No descontínuo da
existência humana o erotismo assegura a continuidade do som envolvente. “Este corpo fala”, dizia Lacan. Suspenso
entre dois silêncios, o da vida e o da morte, o erotismo é mais que mero sinal
na campina onde os fantasmas primordiais do espírito vagueiam sem destino.
Se ao princípio foi o Verbo, logo a seguir o Homem teve de confrontar-se
com um surpreso e confuso balbuciar. “Coisas
de deuses”, dir-me-eis familiarmente. “Coisas
universais, onde se reproduzem realidades misteriosas”,
responder-vos-ei. Afirmando a desordem
sonora (que é uma bem ordenada configuração) contra o tímido império de uma
perturbada realidade muda, o erotismo participa na instauração duma realidade
outra, transfigura as experiências e o próprio sentido da Natureza circundante.
Não é arbitrariamente, pois, que Marianne Roland-Michel nos diz que “A humanidade só existe graças à infinidade
milenar dos acasalamentos, aos sucessivos nascimentos, num encantamento e
encadeamento inumeráveis como a areia dos desertos. Homens e mulheres
enlaçam-se na noite dos tempos e procriam, por muito que se recue no passado.
Daí nós aqui estarmos hoje, gerados e geradores.
A arte é, antes de tudo,
linguagem dos sentidos em movimento. À arte não se chega pela Razão: a poesia,
como dizia Lautréamont, “é um rio
majestoso e fértil”; a pintura erótica, por seu turno - na minha concepção
metafórica - é uma região silvestre onde vagueiam Dionísio e as ninfas,
acompanhados por todas as estrelas e cometas que constituem o seu séquito. E,
como se sabe, os deuses pagãos enquanto símbolos existem no nosso tempo, se os
soubermos ver, que o mesmo é dizer: se soubermos reconhecer-nos no sagrado que
é a vida.
Em 1908 declarou Alfred Loos que
“toda a arte é erótica”. Esta frase
tem de entender-se no contexto em que foi pronunciada. É uma verdade que a arte
pertence ao mundo de Eros, ao mundo que se opõe a Thanatos, que mais que o
território da morte é o lugar da não-existência, das frias pulsões destrutivas.
No entanto, a arte erótica tem características que a definem: ela epigrafa o corpo amoroso e a pessoa sexuada,
apresenta-a simultaneamente como objecto
e sujeito de desejo, coloca os dados da questão na capacidade humana de
fruir o espaço da sexualidade e de transfigurar essa experiência em poesia e
libertação da nossa triste condição de seres mortais.
Já o mesmo não se dá com a
pornografia: esta, pelo contrário, recenseando falsas premissas (é um mundo de
frieza e de supressão da lógica dos relacionamentos e mesmo da sua
exemplaridade) é uma espécie de caricatura existencial – terreno onde apenas se
jogam esquemas pré-determinados, naturalmente controlados por razões
simplesmente argentárias e de comércio deliberado.
A arte erótica tende pois a sublinhar uma evidência fundamental rodeada de sombras suspeitas, a trazê-la ao quotidiano salubre. Na infinita madrugada dos corpos que se amam, as classificações só contam se evocam e provocam um rito mais perfeito e gerador de novas e exaltantes comunhões interiores: a experiência banal eleva-se até ao ponto supremo, ao vértice da comunicação. Tal como, na religião, a cerimónia de ordenação sacerdotal comporta uma unção, uma transfiguração – mesmo que ilusória, porquanto é dirigida a uma entidade fora do mundo, um deus – no acto erótico passa-se a outro plano, aquele que une dois corpos, duas mentes, duas experiências, dois percursos. Amar não é dois tornarem-se um, mas um tornar-se dois – é, por extensão, o ser humano tornar-se universo. O amor é uma infinita repetição. Para o enamorado a sua amada é todas as mulheres - e vice versa. O Homem, definitivamente re-ligado, existe então em plenitude. Daí que o acto amoroso seja uma simulação da morte (ultrapassando-a soberanamente) e não uma pequena morte como queriam os aristocratas libertinos e derivados menores ou uma grande morte como propunham os sádicos, míopes sexuais que necessitam de óculos/faca, ou os autoritários no plano social, membros em geral de crenças reveladas com o seu ódio ao amor humano, que esplendidamente se ergue contra o egoísmo teocentrista.
A voz sibilina que até nós chega
do fundo das eras traz com ela a certeza de que a realeza absoluta pode ser compartilhada por todos os homens e
mulheres que se livraram da pequena escala hipócrita e redutora que os próceres
societários armadilharam tendo-os como alvo (expressa, por exemplo, através do negócio da moda e da cosmética, do aperfeiçoamento corporal como um absoluto,
da pacóvia alegria de blocos para solteiros, jornadas para a terceira idade,
etc.). Assim se explica que as religiões reveladas, que subjazem a deuses
autoritários, persigam aberta ou dissimuladamente o erotismo, o corpo e a sua
dimensão amorosa enquanto discretamente incentivam pela sua acção castradora e
estupefaciente a pornografia e os recalcamentos societários. É esta a
explicação, também, para a atitude do mundo argentário, que descaradamente
explora as forças eróticas - que primeiro sufoca - nos bordéis e nas lojas de
sexo. Ou a do mundo da política totalitária, que procura incluir a feição
sexual, controlando-a, numa razão de Estado ou de partido.
Uma face, na arte, não é apenas uma face: milhares de momentos de
outras faces nela se representam e consubstanciam. O nu da imagem corresponde à
nudez assumida do homem e da mulher em comunhão, pois o erotismo é o sinal da sacralização do mundo concretizado em
seres que se amam e possuem. Viaja-se através de um corpo como se viaja em
busca dum planeta a milhares de anos-luz. A arte erótica, seja pelo traço e a
cor de Cézanne, Watteau, Bazille, Clóvis Trouille, etc., ajuda-nos a encalhar a
nossa barca nas margens onde cresce o mirto e a rosa, onde os fulgores do dia
se transmutam incessantemente na penumbra de que os amantes necessitam para os
mistérios do seu coração.
Suspensa entre o brilho duma
imagem ausente e a saudade daquilo que a imaginação nos concede, a arte erótica
fala com vital soberania: e é desta maneira que se assume como signo da
humanidade liberta, eternamente colocada além das aparências passageiras e
compreensivelmente sujeitas ao desaparecimento final.
Participou em mostras de Arte Postal em
países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e
Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como
Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada,
Tiblissi, Sevilha etc.
Em 1990 a Associação Portuguesa de
Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro Os objectos inquietantes (1992). Autor ainda de Assembleia geral (1990), Passagem de nível (1992), Flauta de Pan (1998), Os olhares perdidos (2001), O desejo dança na poeira do tempo
(2008), Olhares perdidos (2007), O armário de Midas (2008), As vozes ausentes (2011), Escrita e o seu contrário (a sair).
Prefaciou os livros Mansões abandonadas, de José do Carmo
Francisco, Fora de portas, de Carlos
Garcia de Castro, Estravagários, de
Nuno Rebocho e Chão de Papel, de
Maria Estela Guedes.
Fez para a Black Sun Editores a
primeira tradução mundial integral de Os
fungos de Yuggoth, de H. P. Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e
ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana, Bichos (2005).
Organizou, coordenou e prefaciou a
antologia internacional Poetas na
surrealidade em Estremoz (2007) e co-organizou/prefaciou Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril.
Com Mário Cesariny e Carlos Martins,
colaborou na efectuação da exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e,
com João Garção, levou a efeito a mostra de mail art “O futebol” (1995). Concebeu, realizou e apresentou o programa
radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões). O cantor
espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum Canciones
lusitanas.
Tem colaborado em espaços culturais de
vários países.
Em 1992 o município da sua terra natal
atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre
comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a
medalha de Mérito Municipal.
Contacto: nicolau49@yahoo.com.
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