quarta-feira, 23 de março de 2016

NICOLAU SAIÃO | A propósito da crítica


Resposta de NS ao inquérito temático efectuado pela revista Apeadeiro.
A Crítica? Sim, sei de quem se trata: é uma que vai ali adiante, de vestido muito sujo e chapéu às três pancadas. [John Buchan]

O assunto, mil vezes tratado de forma ora desenfadada ora dramática, pode ser colocado sob que égide? A do apego à decência, à verdade, à dignidade do que é viver, escrever, ser homem de corpo inteiro e de cabeça bem levantada? Ou a do direito de informar e ser informado de maneira cabal, verdadeira e não manipulatória, de aceder à Cultura sem que os cínicos de sempre ponham imediatamente, ao ouvirem tal palavra, o velho ar sofisticado de risota ou de fábula, como os canalhas mediáticos usam fazer quando alguém cai na asneira, ou na ingenuidade, de proferir a palavra honra?
Moderemos um pouco, digamos, a nossa prosa ainda que nos excite alguma indignação. O assunto seria de facto cómico se não fosse trágico. Ou antes: triste e equívoco. O problema é que temos, talvez, a alma demasiado ardente, demasiado indagadora, provavelmente mal adestrada para negócios escuros. Perdidos entre esperanças e amores mortos - um deles a realidade, que já está mais que apodrecida neste país - desejamos como que num desespero a alegria, a verdade dos tempos recompostos, a beleza. Como aquele jovem e aquela senhorita dos romances. Se calhar o problema é que de há muito o jogo, le grand jeu, não é mais que uma imagem esfumada, um retrato desaparecido, passos que se afastam na noite dura e adversa. A crítica? Sim, sim, em geral uma excelente pendura...
No que me diz parte, estou de alma branca: tenho tido razoáveis críticas, o que se chamam “boas críticas” se não formos maliciosos, mal formados ou simplesmente difíceis de contentar. Ou seja: na maior parte dos casos um bocadinho de açafrão, um cheirinho de pimentão, um trago da “rija”. Resumindo: coisas que fundamentam umas horas de prazer gastronómico. Não tenho pois de que me queixar. O meu relativo desapego, a minha críptica olhadela é inteiramente motivada por razões de mínima decência.
Vogamos em pleno oceano deserto. O da poesia, o da escrita. As provisões começam a escassear, ao longe no vasto mar não se distingue a brancura de uma vela, a nossa escuna desapareceu e só dispomos deste pequeno bote. Nem se divisa o rasto de um corsário de bons fígados, estamos entregues a nós mesmos. E no entanto...
E no entanto, de súbito, como vinda dum sonho, aparece uma linha de costa. Coragem, um esforço mais, chegámos a terra firme. Eis-nos já na orla do bosque.
E então começam as realidades inquestionáveis a deixar ver o seu perfil difuso, algo começa a fermentar e sente-se que se juntaram sujeito e predicado em estranhos conciliábulos, em frases de esquisitos recortes. Talvez não seja ainda o “que horror !” de Margarita no livro de Bulgakov, mas é já decerto o “uns belos trastes”, quiçá algo injusto, de Péret. Porque é difícil divisar-lhe nos horizontes, a isso da crítica cá da nação, o sul e o norte, a matéria provável e desejável de que seriam feitos os mais belos sonhos de uma realidade não poluída.
A evidência, como se compreende, consiste nisto: a crítica é, como dantes se dizia da tropa, o espelho do país. E quase tudo daí decorre. E daí tudo parte: os críticos altissonantes e vazios, mas palavrosos e espertalhões, iguais aos políticos e aos filhos-de-algo vazios e altissonantes que nos arrasam a paciência com as suas mentirolas e o seu arrazoado de vendedores de banha-da-cobra.. Os que são competentes e modestos, como certos homens públicos sofredores e esforçados, membros duma raça em vias de extinção na coisa quotidiana.
Há a crítica que se lê nos jornais. Muitas vezes simples aparelho de aferição, mais ou menos galhardo ou gaiteiro mas que podia ser - e nos melhores casos é - algo de suscitador, de exaltante, de nobre e de digno que não envergonha quem a lê e quem a escreve. Mas, em grande parte, trata-se de pequeninas traves duma casa onde já se instalou o incêndio, cocabichices sobranceiras de pequenos empafiados, ignorantes e patifórios nos casos limites. Em suma, pedacinhos não inermes de alguma arrogância ou de seguro fingimento. A sensação que se tem, frequentemente, é a de que se trata duma encenação fraudulenta, duma espécie de jogatana para capangas dum milieu de bairro de má fama revestido de ouropéis de pacotilha.
No entanto é amorável conseguirmos distinguir nesse lume uma, ainda que transitória, iluminação. E por vezes vê-se mesmo, distingue-se por detrás de algum constrangimento (certas chefias têm um poder discricionário), traçado em dez ou vinte linhas, o percurso justo e adequado do que uma obra é, do que representa. Aqui e ali descortinam-se saberes e honestidades, o apego a uma real descriptação duma caminhada, a adesão fremente a um futuro verdadeiro e certo. Mas para estas pepitas, quanta ganga excrementícia, quantos ademanes espúrios e quantas arlequinadas que nos fazem enrubescer. E já não falo da pura ignorância, da pura desvergonha, da pura falta de senso. Da pura – não tenhamos medo das palavras – pesporrência e da simples e boa maldade.
Já que mo perguntam, o que é um crítico, ou antes: o que devia ser? Tenho para mim que um ente que acredite mesmo, co’a figura inteira, na sua actividade de guia bem informado, um ente de boa-fé realmente empenhado em saber e em dar a saber aos outros o que há por ali - por aquela poesia, aquela música, aquela pintura, aquela prosa - que constitua tesouro, fruto e mistério encantador. Assim como uma espécie de missão tranquila e honesta? E porque não? Nisto não cabe nenhuma espécie de moralismo e sim de uma ética. Acaso o cinismo espertalhaço e lusitano já retirou do nosso vocabulário (dizem-me do lado que talvez sim) palavras como decência, saber, imaginação e outras mais que não recordo ou simulo não recordar – porque têm a ver com a honra de se existir, de se viver acima da lama, de se andar de rosto erguido entre réprobos ou malandrins?
Críticos por dever de ofício? Sim, se tiverem o fulgor de um Sainte-Beuve, de um Silone ou dum Claude Roy. Mas triste mester, vergonhosa tarefa a de acatitar eventuais jogos de editoras, de grupos de pressão, de castas sedimentadas num país de tartufos. Valer-lhes-á a pena semelhante trabalho?
E há também a crítica encorpada em livros, em cartapácios. E que é um gosto ler quando severa e argumentada, feita por homens de uma só cara. E há alguns que a praticam, parece que com um impulso vindo das tripas e das meninges. Mesmo que, aqui e ali, pontapeado e ferido pelo mal de vivre da sociedade portuguesa, que é uma coisa repelente e sinistra, tenaz como aquelas sujeiras que se nos colam aos fundilhos.
Poucos são os exemplos, muitos os fados, imensos os desvigamentos que os rodeiam. É assim de estranhar que alguns próceres entreguem os pontos e se rendam à mundanidade trombeteada por altifalantes de potente recorte? É que não pode ser por estupidez, pela santa estupidez que nos fulmina. Ninguém pode ser tão tolo assim. Sigamos, como dizia o “Garganta Funda” da película de Oliver Stone, “a pista da massinha e deixemo-nos de filosofias...”. Aí se encontrarão muitas descriptações tendenciais.
Por outro lado, esse encordoamento, essas “calosidades morais” a que Fitzgerald aludia, serão devidas a um tom hirto de escola ou de vezo universitário? De novo, do lado, me dizem que talvez sim, mas daí não viria mal ao mundo se os exemplos fossem entusiasmantes e consistentes. Mas em geral são taciturnos e duram pouco mais que a hora clássica das rosas do lírico francês. Quem pode, por exemplo, ler hoje as obras pretéritas de um conhecido figurão mediático sem um riso de escárnio, essas obras cobertas de citações, de espertezas saloias, de frases esgalhadas apenas para abater o presumível adversário? Para colocar no pequeno Olimpo deste triste parque dormitando à beira-mar determinados vates que não podemos, apesar de com carradas de razão, apelidar de poetinhas – que é o que eles são – sem ficarmos passíveis de cadafalso?
No fundo, a nossa voz – se a pudéssemos soltar – seria não mais que a voz pobre contra as vozes que sem cessar rolam nomes pelas quebradas, pelos largos e praças, pelas tabernas do reino onde se fazem reputações. Porque o penoso é também isto: a crítica servir para fazer reputações...
Vejo na crítica - quero eu dizer, gostaria de ver na crítica - uma ajuda real, inteligente e despreconceituosa para entrarmos melhor nos universos propostos pelos autores, sem facciosismos nem atitudes de baixa política. Para jogarmos a dois, digamos, a aventura do conhecimento e, mais tarde, das linhas de sombra da sabedoria possível. Para compulsarmos, talvez, numa casa solitária, ante o espelho onde o Eterno parece que irá aparecer um dia, o nosso próprio rosto, a nossa própria figura. Uma luz ardente que nos devastasse o rosto com súbitos clarões, para que pudéssemos um dia surgir com a verdadeira figura a que o nosso ter vivido, o nosso ir vivendo com a escrita nos concederia direito.
E, afinal, o que visam oferecer-nos na melhor das hipóteses é apenas um lugar numa espécie de campeonato de competências...
Gostaria de dizer, a finalizar, que vivo - por decisão do destino - afastado dos grandes meios lusitanos, que aliás quase nunca visito. Habito lugares entre as serras alto-alentejanas e os desertos do sul de Espanha. Aí tenho as minhas casas, que são casas de dentro e de fora. Falo a partir do que me chega em ondas, em revoadas trazidas pela voz de um amigo, por uma que outra revista oferecida ou por vagos periódicos, uma vez que quase só leio jornais espanhóis. Creio por isso que não conheço exaustivamente, in loco, os exactos meandros do assunto que busquei abordar. O meu trabalho profissional, específico, permite-me ir vivendo magnificamente isolado. Não vejo a chamada televisão, que detesto, embora veja inúmeros filmes a partir dos programas por cabo. Não frequento a sociedade, que aliás não desprezo nem odeio, com os seus ritmos calhordas e de uma videirice a toda a prova – os meus amigos são os minerais, os vegetais e os animais a que, com os familiares de sangue ou de ritmo vital, estou ligado e que me sustentam. O que intuo, entretanto, para além do que vou sabendo intermitentemente, não é contudo de molde a tranquilizar-me. E isto porque detesto a falsidade – nomeadamente a de um certo universo da crítica que tenho por aproximativa ou pesporrente nos seus considerandos pouco desembaraçados.
Aqui há dias, num periódico lido na casa de um familiar, topei com a prosa de um fulano que dizia serem “inanidades” os belos poemas de José Luís Puerto (que não conheço), dados a lume na “Apeadeiro”. Comprovei ser este o estilo fuliginoso usado em certos meios críticos. Que defesa haverá para uma opinião de tal jaez? O vómito urbano desculpará ou explicará coisas assim?
No cartão onde cortêsmente me convidavam a opinar, deram-me – como a todos – espaço até às trinta páginas. Nunca poderia lá chegar. Tal como Marie Noel não sou uma árvore nem sequer, talvez, uma planta útil. Estou sim ao lado da urze, do heléboro, do serpão. Intelectualmente, não consigo viver em bosques tranquilos.
E, apesar de tudo, para minha alegria e inquietação simultâneas o sol continua a brilhar sobre todas as coisas - até sobre imundícies que alguns propagam.

***

Nicolau Saião (Monforte do Alentejo, Portalegre, 1949).
Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha etc.  
Em 1990 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro Os objectos inquietantes (1992). Autor ainda de Assembleia geral (1990), Passagem de nível (1992), Flauta de Pan (1998), Os olhares perdidos (2001), O desejo dança na poeira do tempo (2008), Olhares perdidos (2007), O armário de Midas (2008), As vozes ausentes (2011), Escrita e o seu contrário (a sair). 
Prefaciou os livros Mansões abandonadas, de José do Carmo Francisco, Fora de portas, de Carlos Garcia de Castro, Estravagários, de Nuno Rebocho e Chão de Papel, de Maria Estela Guedes. 
Fez para a Black Sun Editores a primeira tradução mundial integral de Os fungos de Yuggoth, de H. P. Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana, Bichos (2005).
Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional Poetas na surrealidade em Estremoz (2007) e co-organizou/prefaciou Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril
Com Mário Cesariny e Carlos Martins, colaborou na efectuação da exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, levou a efeito a mostra de mail art “O futebol” (1995).  Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões). O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum Canciones lusitanas
Tem colaborado em espaços culturais de vários países.
Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de Mérito Municipal.






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