quarta-feira, 23 de março de 2016

MARIA ESTELA GUEDES | Nicolau Saião, escritor e pintor


Ser convidado de Francisco Garção, nome civil de Nicolau Saião, em Arronches, é um privilégio, pela beleza da vila, da sua Casa da Muralha, de personalidade alentejana, certamente pela simpatia e hospitalidade da família, mas muito especialmente por se tratar de uma casa-museu. Já tive oportunidade de publicar no TriploV uma reportagem fotográfica da arte exposta, de modos vários, desde os quadros suspensos convencionalmente nas paredes, aos grandes painéis de azulejaria.
A visita à Casa da Muralha proporciona excelente conhecimento da obra de pintura de Nicolau Saião, de um ponto de vista geral, e também nos fornece alguma informação biográfica útil, quanto às suas preferências intelectuais. Como escritor, e poeta acima de outras letras, Francisco Garção não só é um devorador de livros como um bibliófilo. Na altura em que visitei a Casa da Muralha, o sótão era o depósito para formação da futura livraria. O que mais saltava à vista, por se tratar de coleções, eram obras sobre cinema, romances policiais, de mistério, e outra literatura cujos autores Umberto Eco levou para a Academia debaixo da etiqueta "Apocalípticos". Apocalípticos e Integrados foi a obra que permitiu que nas universidades passassem a estudar-se as também chamadas literaturas e artes marginais. Sobre a 7ª das artes, não no sótão mas na casa de Portalegre, foi-me mostrada a colecção de DVDs de filmes. Na noite passada em Arronches, deliciei-me assim a ver o Nostalgia de Andrei Tarkovski.
 Voltando ao sótão da Casa da Muralha, encontramos nele ainda os integrados, a literatura clássica e moderna, assisada e turbulenta. Turbulenta é a que vem das vanguardas do princípio do século XX, com Orpheu e Dadá, futurismo e cubismo, e atingindo-nos a todos depois no redemoinho surrealista. Foi nesta turbulência que se desenvolveram artes híbridas, em resultado da fusão de pintura e literatura. Aliás, precursor de tanto -ismo da modernidade, o mais remoto pintor que recordo a fundir letras e pintura, escrevendo nos quadros, é Amadeo de Souza Cardoso.
 Os artistas dimensionam-se em totalidades wagnerianas, haja em vista Almada Negreiros, que escreveu, dançou, cantou, declamou, desenhou e pintou a manta. É neste mundo de fusões e agitação cultural que incluo Nicolau Saião. Ele não pode ser considerado um pintor, sob pena de falseamento grave da sua figura de criador, nem só um escritor, pela mesma razão. Temos de o considerar um artista para darmos conta da sua totalidade. Um artista multifacetado e um militante cultural, de forte atuação no tecido político e social do país.
O artista exprime-se ora como pintor ora como escritor, por vezes faz acompanhar os textos por ilustrações, mas o aspeto que me interessa salientar e sobre o qual vou deter-me é o do pintor-poeta, o artista que escreve diretamente sobre o quadro.
 Primeira nota sobre a escrita na pintura é a circunstância de se apresentar como manuscrito, como caligrafia. As letras têm beleza própria, aliás só isso justifica que exista tanta variedade de letterings à nossa escolha, nos programas de computador e nas tipografias. Foi a beleza gritante das palavras impressas que levou Mário de Sá-Carneiro a integrar anúncios em «Manucure», e a cantar a beleza dos tipos. No caso de Nicolau Saião, não se trata de carateres tipográficos, sim de cali+grafia - bela grafia. O quadro pode incluir uma história, um poema, um comentário crítico, uma anedota sobre a situação política, e pode ainda acrescentar a essa literatura a contida nas legendas. As legendas assumem formas várias e ora são internas ora externas às obras.
 Volto a socorrer-me de Umberto Eco para melhor compreendermos o apocalíptico criador que é Nicolau Saião. Quando ele pinta, mais do que quando escreve, e sobretudo quando pinta e escreve em simultâneo, fica muito próximo das artes típicas da cultura de massa, como os graffiti e a banda desenhada. Sem esquecermos a sua costela erudita, pois outro tipo de aliança entre imagem e palavra pode aparecer também, como o frontispício ornamental de livro e a iluminura. Nicolau Saião não pinta só com palavras e frases, ele pinta livros, os livros são tema da sua pintura, quer como textos manuscritos, quer como formas geométricas que desaguam numa técnica recorrente, a da história em quadradinhos. O «Livro de Horas de Nicolau Saião» é um exemplo magnífico desta arte em que a imagem ilumina o texto - ou vice-versa. São casos de irrupção da cultura clássica no seio das artes mais modernas.
Outro aspecto característico da obra de Nicolau Saião é a criação de personagens, umas vezes integradas na pintura, outras vezes exteriores, funcionando como pessoas. Não se trata de heterónimos, sim de figuras borgianas, no sentido em que Borges inventou autores, livros e bibliografias, e figuras do espectro de Umberto Eco, para voltarmos ao escritor italiano. A epígrafe deste artigo não sai diretamente da pena de Umberto Eco, sim da de Temesvar, uma sua personagem de intelectual. No TriploV, encontra-se uma já bem conhecida personagem de Nicolau Saião, o doutor Jagodes, dotada de retrato pictórico e verbal. O seu discurso é crítico relativamente à situação política e social portuguesa. Estas figuras, distintas dos pseudónimos e dos heterónimos, tendem a tornar-se auto-suficientes, e nessa medida podem ludibriar os leitores, que as acreditam reais. Não parece que tal extremo aconteça com o doutor Jagodes.
 Outras personagens, próximas das figuras das histórias de quadrinhos, aparecem na literatura desenhada do autor. Aliás, ao escrever «literatura desenhada», recordo que Nicolau Saião dá o título de «Poemas desenhados» a uma série de textos dedicados e referidos aos pintores Maité Bayon, Giorgio Morandi, Carbajal e Hundertwasser. Existe nele o duplo entendimento de que a pintura é poesia desenhada e que o poema é um objeto visual. Este duplo entendimento suporta toda a sua obra, em especial a que se expõe como artes plásticas, tornando muito evidente nela essa técnica tão recorrente, que é a de dar o mundo a ver em quadradinhos.
É preciso entretanto não esquecer que em Nicolau Saião se manifestam duas faces contraditórias: à banda desenhada, e a todas as técnicas e formas próprias da cultura de massa a que o artista deita mão, não corresponde a ideologia própria, que é, evidentemente, a de massificar, ou a de mover à reprodução de modelos. A intenção e o discurso veiculados por esta arte, em Nicolau Saião, pertencem à esfera das artes e culturas eruditas, que justamente reprovam a massificação e forçam o receptor a tomar consciência de si e do mundo, e portanto a assumir posição crítica face aos acontecimentos. Ao conservadorismo da cultura de massa opõe-se o espírito criador e renovador da arte.
Ridendo castigat mores, eis a máxima com que se pode encerrar esta nota sobre um artista que tem sentido na pele, ao longo dos anos, a resposta do sistema à turbulência da sua sátira.



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Nicolau Saião (Monforte do Alentejo, Portalegre, 1949).
Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha etc.  
Em 1990 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro Os objectos inquietantes (1992). Autor ainda de Assembleia geral (1990), Passagem de nível (1992), Flauta de Pan (1998), Os olhares perdidos (2001), O desejo dança na poeira do tempo (2008), Olhares perdidos (2007), O armário de Midas (2008), As vozes ausentes (2011), Escrita e o seu contrário (a sair). 
Prefaciou os livros Mansões abandonadas, de José do Carmo Francisco, Fora de portas, de Carlos Garcia de Castro, Estravagários, de Nuno Rebocho e Chão de Papel, de Maria Estela Guedes. 
Fez para a Black Sun Editores a primeira tradução mundial integral de Os fungos de Yuggoth, de H. P. Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana, Bichos (2005).
Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional Poetas na surrealidade em Estremoz (2007) e co-organizou/prefaciou Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril
Com Mário Cesariny e Carlos Martins, colaborou na efectuação da exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, levou a efeito a mostra de mail art “O futebol” (1995).  Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões). O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum Canciones lusitanas
Tem colaborado em espaços culturais de vários países.
Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de Mérito Municipal.






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