Fui-me
deitar. E levei toda a noite a sonhar com o deserto, diamantes e animais
ferozes e com o desafortunado aventureiro morto de fome nas vertentes geladas
dos montes Suliman. [H.Ridder
Haggard]
Nestes tempos, canta-se
aquilo que não vale a pena dizer. [Beaumarchais]
Quando sou convidado para vir conversar em lugares como este,
durante alguns dias tento articular uma introdução apropriada, defrontando-me
então com um acervo de inícios possíveis.
Provavelmente
passa-se o mesmo com qualquer outra pessoa nas mesmas circunstâncias, mas no
meu caso, confesso, fico ligeiramente mergulhado numa certa indecisão, que a
meu ver parte do facto de que, à medida que os anos passam, me parece saber
cada vez menos, ter cada vez mais interrogações perante a questão da escrita e
ante o que ela pode significar para os meus semelhantes em geral e para mim
mesmo em particular.
Creio que tal se deve à circunstância de eu não ser, segundo me
parece, um pensador, mas apenas um indivíduo que foi através dos anos
descobrindo uma certa pequena música
e alguns segredos presumíveis nas palavras e no reflexo que elas por vezes são.
Só me posso desculpar, se assim me posso exprimir, com uma frase
do “Zohar”, ou “Livro do Resplendor”, que refere argutamente que “todas as palavras podem ter cinco sentidos
e algumas têm mesmo muito mais”. O problema estaria então em tentar
descobrir alguns desses sentidos, que no outro lado do espectro nos fazem
meditar numa frase do Inquisidor-mor de Richelieu, que disse uma vez:”Dai-me uma qualquer frase e garanto-vos que
ela porá um baraço ao pescoço do seu autor”.
Ao escrevermos, e naturalmente aponto para o meu caso pessoal,
talvez não fosse asneira meditarmos no facto de que, de acordo com alguns
sagazes especialistas, logo contestados por outros tão sagazes como eles, o
território da escrita é o território da indefinição e da suspeita, da maior luz
e da mais profunda sombra, isto se quisermos recorrer a símbolos. Pela minha
parte tenho concluído que a existência projectada num determinado espaço de
escrita configura sempre a observação, por vezes a instauração, dum espaço
caótico, seguido nos melhores casos da sua reconversão. Ou seja, segundo o
raciocínio que a lógica dos sinais e dos símbolos comporta, um acto que provém
do jogo efectuado em circunstâncias mortais no seu plano próprio, no plano da
vida enredada nas palavras a que o “Zohar” alude. Porque, com efeito, o caos
manifesta-se a cada passo, vivemos num Universo regido pelo “princípio de incerteza” de Heisenberg, o
que pressupõe, por extensão e antítese, que a acção do sujeito, enquanto “anima
mundi”, é o verdadeiro princípio gerador da ordem e da realidade. E aqui está
porque é que a ordem das instituições e dos poderes é tão incapaz de
estabelecer uma relação harmoniosa entre o ser e o meio societário. Máquina
esvaziada de sentido, palavra perdida num oceano de dura penumbra e de aparências
fragmentadas, ela não é mais que uma ilusão arteiramente acatitada através dos
séculos, ainda que as consequências produzidas tenham sido sempre funestas,
sempre duvidosas. A palavra que contém em si o verdadeiro sopro vital é bem
outra: a que se consubstancia na figuração e no posterior entendimento do
secreto sentido do Mundo, ou seja, aquele que é o cerne da própria matéria,
como um sal unindo enxofre e mercúrio.
Segundo parece há na operação alquímica um momento em que o
operador, depois de efectuado um “tour de
main” apropriado, fica dependente de um lampejo em que a sua imaginação,
mais que o seu conhecimento, lhe indica o que fazer. O mesmo se passa a meu ver
na poesia: há, nos melhores casos e nas melhores alturas, um encadeamento feito
de sabedoria em que, como referia Chesterton, somos levados ao país das fadas.
O grande problema, o penoso problema, é que vivemos numa sociedade de
afrontamentos que, apesar da democracia mais ou menos envolvente, é um meio
propício ao desenvolvimento do efémero contínuo,
mais do que o “presente contínuo” a
que um filósofo cujo nome não recordo fez referência numa obra sua.
E, uma vez que vivemos nessa tal sociedade, talvez faça sentido
recordar que, desde Georges Simmel, que através dos seus estudos chamou a atenção
para o que depois tomaria o nome de “socialização
da morte”, se tem conhecimento de que, e cito “o espaço social mantém e encerra os ossos com o excremento dos vivos,
acumula os locais vividos de geração em geração, suscita uma unidade atemporal
que envolve o Homem na trama já constituída da morfologia e da paisagem. É uma
unidade, sem dúvida, inteiramente psíquica, pois os acontecimentos podem levar
um grupo a certas deslocações e os nómadas não sentem a necessidade dessa
estabilidade campal, mas esta frágil unidade é como aqueloutra da “memória
colectiva” de que falará Halbwachs, mais ligada ao meio que à duração”. E,
penso eu, não devemos perder de vista o facto de que a sociedade actual se
caracteriza, entre outras coisas, por possibilitar que se camufle a violência
interior, que é a mais perigosa e arrasadora, sob artefactos mentais de
violência exterior dados como naturais, inevitáveis ou até como exigências de
maiorias claramente controladas por uma certa ideia, desvirtuada, das
necessidades de Estado. Talvez faça sentido, ainda, considerarmos que nos
encontramos em reciprocidade de acção, quer sejamos mais permanentes ou mais
passageiros – passe o simbolismo destes termos – e que as estruturas deste fim
de século dependem muitíssimo de abstracções que já pouco têm a ver com as
realidades individuais ou grupais existentes. Daí o desacordo frequente entre
personalidade e colectividade e que tem a ver com o “apodrecimento das sociedades” detectado, entre outros, por Georges
Pérec e Paul Virilio mas também, noutro continente de preocupações, pelo sagaz
e recentemente desaparecido Jean Guitton.
Há que notar que, apesar das operações bem adestradas de
contra-informação e de distracção de massas, vivemos rodeados ou explicitamente
imersos num sistema relacional extremamente vulnerável e permeabilizado pela
hipocrisia afável, a desinformação controlada, a mentira sistematizada e a
desertificação dos imaginários consistentes, todos eles filhos do tal “efémero contínuo” a que aludi.
Pode ser que isto seja
devido a uma mudança de pele da Humanidade e da História. Contudo, creio que
fará sentido considerarmos o que nos diz uma personagem de Henri Pichette, numa
tirada digna de Vítor Hugo: “Vós haveis
feito de Paris um bordel, de Londres um monturo, de Berlim uma cloaca, de
Moscovo um calabouço. Mas não mais tereis paz. Eis que de toda a parte oiço
chegar, com dentes de lobo, os espectros encolerizados da mágoa, do desprezo e
da expiação”.
Os quotidianos bichosos, essas “coisas
que há no ar e me atabafam os dias”, como dizia Jean Giono, podem contudo
ser contrabalançados pela assumpção de um conjunto de movimentos e de inflexões
interiores forjador de um hálito capaz de nos permitir entender formulações
como esta, da autoria de Gherasim Luca: “A
beleza rompe literalmente as trevas. O seu frémito procura-nos, encontra-nos,
atravessa-nos, conduz através das veias um veneno que ressuscita. Porque a
beleza é uma doença de pele, de nervos, de sangue e de espírito”.
Aqui, tenham a bondade de me consentir que transcreva umas
palavras de Thomas Mann, que a dada altura dum ensaio da sua lavra nos diz:”O artista e a sociedade. Pergunto-me se
chega a compreender-se com clareza quão complexo é o problema que
enfrento.(…)De facto, muito bem se sabe que o artista não é em si mesmo um ente
moral mas um ente estético, que o que o inspira e move não é a virtude mas o
jogo, inclinado espontaneamente a jogar, ainda que mais não seja que
dialecticamente, com os problemas e as antinomias da moral.“. Todavia,
acrescenta o A. Logo a seguir, “o artista
melhora o mundo de maneira distinta à que é preconizada pela moral, e
precisamente incorporando a sua vida pessoal – e de maneira representativa a
vida em geral – à palavra, à imagem, ao pensamento, dando-lhe um sentido e uma
forma e tornando transparente o que Goethe chamava ‘a vida da vida’: o
espírito. Em nenhum caso poderei contradizer o artista quando afirma que o fim
da arte é a ‘vivificação’ em todos os sentidos e não outra coisa(…)”. E
mais adiante, e a finalizar esta citação, refere: A verdade é que o artista, nas suas realizações e nas suas formas
individuais começa sempre como algo de novo e, impregnado de ingenuidade, sem se
conhecer, ou melhor, sem se reconhecer, vai adquirindo vida de maneira
espontânea, sempre de maneira totalmente nova e absolutamente única. Cada caso
que nele se manifesta é um caso extraordinário, determinado pessoalmente, de
modo particular”.
Eu não sei se a poesia e a escrita, tal como ela foi praticada por
autores como Rilke, René Char, Pavese, Juan Ramón Jimenez e tantos outros, ou o
continua a ser por vivos como Milozs, Yves Bonnefoy, C. Ronald, Michael
Hamburger, Mathew Meade, Mário Cesariny, etc., pode constituir um antídoto
eficaz contra a poluição do ambiente mental. O que sei é que existem coisas
como este verso de Cristóvam Pavia que nos fazem reflectir esperançosamente:”Até as imagens me são inúteis porque
contemplo tudo”.
Inscrito no seu contexto, ele deixa-nos
adivinhar um mundo religado, misteriosamente reconduzido à sua função
primitiva: lugar onde o Homem já não é mera fotografia ou apenas sinal de
intercâmbio formalizado e sim figura significativa onde confluem mundos de
liberdade e de imaginação salutar.
Estamos a atravessar, uma vez mais, dias em que o novo-riquismo e
o ambiente filisteu da mais baixa extracção se erigiram em valores sensíveis e
que certos sectores buscam apresentar como naturais e irrepreensíveis. Fará
talvez sentido, então, sublinhar uma vez mais que o artista não desfigurado e
vertical e alheio às mundanidades continua a ser um polo de consciencialização,
embora isso seja extremamente entravado pelo jogo intrincadamente societário de
muitos sectores que, no país, procuram imitar em caricatura o que lá fora se
faz com mais experiência, mais discernimento e até com certa lealdade, embora
esta seja uma lealdade nefanda, uma vez que tenta fazer passar como exemplares,
conseguindo-o frequentemente, ritos de massificação, propondo com certa argúcia
os valores do precário, do aparente e do vazio pedante como questões
fundamentais.
Felizmente que a cada dia
que passa o mundo se transfigura: os quatro reinos da natureza renovam-se a
cada momento e, em certas horas, deixam entrever os símbolos do Tempo, com o
seu fogo e a sua luz. Na nossa memória, no sal e no pão interiores de toda a
gente, há certos influxos que cristalizam, porque é condição da Vida ser fruída
e recordada. E, se é do fundo dos séculos que essa voz persistentemente chega
até nós, estamos contudo rodeados da sua imagem soberana, desvelada em
presenças familiares ou fraternais, a verosimilhança da mágoa e dos grandes
amores em que, como indivíduos, nos vazamos e expandimos – a dimensão
simultaneamente humana e sagrada da nossa exactidão como pessoas.
Permitam-me, aqui, um
parêntesis: mais do que poeta, sinceramente vos digo, neste momento
considero-me mais um recolector de
resíduos. Resíduos de acontecimentos, de inflexões, de memórias e de
momentos bons ou maus. A organização da escrita que se lhes sucede é que
constitui o acto poético possível. E isto também depende da memória das coisas
e da memória dos seres com quem me fui e vou cruzando. Não é que a verdadeira
vida esteja algures, como dizia Rimbaud, mas sim que haja tentativas de a
falsificar. Pessoalmente, respondo com a utilização de uma certa desconfiança
lúcida, digamos, e sempre com a fidelidade aos sonhos que acalento desde a
infância. Se acaso consigo traduzir isso em versos que possam interessar os
meus semelhantes, é matéria de suficiente congratulação e suficiente prémio.
Para finalizar, queria dizer que a minha vinda a Paris teve
naturalmente a ver com esta sessão. Mas consintam-me ainda que eu diga para mim
mesmo que foi de facto por um maravilhamento que antevia me fosse ofertado pela
vossa cidade e os inúmeros amigos que
nela tenho: pois não constituiu acaso que o meu primeiro acto, ao chegar, fôsse
dirigir-me ao cemitério do Père Lachaise, que é mais um jardim onde não se
sente a presença macabra da morte – onde visitei presenças para mim tutelares: Gérard de Nerval, Chopin, Balzac,
Corot, Benjamin Constant, Max Ernst, Modigliani e tantos outros.
Que este meu gesto,
finalizado na rua do Rivoli frente à Tour Saint Jacques de Nicolas Flamel, seja
como que a afirmação do sinal de permanência da vida até na morte.
Obrigado a todos.
***
Nicolau
Saião (Monforte do Alentejo, Portalegre, 1949).
Participou em mostras de Arte Postal em
países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e
Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como
Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada,
Tiblissi, Sevilha etc.
Em 1990 a Associação Portuguesa de
Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro Os objectos inquietantes (1992). Autor ainda de Assembleia geral (1990), Passagem de nível (1992), Flauta de Pan (1998), Os olhares perdidos (2001), O desejo dança na poeira do tempo
(2008), Olhares perdidos (2007), O armário de Midas (2008), As vozes ausentes (2011), Escrita e o seu contrário (a sair).
Prefaciou os livros Mansões abandonadas, de José do Carmo
Francisco, Fora de portas, de Carlos
Garcia de Castro, Estravagários, de
Nuno Rebocho e Chão de Papel, de
Maria Estela Guedes.
Fez para a Black Sun Editores a
primeira tradução mundial integral de Os
fungos de Yuggoth, de H. P. Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e
ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana, Bichos (2005).
Organizou, coordenou e prefaciou a
antologia internacional Poetas na
surrealidade em Estremoz (2007) e co-organizou/prefaciou Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril.
Com Mário Cesariny e Carlos Martins,
colaborou na efectuação da exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e,
com João Garção, levou a efeito a mostra de mail art “O futebol” (1995). Concebeu, realizou e apresentou o programa
radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões). O cantor
espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum Canciones
lusitanas.
Tem colaborado em espaços culturais de
vários países.
Em 1992 o município da sua terra natal
atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre
comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a
medalha de Mérito Municipal.
Contacto:
nicolau49@yahoo.com.
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