Este
questionário/entrevista resultou de conversas tidas através do tempo em
diferentes circunstâncias. Congeminado em projecto em momentos de jovial
confraternização, umas vezes de longe outras de mais perto, andou alguns meses
em stand by e só viu a sua concretização ganhar corpo há um par
de dias.
Da
sobreposição alternada de uma garrafa e de um telefone poderá surgir um fogão
alquímico? Só a quem nunca sequer suspeitou da existência de praias surreais
poderá parecer bizarro tal resultado. O telefone transporta a voz do náufrago
da era moderna para as paragens do convívio que a distância ou o isolamento lhe
fez perder, amenizando-lhe e enriquecendo a ausência forçada – assim
substituindo, com vantagem, a garrafa cheia com a carta da esperança do milagre
do reencontro. A garrafa, quando o reencontro se dá, essa transforma-se numa
espécie de depósito onde as ideias e as vivências se transmutam numa espécie de
vinho envelhecido, que faz brilhar ainda mais a mente e as palavras que ela
origina.
Vertido
da garrafa, primeiro, temperado pelo telefone, depois, redefinida a ligação dos
inúmeros elementos em ligações mais ou menos previsíveis ou inesperadas numa
espécie de petisco degustado entre amigos, o questionário que apeteceu para
esta entrevista visa apenas e tão-somente uma nova garrafa.
Achámos
por bem partilhá-la. É a nossa maneira de ir recheando a Eternidade. [JS]
JS | O que entende o surrealista Nicolau Saião por realidade?
NS | Dito de modo
sucinto, o que se apreende através dos sentidos mas duma forma alargada. Sem
entraves absurdos ou inconsequentes.
Naveguemos um pouco mais fundo: o que se
apreende se os nossos sentidos não estão bloqueados pelos mecanismos do hábito e
da obrigatoriedade incrementados e sustentados pelos manejos de uma sociedade
controlada por indivíduos, grupos ou instituições que visam a sufocação, quando
não mesmo a extinção, do pensamento autónomo e criativo, o atravancamento das
grandes vias mentais por onde passam a curiosidade de espírito e a sua
independência que são as que propiciam o desejo da liberdade de expressão, bem
como de investigação dos ritmos do mundo e o livre relacionamento entre os
seres e destes com o universo que integralmente os rodeia, sublinho, por fora e por dentro.
JS | E como intuía essa realidade numa infância em que o
realismo lhe puxava pelos calções e disputava o pião?
NS | O realismo não é só
o que faz parte do quotidiano que se observa nas nossas horas despertas, mas
também o que existe à nossa volta e capturamos mediante o inconsciente e que
com enorme frequência se mistura com o outro. Digamos que funciona como uma
viagem incessante e que não se separa, nem deixa que a separem, do que é visível
e do que, parecendo fazer parte do invisível, está de facto intimamente ligado
aos dois.
A infância, não o esqueçamos, é algo que
apesar de ter sido eventualmente atravancado pelas caquexias circundantes, continua
a sentir-se como um território cheio de encantos. E ainda que um pretenso
realismo (o “realismo” que certa gente tenta propor como o único possível)
queira fazer-se passar por uma totalidade, ele é apenas uma parte do que ao ser
humano em geral, à criança e ao muito jovem em particular, serve de continente.
Digamo-lo duma vez por todas: o realismo, o
verdadeiro realismo, o que abarca esse existir global, não tem mal nenhum –
antes pelo contrário. Aliás, o surrealismo é esse intercâmbio incessante entre,
como diz o postulado alquímico, o que
está em baixo e o que está em cima para que se faça o milagre de uma só coisa.
E acrescentarei: por vezes também se tenta
fazer passar por surrealismo, em oposição ao realismo “coerente”, o
destrambelhamento de frases, o acúmulo de imagens desconexas e sem sentido que,
na verdade, mais não são que maneirismo pedante de sujeitinhos com a mania dos
monstros e de cultores da aldrabice descarada, afivelados com intenções confusionistas
de artilhadores “artísticos”. Que ora armam em dadás retardados ou em imagistas
tão enjoativos e ridículos como aqueles.
Refutamos
liminarmente essa tentativa de proximidade. Definitivamente, não comemos desse
pão.
Não
podemos esquecer que o surrealismo não tem a ver apenas com o automatismo
psíquico (psíquico, sublinho), mas
com o humor (ora negro ora colorido…), com a crítica liberta de entraves
necrosados, com o amor e a liberdade de investigar os grandes temas da vida,
tanto os que se adquirem mediante observação sensata e normal em qualquer ser
não pervertido ou jugulado pelos vários fideísmos, como os que necessitam de
uma linguagem científica, mas sem preconceitos ou superstições.
O surrealismo que o é não pode consentir que o afastem dos conhecimentos e descobertas que entretanto se foram adquirindo, seja no sector da astronomia, da física espacial, da medicina, etc. Procurar saber, em suma, o que são os poderes do Homem e o que são os perfis dos deuses (ou assim chamados), sem se deixar pear pela repressão dos que tentam exaurir ou punir essa feição prometaica. Como vamos defrontar-nos, isto como exemplo liminar, com os problemas que nos coloca, por um lado, o superpovoamento e, por outro, a extinção de espécies - o que dará uma assustadora ideia do que poderá suceder à humanidade num futuro que muitos olham como não tão distante assim.
JS | A paisagem de Portalegre que via no espelho frente
ao qual trabalhava a melena adolescente mostrou-lhe mais ou melhores coisas do
que qualquer outra?
NS | Faço questão, em
primeiro lugar, de dizer que a minha infância e adolescência decorreram de
forma a possibilitar-me que na idade adulta e agora, na idade madura, tenha
guardado delas um profundo reconhecimento e uma profunda saudade.
Tive
a sorte de ter progenitores compassivos, esclarecidos e bondosos no âmbito duma
família funcional e isso permitiu-me progredir sem traumas através desses
tempos juvenis e dos que se lhe seguiram.
Tive
portanto um relacionamento afectuoso com as pessoas e com a Cidade que, para
mim, foi sempre um lugar de comprazimento (de aventura, de sonho, de incursão
no conhecimento que se extrai dos anos e da existência).
Claro
que por vezes tive de me defrontar com factos penosos como, por exemplo – mas isto
já na idade madura – actos de difamação e de calúnia agravada por parte dum par
de sujeitos que mesclavam a mediocridade com a maldade e a inveja filhas da sua
personalidade distorcida e mesquinha. O que aliás foi equacionado pelo tribunal
que, em audiência de juízo, os condenou a todos. (O Sistema Judicial, que no
nosso país é comprovadamente o cancro que está orientadamente a destruir a
democracia possível, felizmente ainda tem em si magistrados dignos e que, em instâncias
de relação, emendam o que outra gente desonesta ou incompetente tenta
obscurecer de maneira lamentável).
Em suma: a minha Portalegre, que naqueles
anos de juventude para mim era um picolo
mondo, não a deixo, nunca a deixei, ser inquinada por gente ou por
colectivos nefandos.
Estive em muitos lugares - muitos deles belíssimos
- de várias partes do vasto mundo (e gostaria que tivessem sido mais). Mas
regressar a Casa, à minha casa e à minha região, foi sempre uma alegria que sem
quebras tem permanecido em mim.
JS | Quais foram e são as grandes paisagens da realidade
real da sua vida?
NS | Creio que sempre
andei em estado de admiração para com o que me rodeia. Tudo me agrada e como
que me espanta, desde as coisas da casa onde vivo e me são tão familiares até
àquilo que vou vendo nos lugares onde me desloco, por onde passeio ou viajo. Apesar
da sociedade pseudo-civilizada (nesta expressão, civilização não significa repressão do desejo e da autonomia
pessoal) em que os diversos grupos de interesses (económicos, fideístas,
políticos) finjam-se ou não humanistas, nos tentam encafuar prejudicando-nos
sem remorsos, não abdico da alegria de viver.
Luto,
como sempre lutei, pelo direito a ela. E uso de forma própria, sem abdicar da
dignidade de estar vivo, das “armas
miraculosas”, ainda que frágeis, que possuo. E que fui, digamos, tentando
adestrar através dos anos.
A
magnificência da música, da escrita, da pintura, do que contemplo e do que
faço, todos esses momentos que se vivem e nunca mais voltam, são para mim essas
paisagens a que alude. A meditação, as conversas com os outros, os pequenos
instantes de felicidade…
Tudo
isso tem sido fecundo material para encher uma vida.
JS | As palavras são como as sereias ou como as cerejas?
NS | Umas vezes como as primeiras,
mas eu prefiro as que são como as segundas.
Dizia
Chesterton que “Todo o encadeamento de
palavras leva ao êxtase, todas podem levar ao país das fadas”. Essas
sequências de palavras que se organizam em frases que juntam a justeza à
imaginação forjadora de mais luz e não são mero pretexto para seduções espúrias
e destrambelhadas, constituem verdadeiramente o eixo do mundo que liberta e não
que está ao serviço da repressão camuflada, nomeadamente aquela que se disfarça
de aparentemente livre ou progressista e apenas visa acorrentar o Homem a jogos
aparentemente mais “modernos” mas na verdade inqualificáveis.
O surrealismo que eu perfilho, de que me
reivindico, o que segue em direcção ao futuro salubre, recusa as palavras
cantadas por essas sereias velhacas, que tentaram inclusivamente pela via da
incoerência e de um discurso paranoide lançar a ideia de que a Voz surreal
seria sem sentido, incoerente e arbitrária – uma espécie de pudim metafísico – para
extinguirem aquilo que, acima de tudo, é uma actividade conceptual lúcida,
verdadeiramente organizada e crítica que nada tem a ver com peralvilhices ou
encenações de palhaços ricos ou pobres…
JS | A pintura é uma capa com que se enfeita algo ou uma
decapagem para mostrar uma beleza que se encontrava coberta de sujidade e pó,
esquecida ou posta de lado, embrulhada no Tempo?
NS | Posso dizer que a
sua questão está excelentemente formulada? Embrulhada
no Tempo, diz muito bem. Cabe então ao pintor, como um verdadeiro
trabalhador braçal que num gesto resoluto junta acção e concepção, efectuar uma
verdadeira limpeza do que foi posto de lado, depois de ter sido conspurcado e sulcado
por regueiros doentios e por teias de aranha, pelos que visam transformar a
pintura numa actividade descendente do espectáculo com que procuram confundir a
visão clara e salutar da existência em
todas as direcções.
O
verdadeiro pintor não abdica de perseguir a originalidade, mais – a
originalidade é algo que se lhe impõe nessa incursão, é algo que o cobre como
uma luz, o que inclui também a penumbra criadora e repousante. Não há fórmulas
- para quem é sério e autêntico nessa busca muitas vezes trabalhosa - para
garantir negociatas, notoriedades e famas que muitas vezes só dependem de
iletrados pretensiosos ou ricaços de letras-grossas.
O
verdadeiro pintor, que no caso vertente tenha uma visão surreal da existência e
da criação, não se atém a feituras “de escola”,
mas usa os seus poderes interiores e exteriores para descobrir e encontrar. Como um demiurgo, ainda que sem perder a
humildade daquele que busca, que procura, que tenta acrescentar um dado novo ao
conhecimento, antecâmara da eventual e possível sabedoria.
JS | Definiria a guerra como “o mostrengo da realidade”?
NS | Que é um mostrengo
não cabe dúvida…Fundamentalmente tem sido o monstrinho que se solta dos ninhos
construídos pelas avantesmas da avidez manhosa, do cinismo dos poderosos, da
crueldade dos que se cobrem com a sotaina da hipocrisia que tenta fazer da
vida, do mundo da natureza, uma coutada para os seus vis interesses de casta ou
de orientação. Tudo escorado pelos idiotas úteis cuja mentalidade foi capturada
por esses fantasmas regimentais.
O que
até é, convenhamos, dizer pouco…
JS | “O que não me mata, fortalece-me.”, dizia
Nietzsche. A guerra constituiu, para si, a visão de uma realidade irrisória, de
tão triste, que por isso mesmo reafirma ainda mais a visão surrealista?
NS | Com efeito estive,
enquanto militar por imposição, num teatro de guerra, a hoje Guiné-Bissau. Tive
momentos muito penosos e, talvez devido à maravilha da juventude, outros que me
gratificaram e enriqueceram (o contacto com colegas, com pessoas e lugares dali,
com realidades quotidianas nos momentos de folga e deambulação principalmente
por uma cidade, Bissau). Conheci nesses tempos gente de uma dignidade a toda a
prova, assim como outra na qual a estupidez e a canalhice sórdida se uniam da
maneira mais deprimente.
Mas
sim, essa vivência - e recordo que ela aconteceu entre os 21 e os 24 anos de
idade – cimentou o meu sentir e a minha visão surrealista, pois ficou imersa num
cenário ora dramático ora lírico (se assim me exprimo). E não esqueçamos que
ela sucedeu num continente que já se descreveu como surreal, a África, um lugar,
uma região e um universo muito próprios com os seus cheiros, as suas cores, os
seus horizontes, o seu perfil humano e geográfico (as árvores, os animais, por
vezes o inusitado de hábitos e de paisagens). De movimentos interiores e de realidades
quotidianas…
JS | Que tipo de aleijões provocou na alma portuguesa a
proverbial bota com que o falso beato Salazar subjugou o país, convenientemente
escondido debaixo de uma sotaina? E como se apresentaram eles no rosto da
cultura em Portugal e no rosto do surrealismo, em particular?
NS | A meu ver, o
aleijão a que sagazmente alude teve como consequência misturar duma maneira inqualificável
razão com desrazão sem se ter possibilidade de distinguir bem entre o que era
uma e o que era outra. Isto tanto no campo da arte, como no da economia, da política,
da ciência – em tudo enfim.
A consequência foi o atraso conceptual, o
provincianismo assustador, o oportunismo de possuidores e a falta de caracter
de despossuídos.
Isso fez com que o rosto do surrealismo
estivesse sempre percorrido por sombras que tinham a ver com a pobreza (pobreza
mesmo, se ler por exemplo cartas já publicadas, trocadas por protagonistas dos
primeiros tempos, verificará que falavam incessantemente na falta de dinheiro
que os oprimia e impedia de publicar normalmente o que criavam); com as
questiúnculas provocadas por gente que ou procurava ir para outro patamar (e
por isso perdia de vista que o surrealismo é uma busca interior honrada a favor dos poderes humanos de liberdade
e dignidade despreconceituosa), ou tinha uma formação que se revelava
autoritária ou intolerante ou pouco esclarecida e de pendor academizado.
JS | 40 anos passados, ainda se notam alguns deles ou,
pelo menos, as suas marcas no presente e no futuro que talvez se possa prever?
NS | A meu ver notam-se,
tanto mais que a sociedade lusa conservou certas características que fazem dela
uma democracia apenas aproximativa, enquanto por outro lado agravou outras que
dependem de ritmos já europeizados, ou mundializados, mas que são tão nefastos
como o “orgulhosamente sós” do
salazarismo apoiado por entidades fideístas reaccionárias e conservadoras,
tendo do outro lado do espectro político-social formações de cariz totalitário
que, também elas, visam mistificar os cidadãos e servirem-se deles para os seus
fins.
JS | Agora a sério: gosta de futebol?
NS | O jogo, por
extenso, é um dado claramente apelativo para o ser humano. Acompanhou o Homem
desde os primeiros tempos e em todas as civilizações. Pertence à sua estrutura profunda.
No que diz parte ao futebol, fenómeno filho da idade contemporânea, filho desta
modernidade em que estamos inseridos, é efectivamente um fenómeno de massas e
mobiliza o interesse e o apreço de milhões. O problema está em que perdeu a
inocência dos primeiros anos e hoje é um negócio, aliás entendível, mas também
um elemento de que os donos do mundo se servem para aprofundar a manipulação e
a alienação dos seus apreciadores.
Do
jogo gosto – quem não sentiu o entusiasmo de o praticar na infância e
adolescência e, depois, de o ver em directo ou nas transmissões? Do que o
rodeia e aquilo em que o transformaram para manipular as pessoas e enlouquecer
os adeptos, obviamente não gosto mesmo nada.
Nicolau
Saião (Monforte do Alentejo, Portalegre, 1949).
Participou em mostras de Arte Postal em
países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e
Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como
Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada,
Tiblissi, Sevilha etc.
Em 1990 a Associação Portuguesa de
Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro Os objectos inquietantes (1992). Autor ainda de Assembleia geral (1990), Passagem de nível (1992), Flauta de Pan (1998), Os olhares perdidos (2001), O desejo dança na poeira do tempo
(2008), Olhares perdidos (2007), O armário de Midas (2008), As vozes ausentes (2011), Escrita e o seu contrário (a sair).
Prefaciou os livros Mansões abandonadas, de José do Carmo
Francisco, Fora de portas, de Carlos
Garcia de Castro, Estravagários, de
Nuno Rebocho e Chão de Papel, de
Maria Estela Guedes.
Fez para a Black Sun Editores a
primeira tradução mundial integral de Os
fungos de Yuggoth, de H. P. Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e
ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana, Bichos (2005).
Organizou, coordenou e prefaciou a
antologia internacional Poetas na
surrealidade em Estremoz (2007) e co-organizou/prefaciou Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril.
Com Mário Cesariny e Carlos Martins,
colaborou na efectuação da exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e,
com João Garção, levou a efeito a mostra de mail art “O futebol” (1995). Concebeu, realizou e apresentou o programa
radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões). O cantor
espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum Canciones
lusitanas.
Tem colaborado em espaços culturais de
vários países.
Em 1992 o município da sua terra natal
atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre
comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a
medalha de Mérito Municipal.
Contacto: nicolau49@yahoo.com.
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