se um pintor, D’Assumpção (1926-1969), avaliado já por superior a Vieira da Silva, e ponha-se lá a deriva do abjeccionismo com a parte mais importante da obra escrita de Luiz Pacheco (1925-2008). E ainda fica por tocar alguma coisa, ou até muita, o bastante para ser pepita ou se entender que se tem aqui, no geral desta constelação, o mais largo alfobre poético desses anos (António José Forte, Virgílio Martinho, José Sebag, João Vieira, Manuel de Castro, José Manuel Pressler, Benjamim Marques, António Barahona).
Depois da última fronteira que o surrealismo conquistara na língua em 1953, ano em que foi dado à estampa Isso Ontem Único e o manifesto colectivo Afixação Proibida, com a obra toda de Lisboa conhecida, não se pode tomar por extemporânea a riqueza poética que se topa na segunda metade da década e na primeira da seguinte no seio desses grupos, a coincidir com a edição de cinco livros de alto voo de Cesariny, que muito devem ter ajudado essa geração a meter no bolso a valiosa pepita que lograram, Manual de Prestidigitação (1956), Pena Capital (1957), Alguns Mitos Maiores (1958), Nobilíssima Visão (1959) e Planisfério e Outros Poemas (1961), este do mesmo ano de Poesia (1944-1955), o seu primeiro labor antológico, com admirável intervenção plástica de João Rodrigues.
Sobre o abjeccionismo quero ainda dar uma palavra. Paga a pena ver a sua árvore genealógica e perceber a sua raiz. Já se sabe que o movimento é o resultado da fusão que aconteceu na segunda metade da década de cinquenta no seio dos grupos que frequentaram o Royal e o Gelo e se nutriram da herança do grupo dissidente da década anterior. Também se sabe que quem lhe deu voz pública foi Pedro Oom, que vinha como Cesariny da década anterior. Isso aconteceu na entrevista dada em 1962 ao Jornal de Letras e Artes (6 de Março). É o momento em que a pergunta final de Erro Próprio de António Maria Lisboa é vascolejada em que pode fazer um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos e a aspiração à síntese, tão da estima de Breton, atraído pela subida aos picos do sublime, é substituída por uma saraivada chã de relâmpagos fatais (mesmo idealmente, duas proposições antagónicas não se podem fundir sem que logo nasça uma proposição contrária a essa síntese). Cesariny, não obstante as resistências posteriores, veja-se por exemplo o que ele diz em notas da edição de 1977 de António Maria Lisboa (p. 390 e 391), aceitou na época este novo broto, abrindo-lhe sem receio a porta na antologia imediatamente posterior, SURREAL-ABJECCION-ismo (1963), uma das últimas que fez, se não a derradeira. Mais tarde dirá assim, numa rasura definitiva do caso: aqui e agora e sempre em todo o lado o surrealismo não tem nada a ver com o abjeccionismo ou só terão de comum o haverem-se conhecido na cadeia, onde vai tanta gente por tão diversos cantares e até só por recreio, visita de estudo e turismo (…). (in As Mãos na Água e a Cabeça no Mar, 1985, p. 239)
Metendo na conta a nota de Cesariny da edição de 1977, fica-se a saber que a abjecção passara já pelo grupo dissidente de 1949 e que nessa época, a do poema “Um Ontem Cão”, ou até antes, Oom repetia, sem que Cesariny fosse ao entusiasmo, um preceito tirado de poeta francês (c’est au fond de l’abjeccion que la pureté attend son œuvre), e Lisboa dava corpo a algumas dessas preocupações no manifesto Erro Próprio, talvez na pergunta final, que serviria depois à torção de 1962 (p. 390). Oom levou a abjecção para os grupos seguintes, Royal e Gelo, dando-lhe saída pública e obtendo largo favor junto dos novos [João Rodrigues, por exemplo, em entrevista ao Jornal de Artes e Letras (15-9-1965), declara-se abjeccionista e não surrealista], se bem que o parto da ideia remontasse ao grupo de Cesariny e Lisboa, em especial à conversa nele entre Petrus (nome de guerra de Pedro Oom) e Lisboa, troca de resto anterior à formação do grupo, pois Lisboa e Oom conheciam-se desde 1944.
Que António Maria Lisboa sobrevoou a abjecção, que a incorporou até no seu discurso, vinda de si ou de Oom, nenhuma dúvida, a ponto de se poder dizer que é nos textos dele que está, pelo menos na escrita, a raiz de tudo. Basta ler com atenção um texto de Isso Ontem Único, “Alguns Personagens”, para se provar a presença. Em dado passo diz-se: É no poeta visível a inépcia, que é abjecção, de si perante e numa vida a que foi chegado. O mundo social, o mundo como tal organizado, é o obstáculo que o leva nos desencontros sucessivos com a felicidade e na luta contra ele à mais penetrante percepção do mundo autêntico – longínquo aqui agora e inumano! (1977: 184) A abjecção é pois a falta de aptidão do poeta para o mundo social. Doutro modo dito: a abjecção é o retrato do Eu social do poeta, pouco trabalhado, pouco destro, em tropeções constantes ou paralisias imobilizadoras, por contraste com a pesquisa viva do Eu arcaico, que o leva, pela via da construção simbólica, não pela do instinto, à percepção do mundo autêntico e à vida activíssima do espírito.
Logo o poeta surrealista está obrigado a viver a abjecção, mas apenas como contraponto exterior do seu trabalho interior. Trata-se duma consequência, não duma realidade procurada, e duma consequência nem sequer tão sufocante e absorvente que não possa ser alijada e até integrada na viagem do poeta em direcção do que mais lhe importa, a fonte pura dos desejos e das imagens que jorra na terra dos arquétipos. Um óbolo irreversível nesta consequência: o poeta – não o que faz versos, mas o verdadeiro poeta, aquele que se preocupa em exercitar no dia-a-dia a ginástica de Jarry, dormir acordado e viver responsavelmente o sonho – não tem salvação social possível, e este é aliás o ajuste final do texto de Isso Ontem Único. Adormecer e ficar acordado, assistir ao espectáculo do interior, anotar as espécies da alma, não é compatível com as metas invasoras da dita racionalidade social, as que são avançadas como sendo hoje de concorrência e de optimização, sempre mercantil, entenda-se, com que a sociedade regula, normaliza, civiliza e socializa à força, sem dar saída ou atenção mínima à construção simbólica dos conteúdos arquetípicos, o Eu dos seus membros, o que leva depois aos violentíssimos desajustes dos Reis Ghobes.
Na mesma direcção vai o uso da palavra, ou do neologismo (abjeccional) que por esta época e no seguimento da sua conversa com Petrus Lisboa cria a partir do vocábulo em uso, desta vez sob forma de advérbio de modo, na folha póstuma, Aviso a Tempo por Causa do Tempo, publicada por Luiz Pacheco em 1956 e republicada no primeiro número da revista Pirâmide. Cito: que sendo individualmente e portanto abjeccionalmente desligados das normas convencionais (…). (1977: 110) A individualidade de que aqui fala Lisboa é o Eu arcaico que o poeta tem a obrigação de revelar e conhecer, por aí se afastando do Eu social, que é vivido de forma abjecta, quer dizer, de modo desinteressado e inepto, sem jeito para o negócio e para a vida dita prática.
A consciência que Lisboa tem da inaptidão social que o poeta desenvolve no seu trabalho de mineração da alma – e só este labor por dentro, de olhos fechados, justifica a inabilidade para o lado de fora, o da sociedade – é de tal ordem que não foi preciso esperar pela segunda metade da década seguinte para aparecer cunhado, e até em maiúsculas, um sistema em torno da abjecção. A palavra abjeccionismo, que tanta fortuna virá a ter na primeira década de sessenta, com a obra de Luiz Pacheco, o tratamento de Oom e a declaração de João Rodrigues, já existe em António Maria Lisboa. Leia-se o seguinte passo da carta escrita em Abril de 1950 a Cesariny: Como dizia no meu Manifesto Erro Próprio por outras palavras: não se tratava em mim (em nós) de negar o Surrealismo e os seus princípios, mas ilibava-me eu de tomar lugar na querela do eu sou, tu não és. Serei ou não surrealista de hoje para o futuro com a minha METACIÊNCIA e o NOSSO ABJECCIONISMO – eu não me pronunciarei sobre tal. (1977: 279)
Metaciência e abjeccionismo, quer dizer, real autêntico que o poeta visita com o Eu arcaico e incapacidade de se adaptar a uma sociedade que pede, em nome de novas orientações de optimização mercantil, a determinar o interdito, a decapitação desse mesmo Eu e a formação duma nova e castrada entidade de consciência, o Eu social ou civilizado. Em Lisboa real autêntico e real abjecto são pois como interior e exterior, verso e reverso do poeta: por dentro, com o olho aceso da imaginação, vive a experiência activa da consciência a sondar os mundos da alma; por fora, com os olhos sensíveis meio adormecidos, a paralisia do corpo, a catalepsia dos sentidos físicos, está a inabilidade do social tal como os valores da acumulação de riqueza o entendem. Isto quer dizer que no momento do seu nascimento, só o contacto com a terra dos arquétipos justifica o existir, para o exterior, do abjeccionismo. Deixo este excurso em torno da palavra para que se perceba o sentido original do vocábulo no momento do seu nascimento e se possa assim ter no porvir um termo seguro para aferir da sua evolução semântica posterior até à rasura final de Cesariny.
Resta o terceiro momento da história do surrealismo em Portugal, que abre na década de setenta – a derradeira manifestação dos grupos do Royal e do Gelo, paralisados pelo desaparecimento físico dalguns dos seus mais valiosos membros (José Sebag, José Manuel Pressler, João Rodrigues, Manuel de Castro e D’Assumpção), é a publicação do número único da revista Grifo (1970) – e vai até à morte de Cesariny. A história deste terceiro momento está toda por fazer. Deixo aqui alguns dados que poderão ser aproveitados de futuro num apanhado geral do período. O ponto de partida desse momento, distante o bastante para se ter nele alguma mão, situa-se na actividade editorial que na primeira metade da década de setenta Cesariny e Seixas promoveram.
Que actividade foi essa? Em 1971 a edição de Reimpressos Cinco Textos de Surrealistas em Português, logo seguida no ano seguinte, 1972, de Aforismos de Teixeira de Pascoaes e, em 1973, dum terceiro caderno, Contribuição ao registo de nascimento existência e extinção do grupo surrealista de Lisboa com uma carta acrílica do mês de Agosto de mil novecentos e 66 / número da besta / editado em trezentos exemplares por mário cesariny e cruzeiro seixas no quinquagésimo aniversário da recusa de duchamp em terminar o grande vidro e no do nascimento sempre possível ainda que sempre improvável de sete novos justos ignorados, que teve ainda reedição, no ano seguinte, o da revolução dos cravos, com referência ao 50º Aniversário do Primeiro Manifesto Surrealista. Esta actividade continuada marca o ponto de arranque da terceira fase da actividade surrealista em Portugal, muito mais centrada nos sobreviventes do grupo dissidente da década de quarenta, onde se coara e enxugara a pedra filosofal do movimento em Portugal.

Que novidade há, se novidade há, nesse terceiro momento? Repare-se para já na natureza das publicações feitas. O primeiro caderno, dado à estampa logo depois do número único de Grifo, e daí o salto dum segundo para um terceiro tempo, tem o seguinte material: “A Afixação Proibida”, “Aviso a Tempo por causa do Tempo”, “Surrealismo e Manipulação”, “Para Bem Esclarecer as Gentes que Ainda Estão à Espera, os Signatários vêm Informar que:”, “Não há Morte na Morte de André Breton” “Para Bem Esclarecer as Gentes que Continuam à Espera, os Signatários vêm Informar que:”. Só os dois últimos textos são recentes; mesmo assim o derradeiro em glosa de folha colectiva muito anterior. Todos os outros são textos da década de quarenta, início de cinquenta, fruto da actividade do grupo dissidente. Está lá mesmo o ponto de arranque do grupo, o cadáver esquisito A Afixação Proibida, de 1949, que esteve para se chamar “A Única Razão Ardente” (1977: 273). O terceiro caderno, com duas edições, uma delas no cinquentenário do manifesto de 1924, tem material epistolar também da década de quarenta para se palpar o húmus onde rebentou o chamado grupo surrealista de Lisboa, que depois ficou nas mãos de Pedro e França mas que nada tiveram a ver com a sua criação. O terceiro caderno contém uma recolha de fragmentos de Teixeira de Pascoaes feita e anotada por Cesariny.

De tudo isto, o que se tira? Que Cesariny e Seixas estão preocupados com a história do movimento surrealista português e que tal preocupação incide no que se passou na década fundadora. Daí a necessidade de reproduzirem uma avalanche de materiais que possam esclarecer, ou passar ao crivo, o passado. Esta inquietação com a história do surrealismo entende-se; Breton morrera já, o grupo surrealista de Paris dissolvera-se, as referências internacionais (Jean-Louis Bédouin, 1961) e nacionais ao surrealismo em Portugal, um ser já respeitável com mais dum quarto de século de vida, eram confusas, parciais, erradas. Geravam-se estereótipos perigosos no campo da história do surrealismo em Portugal que era urgente desfazer; caso não, a memória daquele arriscava-se a ficar voltada do avesso. Só tais receios e práticas justificam a publicação da correspondência do ano de 1947, que põe à mostra o terreno cru onde brotou o surrealismo em lusas ruas. Soma-se no mesmo período a feitura do texto “Para uma Cronologia do Surrealismo em Português”, obra maior de Cesariny, dada à estampa por Edouard Jaguer na revista Phases (1973), e que é a principal peça historiográfica do movimento em Portugal.
Mas a actividade editorial de Seixas e Cesariny na primeira metade da década de setenta não esteve apenas virada para a memória do movimento. Há uma excepção de monta: a publicação dos fragmentos de Teixeira de Pascoaes. Estou agora em condições de responder à pergunta que ficou atrás. Que novidade há no terceiro momento do surrealismo em Portugal, a coincidir com a urgência de Cesariny se dedicar à sua história? A única novidade, a única excepção assinalável à pressão historiográfica do período é o lugar dado a Teixeira de Pascoaes. Paga pois a pena indagar um pouco melhor desta novidade.
A primeira questão pode e deve ser: é o autor de Marános um recém-chegado ao surrealismo em Portugal? Não. Cesariny leu com entusiasmo no final da década de quarenta o poema Regresso ao Paraíso e foi com Eduardo de Oliveira ouvir em Março de 1950 uma comunicação de Teixeira de Pascoaes ao cineteatro de Amarante sobre Guerra Junqueiro, a que se seguiu visita à casa de Pascoaes, em São João de Gatão. Sabe-se ainda por carta de António Maria Lisboa (Março de 1950; 1977: 265) que Cesariny deu a ler o poema a Lisboa, que logo aderiu, lamentando mesmo não ter ocasião de conhecer o autor, personalidade que me é grata e que bastante admiro. O autor de Marános não é pois em 1972 um recém-chegado ao surrealismo em português. Desde o início que ele andava na boca dos protagonistas da aventura surrealista portuguesa. Isto chega para invalidar parte da tese de Osvaldo Manuel Silvestre sobre o pai tardio de Cesariny. Afinal os surrealistas liam Pascoaes com entusiasmo desde o primeiro momento; a apoteose ulterior do poeta no panteão surrealista português decorre deste primeiro circuito, não de qualquer premeditação, visando maior glória literária dos opinantes. E vai por aí nova impugnação da tese de Osvaldo Manuel Silvestre. Os louros dos jogos florais, com as angústias do Eu social não subir ao pódio – também dá dizer ao cânone – é ideia inadequada a Cesariny; ela faz parte da cabeça de quem tem de correr à cátedra, mas não dum poeta surrealista, que volta costas à abjecção do social, como Cesariny voltou e revoltou, tocando pelo menos dois sistemas prisionais, o de Salazar e o de De Gaulle, para se dedicar em exclusivo, ao modo dele, à vida de dentro.
Ler com agrado Pascoaes não significou todavia integrar de imediato o poeta na memória colectiva do surrealismo português. Passando a crivo fino os textos de 1949 e 1950, quer de Lisboa, quer de Cesariny, quer colectivos, nunca lá se topa com o nome de Teixeira de Pascoaes. Comparecem Gomes Leal, Raul Brandão, Fernando Pessoa, Mário Sá-Carneiro, Almada Negreiros, mas não Teixeira de Pascoaes. Será preciso esperar pelo início da década de sessenta, primeiro no prefácio à tradução de Rimbaud (1960), depois em entrevista ao Jornal de Letras e Artes (29-8-1962), para encontrar Cesariny a falar de Teixeira de Pascoaes, o de Regresso ao Paraíso, dando-lhe no segundo momento um lugar de quase isolado. Assinale-se ainda no final dessa década uma pasta dedicada ao poeta do Marão no Jornal de Letras e Artes (Maio de 1968), da responsabilidade de Cesariny, que revela já um convívio por dentro com o espólio de Teixeira de Pascoaes. De qualquer modo nada disto representa ainda a apoteose de Pascoaes junto do surrealismo português. Mesmo com a vida de quase magnífico que Cesariny lhe dá na entrevista de 1962, mesmo com o destaque capital da pasta de 1968, ainda se fica a um palmo de pulso da recepção final que o autor de Marános terá junto dos surrealistas – Fernando Alves dos Santos por exemplo só dedicou em vida de sessenta e quatro anos poemas a dois poetas: primeiro António Maria Lisboa, depois Teixeira de Pascoaes. O palmo, mesmo de pulso, não chega porém para o pai tardio; para tal posteridade era preciso uma légua da Póvoa, se não um continente. E tal ângulo não existe, pois desde 1950 que Pascoaes andava, se bem que discretamente, como quem não quer a coisa, a fazer lugar junto do surrealismo em Portugal e não apenas de Cesariny.
A consagração de Pascoaes na memória do surrealismo português chegará pois em força no ano de 1972, primeiro com o caderno dos aforismos, publicado em Junho por Cesariny e Seixas, e depois, no final desse mesmo ano, com uma antologia maior, de centenas de páginas, Poesia de Teixeira de Pascoaes, cobrindo toda a obra do poeta, incluindo pictórica, que pela primeira vez apareceu em livro, e que mostra no domínio do convívio com o espólio de Pascoaes um destríssimo Cesariny. Basta a colectânea magna de 1972 para se pôr o autor de Pena Capital ao lado do melhor editor do poeta do Marão, Jacinto do Prado Coelho. Aos dois momentos, acrescento um terceiro, de valor extremo: aquele em que Cesariny, de forma sibilina e cortante, no texto “Para uma Cronologia do Surrealismo em Português” (1973), deixa cair o fragmento (que levou ao desnorte do pai tardio): Teixeira de Pascoaes, poeta bem mais importante, quanto a nós, do que Fernando Pessoa. Dedicou-se neste estudo toda uma nota à leitura desta frase, trocando por miúdos as palavras oraculares dela. Remeto pois o leitor para ela, nota, e passo.
Se o apoteótico momento de Pascoaes junto do surrealismo português marca a entrada deste numa fase nova, a da maturidade final, tocada também pela necessidade de revisitar a história do passado fundacional, conforme e esperado é que tal idade se desenrole em muitos instantes, todavia não exclusivos, sob o signo de Pascoaes. Em Cesariny, em Cruzeiro Seixas, em Fernando Alves dos Santos segue-se nesse período o rastro do poeta de Regresso ao Paraíso, quer através de contributos editoriais de peso, quer por meio de homenagens pictóricas e poéticas, algumas à espera ainda de leitura. A estes ainda se pode juntar Natália Correia, que chegou ao surrealismo com Dimensão Encontrada, 1957, e tocou o tecto com Auto da Feiticeira Cotovia, 1959, tudo em época de café Gelo e pela mão do editor histórico do surrealismo português, Luiz Pacheco de seu título. Há ainda a assinalar neste segmento próprio a Pascoaes, e no ascendente que ele toma, a sátira anti-pessoana de Cesariny, que dará as edições epidémicas de Virgem Negra (1989; 1996), uma anti-mensagem em que só o lobo do Marão escapa à algazarra escolástico-cartesiana da cultura do Ocidente.
Tal como nos momentos anteriores, também este braço final do surrealismo em Portugal se desdobrou em novos brotos, diversificando as acções e agregando a si gente nova. A mais fecunda ramada neste campo foi a de Manuel Hermínio Monteiro (1952-2001), que nasceu no distrito de Vila Real, recebendo à nascença os raios de bronze do Marão, tudo no ano da morte de Teixeira de Pascoaes e a poucos meses da passagem de António Maria Lisboa. Vinha ele ao mundo, publicava Pascoaes as suas derradeiras obras em vida e estreava-se Lisboa numa pobre e desconhecida tipografia de tipos móveis e manuais. Chegava ele aos vinte anos, em 1972, e dava Cesariny a lume com a colaboração de Cruzeiro Seixas os aforismos de Pascoaes e logo depois, no mesmo ano, a sós, a antologia magna. Este garoto tinha com ele uma estrelinha portátil que o habilitava a pedir para si um papel de primeiro plano nesta derradeira fase do surrealismo. E não tardou a subir ao tablado para o desempenhar com uma fortuna de oiro, que só a sua morte precoce veio tingir de sombra, ou talvez não, que a morte é tirocínio e nunca má sorte. Tomou em mãos a edição dos dois irmãos, António Maria Lisboa e Teixeira de Pascoaes, a reedição de 1977 do primeiro é sua e do segundo pôs em livro milhares de páginas, por aqui se mostrando o mais generoso herdeiro desta terceira idade e um dos que por muitas razões, da edição à criação poética, que Cesariny prezava, pois antologiou com gosto poemas dele, merece ter o nome escrito na história do surrealismo em Portugal. A sua actividade editorial foi tão significativa para o movimento como outrora fora a de Luiz Pacheco, a de Bruno da Ponte, a de Victor Silva Tavares, ou mesmo a de Cesariny, só que desta vez, em sítio de nova extensão, juntando-lhe em força Teixeira de Pascoaes, o que nenhum outro fizera.
Os herdeiros do surrealismo português na terceira fase não se limitam a Manuel Hermínio Monteiro. Outros há. Mas de todos, Hermínio foi aquele que se antecipou e o que mais cedo entendeu que a partir de 1972 os destinos do surrealismo português passavam pelos refúgios montanheses de Pascoaes e estes pela admirável maravilha daqueles. E Hermínio, através duma acção editorial conduzida com mão segura de estratega, foi porventura quem dos novos mais extensamente contribuiu para soldar, ao menos de forma visível, os dois ramos, surrealismo e Pascoaes, que antes de 1972 andavam soltos, desarticulados, cada um pelo seu lado.


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Capítulo integrante do livro Notas para a compreensão do Surrealismo em Portugal, gentilmente cedido pelo autor. Para conhecer melhor vida e obra de António Cândido Franco, visite: http://literaturaliteraturaliteratura.blogspot.com.br/2014/02/conhecer-antonio-candido-franco-vida-e.html. Página ilustrada com fotografias de Teresa Sá Couto.






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