A Crítica? Sim, sei de quem se trata: é
uma que vai ali adiante, de vestido muito sujo e chapéu às três pancadas. [John Buchan]
O assunto, mil vezes tratado de forma ora
desenfadada ora dramática, pode ser colocado sob que égide? A do apego à
decência, à verdade, à dignidade do que é viver, escrever, ser homem de corpo
inteiro e de cabeça bem levantada? Ou a do direito de informar e ser informado
de maneira cabal, verdadeira e não manipulatória, de aceder à Cultura sem que
os cínicos de sempre ponham imediatamente, ao ouvirem tal palavra, o velho ar
sofisticado de risota ou de fábula, como os canalhas mediáticos usam fazer
quando alguém cai na asneira, ou na ingenuidade, de proferir a palavra honra?
Moderemos um pouco,
digamos, a nossa prosa ainda que nos excite alguma indignação. O assunto seria
de facto cómico se não fosse trágico. Ou antes: triste e equívoco. O problema é
que temos, talvez, a alma demasiado ardente, demasiado indagadora,
provavelmente mal adestrada para negócios escuros. Perdidos entre esperanças e
amores mortos - um deles a realidade, que já está mais que apodrecida neste
país - desejamos como que num desespero a alegria, a verdade dos tempos
recompostos, a beleza. Como aquele jovem e aquela senhorita dos romances. Se
calhar o problema é que de há muito o jogo, le grand jeu, não é mais que
uma imagem esfumada, um retrato desaparecido, passos que se afastam na noite
dura e adversa. A crítica? Sim, sim, em geral uma excelente pendura...
No que me diz parte,
estou de alma branca: tenho tido razoáveis críticas, o que se chamam “boas
críticas” se não formos maliciosos, mal formados ou simplesmente difíceis de
contentar. Ou seja: na maior parte dos casos um bocadinho de açafrão, um
cheirinho de pimentão, um trago da “rija”. Resumindo: coisas que fundamentam
umas horas de prazer gastronómico. Não tenho pois de que me queixar. O meu
relativo desapego, a minha críptica olhadela é inteiramente motivada por razões
de mínima decência.
Vogamos em pleno oceano
deserto. O da poesia, o da escrita. As provisões começam a escassear, ao longe
no vasto mar não se distingue a brancura de uma vela, a nossa escuna
desapareceu e só dispomos deste pequeno bote. Nem se divisa o rasto de um
corsário de bons fígados, estamos entregues a nós mesmos. E no entanto...
E no entanto, de súbito,
como vinda dum sonho, aparece uma linha de costa. Coragem, um esforço mais,
chegámos a terra firme. Eis-nos já na orla do bosque.
E então começam as
realidades inquestionáveis a deixar ver o seu perfil difuso, algo começa a
fermentar e sente-se que se juntaram sujeito e predicado em estranhos
conciliábulos, em frases de esquisitos recortes. Talvez não seja ainda o “que
horror !” de Margarita no livro de Bulgakov, mas é já decerto o “uns belos
trastes”, quiçá algo injusto, de Péret. Porque é difícil divisar-lhe nos
horizontes, a isso da crítica cá da nação, o sul e o norte, a matéria provável
e desejável de que seriam feitos os mais belos sonhos de uma realidade não
poluída.
A evidência, como se
compreende, consiste nisto: a crítica é, como dantes se dizia da tropa, o
espelho do país. E quase tudo daí decorre. E daí tudo parte: os críticos
altissonantes e vazios, mas palavrosos e espertalhões, iguais aos políticos e
aos filhos-de-algo vazios e altissonantes que nos arrasam a paciência com as
suas mentirolas e o seu arrazoado de vendedores de banha-da-cobra.. Os que são
competentes e modestos, como certos homens públicos sofredores e esforçados,
membros duma raça em vias de extinção na coisa quotidiana.
Há a crítica que se lê
nos jornais. Muitas vezes simples aparelho de aferição, mais ou menos galhardo
ou gaiteiro mas que podia ser - e nos melhores casos é - algo de suscitador, de
exaltante, de nobre e de digno que não envergonha quem a lê e quem a escreve.
Mas, em grande parte, trata-se de pequeninas traves duma casa onde já se
instalou o incêndio, cocabichices sobranceiras de pequenos empafiados,
ignorantes e patifórios nos casos limites. Em suma, pedacinhos não inermes de
alguma arrogância ou de seguro fingimento. A sensação que se tem,
frequentemente, é a de que se trata duma encenação fraudulenta, duma espécie de
jogatana para capangas dum milieu de bairro de má fama revestido de
ouropéis de pacotilha.
No entanto é amorável
conseguirmos distinguir nesse lume uma, ainda que transitória, iluminação. E
por vezes vê-se mesmo, distingue-se por detrás de algum constrangimento (certas
chefias têm um poder discricionário), traçado em dez ou vinte linhas, o
percurso justo e adequado do que uma obra é, do que representa. Aqui e ali
descortinam-se saberes e honestidades, o apego a uma real descriptação duma
caminhada, a adesão fremente a um futuro verdadeiro e certo. Mas para estas
pepitas, quanta ganga excrementícia, quantos ademanes espúrios e quantas
arlequinadas que nos fazem enrubescer. E já não falo da pura ignorância, da
pura desvergonha, da pura falta de senso. Da pura – não tenhamos medo das
palavras – pesporrência e da simples e boa maldade.
Já que mo perguntam, o
que é um crítico, ou antes: o que devia ser? Tenho para mim que um ente que
acredite mesmo, co’a figura inteira, na sua actividade de guia bem informado,
um ente de boa-fé realmente empenhado em saber e em dar a saber aos outros o
que há por ali - por aquela poesia, aquela música, aquela pintura, aquela prosa
- que constitua tesouro, fruto e mistério encantador. Assim como uma espécie de
missão tranquila e honesta? E porque não? Nisto não cabe nenhuma espécie de
moralismo e sim de uma ética. Acaso o cinismo espertalhaço e lusitano já
retirou do nosso vocabulário (dizem-me do lado que talvez sim) palavras como
decência, saber, imaginação e outras mais que não recordo ou simulo não
recordar – porque têm a ver com a honra de se existir, de se viver acima da
lama, de se andar de rosto erguido entre réprobos ou malandrins?
Críticos por dever de
ofício? Sim, se tiverem o fulgor de um Sainte-Beuve, de um Silone ou dum Claude
Roy. Mas triste mester, vergonhosa tarefa a de acatitar eventuais jogos de
editoras, de grupos de pressão, de castas sedimentadas num país de tartufos.
Valer-lhes-á a pena semelhante trabalho?
E há também a crítica
encorpada em livros, em cartapácios. E que é um gosto ler quando severa e argumentada,
feita por homens de uma só cara. E há alguns que a praticam, parece que com um
impulso vindo das tripas e das meninges. Mesmo que, aqui e ali, pontapeado e
ferido pelo mal de vivre da sociedade portuguesa, que é uma coisa
repelente e sinistra, tenaz como aquelas sujeiras que se nos colam aos
fundilhos.
Poucos são os exemplos,
muitos os fados, imensos os desvigamentos que os rodeiam. É assim de estranhar
que alguns próceres entreguem os pontos e se rendam à mundanidade trombeteada
por altifalantes de potente recorte? É que não pode ser por estupidez, pela
santa estupidez que nos fulmina. Ninguém pode ser tão tolo assim. Sigamos, como
dizia o “Garganta Funda” da película de Oliver Stone, “a pista da massinha e
deixemo-nos de filosofias...”. Aí se encontrarão muitas descriptações
tendenciais.
Por outro lado, esse
encordoamento, essas “calosidades morais” a que Fitzgerald aludia, serão
devidas a um tom hirto de escola ou de vezo universitário? De novo, do lado, me
dizem que talvez sim, mas daí não viria mal ao mundo se os exemplos fossem
entusiasmantes e consistentes. Mas em geral são taciturnos e duram pouco mais
que a hora clássica das rosas do lírico francês. Quem pode, por exemplo, ler
hoje as obras pretéritas de um conhecido figurão mediático sem um riso de
escárnio, essas obras cobertas de citações, de espertezas saloias, de frases
esgalhadas apenas para abater o presumível adversário? Para colocar no pequeno
Olimpo deste triste parque dormitando à beira-mar determinados vates que não
podemos, apesar de com carradas de razão, apelidar de poetinhas – que é o que
eles são – sem ficarmos passíveis de cadafalso?
No fundo, a nossa voz –
se a pudéssemos soltar – seria não mais que a voz pobre contra as vozes que sem
cessar rolam nomes pelas quebradas, pelos largos e praças, pelas tabernas do
reino onde se fazem reputações. Porque o penoso é também isto: a crítica servir
para fazer reputações...
Vejo na crítica - quero
eu dizer, gostaria de ver na crítica - uma ajuda real, inteligente e
despreconceituosa para entrarmos melhor nos universos propostos pelos autores,
sem facciosismos nem atitudes de baixa política. Para jogarmos a dois, digamos,
a aventura do conhecimento e, mais tarde, das linhas de sombra da sabedoria
possível. Para compulsarmos, talvez, numa casa solitária, ante o espelho onde o
Eterno parece que irá aparecer um dia, o nosso próprio rosto, a nossa própria
figura. Uma luz ardente que nos devastasse o rosto com súbitos clarões, para
que pudéssemos um dia surgir com a verdadeira figura a que o nosso ter vivido,
o nosso ir vivendo com a escrita nos concederia direito.
E,
afinal, o que visam oferecer-nos na melhor das hipóteses é apenas um lugar numa
espécie de campeonato de competências...
Gostaria de dizer, a
finalizar, que vivo - por decisão do destino - afastado dos grandes meios
lusitanos, que aliás quase nunca visito. Habito lugares entre as serras
alto-alentejanas e os desertos do sul de Espanha. Aí tenho as minhas casas, que
são casas de dentro e de fora. Falo a partir do que me chega em ondas, em
revoadas trazidas pela voz de um amigo, por uma que outra revista oferecida ou
por vagos periódicos, uma vez que quase só leio jornais espanhóis. Creio por
isso que não conheço exaustivamente, in loco, os exactos meandros do
assunto que busquei abordar. O meu trabalho profissional, específico,
permite-me ir vivendo magnificamente isolado. Não vejo a chamada televisão, que
detesto, embora veja inúmeros filmes a partir dos programas por cabo. Não
frequento a sociedade, que aliás não desprezo nem odeio, com os seus ritmos
calhordas e de uma videirice a toda a prova – os meus amigos são os minerais,
os vegetais e os animais a que, com os familiares de sangue ou de ritmo vital,
estou ligado e que me sustentam. O que intuo, entretanto, para além do que vou
sabendo intermitentemente, não é contudo de molde a tranquilizar-me. E isto
porque detesto a falsidade – nomeadamente a de um certo universo da crítica que
tenho por aproximativa ou pesporrente nos seus considerandos pouco
desembaraçados.
Aqui há dias, num
periódico lido na casa de um familiar, topei com a prosa de um fulano que dizia
serem “inanidades” os belos poemas de José Luís Puerto (que não conheço), dados
a lume na “Apeadeiro”. Comprovei ser este o estilo fuliginoso usado em certos meios
críticos. Que defesa haverá para uma opinião de tal jaez? O vómito urbano
desculpará ou explicará coisas assim?
No cartão onde
cortêsmente me convidavam a opinar, deram-me – como a todos – espaço até às
trinta páginas. Nunca poderia lá chegar. Tal como Marie Noel não sou uma árvore
nem sequer, talvez, uma planta útil. Estou sim ao lado da urze, do heléboro, do
serpão. Intelectualmente, não consigo viver em bosques tranquilos.
E, apesar de tudo, para
minha alegria e inquietação simultâneas o sol continua a brilhar sobre todas as
coisas - até sobre imundícies que alguns propagam.
***
Nicolau
Saião (Monforte do Alentejo, Portalegre, 1949).
Participou em mostras de Arte Postal em
países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e
Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como
Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada,
Tiblissi, Sevilha etc.
Em 1990 a Associação Portuguesa de
Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro Os objectos inquietantes (1992). Autor ainda de Assembleia geral (1990), Passagem de nível (1992), Flauta de Pan (1998), Os olhares perdidos (2001), O desejo dança na poeira do tempo
(2008), Olhares perdidos (2007), O armário de Midas (2008), As vozes ausentes (2011), Escrita e o seu contrário (a sair).
Prefaciou os livros Mansões abandonadas, de José do Carmo
Francisco, Fora de portas, de Carlos
Garcia de Castro, Estravagários, de
Nuno Rebocho e Chão de Papel, de
Maria Estela Guedes.
Fez para a Black Sun Editores a
primeira tradução mundial integral de Os
fungos de Yuggoth, de H. P. Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e
ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana, Bichos (2005).
Organizou, coordenou e prefaciou a
antologia internacional Poetas na
surrealidade em Estremoz (2007) e co-organizou/prefaciou Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril.
Com Mário Cesariny e Carlos Martins,
colaborou na efectuação da exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e,
com João Garção, levou a efeito a mostra de mail art “O futebol” (1995). Concebeu, realizou e apresentou o programa
radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões). O cantor
espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum Canciones
lusitanas.
Tem colaborado em espaços culturais de
vários países.
Em 1992 o município da sua terra natal
atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre
comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a
medalha de Mérito Municipal.
Contacto:
nicolau49@yahoo.com.
Nenhum comentário:
Postar um comentário