A quem servem as
evocações? Em certas alturas, a nós mesmos. Talvez a um que outro, recheado de
minutos de dúvida sobre a face da sociedade. A gentes projectadas num futuro
incerto, possivelmente, viajando entre recordações e utopias. Entre os rochedos
da memória provável.
A certas horas, rodamos
em torno das recordações como um lobo em volta da presa. É a nossa própria
carne que, como num espelho, se faz significado, matéria afastada que pouco a
pouco se ilumina. Se para se escrever uma página, como referia Rilke no seu “Malte Laurids Brigge”, é preciso a
frequentação de muitas ruas, muitos rostos, funerais e nascimentos,
deambulações ao acaso e a cor quotidiana da vida e da morte nos olhos de
nasciturnos, grávidas, simples seres solares e lunares que subitamente ficam
presos à rota que vai do princípio ao fim – é preciso igualmente a decantação
da memória para que ao termo, no cadinho que são os nossos olhos brilhando na
obscuridade, num quarto vazio, a pouco e pouco as sementes auríferas se separem
das escórias e palpitem, ainda que nuas e frágeis, ainda que em solidão
singularmente solene. Crê-se que o futuro nos poderá ver como num espelho
iluminado, devolvidos à nossa verdadeira imagem; mas a matéria do futuro é
incerta, vaga, na sua superfície criam-se como que buracos negros que não é
possível preencher: ainda estão e estarão por muitos anos, de pé, as
aparelhagens pseudo-sociais, constrangedoras e inúteis, para
desequilibradamente acantonarem neste local, naqueloutro, em outro ainda, as
verdadeiras faces dos que, na sua passagem pela Vida, criaram mundos de
liberdade que a “realidade societária”, informe e espúria, não quer consentir.
D’Assumpção foi sempre
para mim uma espécie de presença ausente. Habitante de planetas longínquos e
misteriosos ou então de lugares de ao pé da porta que contudo, como na estória
de Jean Ray ou no “Erich Zann” de Lovecraft, por mais que se tente não se
conseguem reencontrar, ele decerto era alheio ao movimento de muitos outros
seres que eventualmente se cruzavam com ele ou com a sua aparência de
movimento. Digo bem: porque frequentemente a nossa deslocação real, ao longo do
tempo que nos foi dado viver, se faz virtualmente, havendo pontos – como nas
fábulas – onde verdadeiramente a nossa figura se fixa, permanece nos olhos dos
que nos amaram ou algo esperaram de nós sem que disso tivessem consciência,
envoltos numa razão que ultrapassa as horas e os quilômetros. Por exemplo e ao
acaso: para Cézanne – Aix-en-Provence; para Mário de Sá-Carneiro – Paris; para
H. P. Lovecraft – Providence; para D’Assumpção – Portalegre – Paris – Lisboa (e
a inversa também é verdadeira).
No fim da infância ou no
princípio da adolescência (tocam-se, sendo todavia, inapelavelmente, mundos
diferentes) em certa tarde o meu pai chegou a casa e, no meio da conversa,
contou-nos que nesse dia fora com o mecânico (era na altura empregado no stand
de meu padrinho João Vinte-e-Um, que negociava automóveis, motas, camiões)
buscar uma motocicleta a casa de um cliente; de acordo com o que relatou, ao
que lembro, fora o próprio cliente que a entregara – por não poder pagar as
letras. “É o filho do Sr. Rosiel, coitado…”
disse meu pai sinceramente constrangido. “Aquele
que pinta”, referiu ainda a uma pergunta de minha Mãe. E pronto, foi tudo,
conversa de acaso perdida depois entre o resto dos minutos.
Dias depois, entrei no
“Facha”; o stand do meu padrinho ficava mesmo em frente, por baixo da “Cegrel”
e em direcção ao “Rossio” e era o Café que me ficava mais à mão para os
reconfortantes amendoins, rebuçados escapados à catástrofe que costumavam ser
as finanças adolescentes… Lembro-me que numa mesa perto da porta um indivíduo
de fato azulado, um pouco inclinado sobre o tampo, se entregava a qualquer
actividade pouco usual. Quando tornei a passar o sujeito acendia um cigarro; o
busto, erecto, deixava entrever uma folha de papel. Soprou o fumo, tirando com
a mão esquerda um pedacito de tabaco que se colara nos lábios; nessa altura, o
empregado perguntou: “Sr. D’Assumpção,
quer em copo ou em chávena?” Referia-se à “bica”; naquela altura havia
pessoas que preferiam bebê-la em recipientes de vidro e não na habitual chávena
branca, de loiça; hábito que se radicava na aprendizagem de que (segundo
constava) os micróbios frequentavam menos os primeiros…
Na rua, pensei: “Este é que é o tal da mota…”. Mas o que
me ficara nos olhos, pelo traçado inusual, fôra o desenho. Onde se encontrará
hoje, depois de por um momento se ter cruzado com o garoto que eu era então?
Quando cheguei ao
“Stand” – (naqueles anos, como se sabe, tudo tem um halo de mistério, aliás a
verdadeira face do mundo; depois perde-se pouco a pouco a capacidade de nos
maravilharmos) – na ocasião propícia disse a meu Pai que vira o sujeito da mota
no “Facha”, a desenhar. Ele retorquiu que o filho do Sr. Rosiel tinha estado lá
fora, parece que em França, fazia quadros, mas estivera doente ou coisa que o
valha. “Tem estado agora cá, não sei se
para trabalhar com o pai…”, concluiu.
O Sr. Rosiel conhecia eu
bem (viria a conhecê-lo bastante melhor, mantendo mesmo com ele largas conversas
iniciadas no estabelecimento de electrodomésticos “Custódio Silva”, pela
noitinha, enquanto – umas vezes por outras – um que outro cívico, obedecendo a
ordens, fingia que olhava os aparelhos expostos na montra, vigiando a bem da
Nação os perigosos dois-ou-três subversivos que ali, mefistofelicamente,
trocavam opiniões sobre gente tão perigosa como Faulkner, Aquilino, Tolstoi,
Van Gogh…). Como alguns se recordarão, tinha um “atelier” de fotografia à
esquina por cima da loja “Hermínio Castro”; era ele que me plasmava em retratos
tipo passe para diversas utilizações: para tias devotadas e madrinhas
amantíssimas, com um xi-coração repenicado; para as cadernetas da Escola; para
os usos e costumes de molduras sobre as cómodas, depois excursionando por feéricos
álbuns, hoje envoltos em nostalgia, onde os primos, cunhados, avós e tios nos
contemplam de juntura com faces de amigos que já não sabemos bem quem sejam.
Certo dia, nessa loja, vi encostada à parede uma pintura onde os azuis e os
vermelhos, os rosas e os verdes-maçã criavam uma estranha sinfonia. “É do meu filho…” respondeu o Sr. Rosiel
à pergunta que timidamente lhe fizera. “Gostas?
Vê lá tu que reparaste!”. Ficara contente. Era aliás uma pessoa
extremamente atenciosa, cuja bonomia recordo por entre outras aparências de
depois, sempre com o seu cigarrinho que nervosamente chupava com todo o ímpeto
de velho fumador. De fato escuro, magro, tinha semelhanças com o filho. Mais
tarde, conheceria o outro filho – dar-me-ia um pouco também com ele – este sobre
o fornido de carnes, só tendo em comum talvez o olhar agudo. Como era
fotógrafo, encontrava-se comigo frequentemente em eventos que eu ia cobrir
jornalisticamente como redactor dum velho periódico local.
Mas voltemos a
D’Assumpção. Tanto quanto o permite o rodopiar das palavras, ora aqui ora ali.
Tempos mais tarde, entrei na época do ping-pong e do bilhar. Depois das aulas,
a dadas horas, frequentavam-se as salas da “Mocidade Portuguesa” (onde os
preços eram mais em conta), do “Central”, a sala traseira do “Facha”, o salão
do Clube de Futebol do Alentejo, da FNAT (onde de noite, às vezes, havia uns
teatros e se podia ver televisão), do “Alentejano” e do “Plátano”; quando estes
estavam ocupados ia-se também à sala do “Estrela”, na altura num primeiro andar
frente à Casa Umbelino, mas era lugar acanhado onde os tacos batiam por vezes
na parede; o “Plátano” da época era também frequentado por partidários do
dominó, da bisca lambida… Na parede, enquanto efectuávamos as carambolas, os
efeitos, um que outro pique mais desenvolto e promissor, um quadro bastante
grande servia para descansarmos o olhar vitorioso ou derrotado: o célebre
quadro de D’Assumpção que, segundo ouvi relatar, seria depois vendido pelo
proprietário a uma galeria do Porto, com bom e legítimo proveito.
Na minha recordação o
quadro aparece-me enevoado: sei que havia um horizonte, árvores, - mas o todo
da obra desapareceu-me para reinos inalcançáveis. E quantas vezes o contemplei,
umas vezes apreciando-o em miradas sucessivas, outras num relance, assoberbado
pelas excessivas carambolas do adversário! Mas o mesmo sucede com rostos,
acontecimentos e coisas que connosco se cruzam na nossa navegação através do
tempo, uma vez que as sedimentações se dão incontrolavelmente, por uma mecânica
subtil que ora nos surpreende ora nos sufoca – se sabemos conservar o nosso
coração de crianças.
Mais tarde, já adulto,
soube de D’Assumpção de maneira diferente: algumas vezes falei dele com
Herberto Hélder no “Monte Carlo”, nos meus tempos de tertúlia lisboeta logo ao
voltar da Guiné, depois de com outro antigo companheiro ter entrado em contacto
com a gente do grupo de revista “Grifo”; algumas vezes escrevi sobre ele, sobre
a sua pintura; certo dia, como que por acaso, soube da sua morte – sobre a qual
não me vou debruçar; tomei a iniciativa de expor quadros dele, integrados numa
colectiva em que além de obras diversas de autores de Portalegre havia também
serigrafias de Mário de Oliveira e óleos de Cesariny (a “Geração Sibilina”, que
pertence hoje ao acervo do Museu local, por minha decisão, pois encaminhei para
ali os quadros que o Mário oferecera a Portalegre, ficando ao meu alvedrio a
entidade que os devia receber – secção cultural do Clube de Futebol do
Alentejo? Museu Municipal?
Optei por este último,
por me parecer melhor apetrechado para os expôr. E assim foi, com efeito: três
anos depois já lá os tinha nas paredes, assim como os outros… Foi a última
notícia que ao meu emprego dessa época me veio dar o Manuel Mourato de boa
memória).
Aqueles quadros, hoje
patentes no Museu, estão lá por uma razão: fotografados por Joaquim Ceia
Trindade (A.J.Silverberg) por minha solicitação, as fotos foram remetidas ao
marchand João Pinto de Figueiredo, que por intermédio de Mário Cesariny eu
prevenira de que existiam; embora ele não estivesse, na altura, interessado na
sua aquisição, sabia do eventual interesse de um apreciador do Porto;
perguntou-me por telefone se os quadros estavam assinados. Eu não vira
assinatura (saberia depois, pelo seu cunhado Sr. Valente, também da minha
lidação, que o estavam nas costas, que as molduras interditavam) e assim lho
disse, embora de acordo com o mesmo Valente um perito, que os analisara,
atestasse que eram obras de D’Assumpção sem qualquer dúvida. Devido a isso – o
que é compreensível nestes negócios – Pinto de Figueiredo declinou mais
interesse. E, assim, foram posteriormente adquiridos pelo Museu local por um
preço bastante razoável (preço de conterrâneo); em 1981, na exposição “Três
Poetas do Surrealismo – A. M. Lisboa, M. H. Leiria e Pedro Oom”, era um desenho
aguarelado de D’Assumpção que constituía a face do convite endereçado pela
Biblioteca Nacional, entidade que a patenteava; e na mostra de 1984
“Surrealismo e Arte Fantástica”, organizada por Cesariny e C.Martins com a
minha colaboração (infelizmente de longe e vendo com certa angústia o quanto
ficaram assoberbados por tarefas inúmeras) no Teatro Ibérico e na Sociedade
Nacional de Belas Artes, outro desenho de D’Assumpção aparecia no
catálogo-livro em jeito de homenagem, sendo igualmente a partir de um óleo seu
que o cartaz e o desdobrável foram iluminados.
Entre uma e outra idade
houve contactos, reflexões, momentos e olhares que a escrita memorialista não
atinge: pertencem ao céu e ao inferno do poeta, daquele que evoca. São imarcescíveis
e impossíveis de fixar. A sua geografia é interior, pertence a lugares
inabordáveis.
Mais terra a terra,
saudavelmente perversa e envolta em roupagens quotidianas, aqui fica uma
pergunta com que termino estas breves e leves, difusas recordações: como é
possível que depois de tanto tempo após o seu falecimento, tendo o Pintor
atingido tal notoriedade pública (ele que sempre dispôs da estatura que lhe era
própria, mas que foi solapada num gesto em que a terra portalegrense, ainda
controlada por medíocres e onzeneiros sem perfil, segue sendo fértil) não se
tenha ainda efectuado em Portalegre uma retrospectiva ampla, séria e
fundamentada de D’Assumpção? Como é possível que os seus conterrâneos continuem
afastados da contemplação conveniente da Obra de um dos mais originais e
suscitadores pintores modernos lusitanos?
Aqui fica, em terreno
vago, a pergunta. E o seu eco gostaria que se projectasse, justa e
acusadoramente, além dos rochedos que o proporcionam, rochedos que não serão
para sempre as fragas da Serra da Penha em que alguns querem encerrar as
consciências livres.
“O
olhar exerce-se nesse intervalo que vai da coisa à sua representação, no
interstício imaginário que julgamos conhecer só porque temos os olhos que deus
nos deu e os utilizamos para distinguir entre as coisas na sombra ou na
claridade e a sua permanência na memória, no que todavia continua velado,
obscuro, indistinguível. Ou pode continuar, caso não haja reconhecimento, no
que é contínuo e diferente a cada minuto.”, assim o disse eu a dado passo
num texto lido durante a inauguração da Mostra.
Ou, como refere Floriano Martins ao mesmo
propósito, “(...)O simulacro está ligado aos vestígios fechados, não
revelados, da existência. Isto nos leva ao palco, ao tablado agónico das
simulações, aos enredos míticos e místicos que se esmeram em conferir
realidade, à fábula. Lugar sagrado onde(...)a criação artística como um todo
busca algo mais substancioso do que simplesmente derrotar o intelecto. Mete-se
com o “finíssimo vazio” onde vai explorar suas possibilidades de ser. Absorve
todos os engates e desgastes”.
JG sabe que se a pintura tal como a poesia é
comunicação, especial ou especializada, é também uma proposta de substituir o
que se pensa haver pela matéria que se tem, ainda que de forma peculiar. Nada é
igual a nada, que o mesmo é dizer: tudo é igual a tudo – mas num outro plano
onde já se transfiguraram emoções, raciocínios e pensamentos mediante os
sinais, as linhas e as representações plasmadas numa tela ou numa folha de
papel. “Pintar é viajar” dizia apropriadamente Picasso. E em seguida:
“Eu não procuro, encontro!”. Embora, é claro, esse encontro seja propiciado
pelos minutos, dispersos pelos meses e pelos anos, que a vida contém.
Daí que “Foi quase
sem sentir, ao longo do tempo, que pintei e escrevi estes trabalhos, em parte
já esquecidos. Muitos deles fi-los e deixei-os na casa que então
habitava, assim como muitos poemas escritos em folhas diversas. Reencontrei-os
há um par de dias, já emoldurados uns, passados a limpo carinhosamente, outros.
Uns lembrei-os logo, outros eram como filhos que tivesse perdido num lugar
inabordável. E durante esse par de dias que mediou entre a minha chegada à casa
da infância e adolescência e o acto de os montar e colocar nesta sala, olhei-os
intensamente para que certas memórias revivessem”.
Olhares e visões... Como se as cores, os
ritmos, os sinais e as letras cobrassem uma vida específica, reentrassem na
memória, nesse espaço que já não é apenas lembrança mas a recomposição de algo
que se reconquistou na sua materialidade eminentemente espiritual, como
diziam alguns desses que o autor pôde um dia contemplar anos e anos atrás...
3. NUNO REBOCHO – UM CONVIVENTE
GOLIARDO MODERNO
Muitos são os benefícios de viajar: a frescura que
nos traz ao espírito, ver e ouvir coisas maravilhosas, a delícia de contemplar
novos lugares, o encontro com novos amigos e o aprender finas maneiras
Muslih-din-Saadi, poeta persa
1. Dizia Samuel
Clemens (Mark Twain), também ele viajante e cronista devido a decisão própria
e, durante algum tempo, viajeiro por profissão, que viajar era passear um sonho.
E acrescentou que a
escrita que daí resulta passa a ser o sonho transfigurado, com o seu território
de realidades e de quimeras, de minutos que se abriram para novas visões e
novos pensamentos e doravante perduram como relatos que nos ensinam e nos
maravilham.
Andar pelo mundo e pela
vida e escrever sobre isso – pessoas, coisas, sucessos da mais diversa ordem –
não é fácil tarefa, é preciso manter simultaneamente a inocência (temperada por
alguma malícia), a perspicácia e um enorme sangue-frio, pois sem aviso as
recordações apoderam-se de nós e como que nos obrigam a passar para outra
realidade, em geral extremamente sedutora mas que nos enfeitiça com
inexactidões involuntárias, filhas do nosso mistério pessoal. Por isso Benjamin
Disraeli dizia avisadamente que “vi mais
coisas do que as que recordo e recordo mais coisas do que as que vi”.
Todavia, a grande solução consiste sempre em entrarmos generosamente na viagem, sem temermos a multiplicação de
experiências, até mesmo de acasos, pois sabe-se que no final a escrita e seus
interiores meandros – se dispomos da adequada dose de sensatez criadora –
acabam por depurar, resolver e transfigurar aquilo que se viu, se sentiu e se
viveu, como que por uma brusca mutação que vem não se sabe muito bem donde.
E depois há a memória que se convoca nos grandes
momentos de fecunda solidão, de fulgurante isolamento criativo em que somos
simultaneamente objecto e sujeito porque é por nós que passa a organização do
que significam realmente as
lembranças, do que foram efectivamente os perfis das gentes que nos rodearam,
os tempos reencontrados em que
revivemos uma conversa, um ritmo vital, um passeio, em que de repente
ressuscitam perplexidades e encantamentos, fragmentos de tempo em que a
nostalgia nos visitou sem que nos pudéssemos esquivar e que logo a seguir
assumimos peremptoriamente como um dos nossos maiores bens.
A isto, creio, chama-se compreender. Porque por detrás de toda a
alegria difusa transportada numa evocação, ou em todo o pequeno tremor que nos
assalta ao termos a sensação de que qualquer
coisa nos abandonou, há sempre um rosto ou a ideia de que por ali paira
algo de humanizado e aonde se chegou através de um olhar mais exacto, mais
treinado pelos mundos onde se esteve por destino e pelos universos que as
deambulações nos propiciaram.
2. Já se sabe que a
arte da crónica não é nem nunca foi uma arte menor ou muito menos mero
preâmbulo para qualquer coisa de maior envergadura. Trata-se, com efeito, de um
corpo inteiro que se joga ali mesmo,
nesse continente de luzes e sombras onde crescem deuses e demónios inteiramente
nascidos da realidade que se forja com os factos arrolados e sua representação
palpável. Ou seja, uma poesia muito própria e sem sujeições a outras escritas
aparentemente de maior porte no arsenal do autor.
Cronista e ser
convivente, o viajeiro de “Estravagários” – estas crónicas belamente poéticas
sobre o Alentejo real que os sonhos perduráveis do autor encenaram – tem
parentes perfeitamente reconhecíveis, ainda que seja seu e muito próprio o
estilo que arrola entre o alinhavo
jornalístico e o desalinhavo livresco. São os amantes dos prazeres do
espírito – e dos outros que gostosamente passam pelo corpo e a que alguns, com
certa dose de leviandade, apelidam de transitórios ou baixamente materiais. Em
todas as evocações de NR se sente perpassar uma clara alegria de viver, ainda
que cifrada por alguma melancolia; donde o gosto pela boa mesa, por exemplo,
não se ausenta nunca – e repare-se que aquela expressão vai no sentido lato. O espírito do lugar, que é o das pessoas
que o habitam, é bem palpável com todo o seu manancial de coisas essenciais que
vivem intensamente se tivermos olhos para cheirar, ouvidos para ver e alma para
saborear. Nas crónicas de Nuno Rebocho, colega evidente de Goldoni, Hazlitt,
Cela ou Saroyan, sente-se que as pessoas que recorda e os acontecimentos a que
dá relevo não estão ali como pretextos fantasmais para umas tantas laudas
literatas, mas para habitarem o quotidiano deste seduzido sedutor. Caldeados
pelo pormenor argutamente observado, pelo trecho recortado com ironia, pela
frase incisiva e mediada quantas vezes por uma indisfarçável comoção, cobram
vida relatos donde pode extrair-se um perfume de passados finalmente
refigurados e limpos da escória que o tempo lhes fez adquirir, de coisas e de
momentos que se vão esquecendo e de outros que, embora existindo ainda na hora
que passa, irão ser pasto para esquecimentos futuros.
Com estas crónicas, onde
freme um tom pessoal e que possuem aquele sabor coloquial que a profissão do
autor certifica e esclarece, mediante a maneira
peculiar onde se desenha a sua aposta e o nosso privilégio Nuno Rebocho presta
inquestionável serviço à nossa convivencialidade humana e cultural, à nossa
memória específica de povo e ao nosso aprumo de pessoas que querem lembrar o melhor e o mais alto.
Posso imaginar, nas minhas horas, a vida
eventual e projectada deste cidadão, daquele amigo, de um outro cuja figura se
cruzou com o meu olhar por uns raros momentos. Posso supor, posso encenar,
posso-o até conferir por dentro e por fora dos tempos que nos são comuns. Tudo
isso é, já se sabe, matéria de realidade e de sonho. Melhor dizendo: do que se
certifica em cada um de nós, dado que tudo é a um tempo mutável e multiplicável
- uma vez que os mundos de quem vive e de quem recorda (efabula?) se
interpenetram mediante a escrita e a imaginação criadora. E se é verdade que,
ao fim e ao cabo, tudo vai terminar num livro (na literatura que está para além
dos minutos quotidianos), de que maneira é que se conformam esses estranhos
pedaços de universo – do universo que se vai construindo através do corpo e do
espírito que dá origem ao mítico reino das palavras vivas?
Francisco (Soares
Feitosa) sabe que “as sementes são fartas
e o vento generoso”. Viu de noite, em longas caminhadas sertanejas, “a mata, a floresta, os chãos nossos de cada
dia”. Andou pelas quebradas das serras, sob as árvores copadas onde por
vezes repousam os animais ao crepúsculo, contemplou os cavalos, o beija-flor e
a sombra que ele mesmo fazia ao caminhar na madrugada escura para uma povoação
encontrada ao raiar do dia definitivo. E por isso ele pôde colocar, num
envelope tingido pela cera das abelhas do sertão onde se ramificavam palavras
escritas (como “cacimba clara”, como
“estrelas”, como “a vaca rainha, os bodes, os capotes”),
sementes de imburana-de-cheiro “torradas
e moídas pelo próprio autor”, para assinalar esse grande ímpeto rural e
cósmico que cifra a sua poesia – essa poesia estuante de vida e de participação
que nos encanta e simultaneamente nos interroga e de repente faz surgir imagens
de ao pé da porta, como se estivéssemos
ali: “ Era de noite que chovia:/
gotas amarelavam/ à luz frouxa da lamparina de querosene,/ e as mãos cruzadas
do menino,/ frio da serra,/ quase-escuro da noite:/ naquele instante era,/ se
fundava/ a cheia da cisterna!”(…), diz-nos ele a dado passo criando de
repente um fragmento intemporal das vivências que nos são comuns nas duas
latitudes, nas latitudes todas.
No seu livro “Psi, a penúltima”, livro seminal duma
poesia que, tal como o seu autor, excursiona pelos quatro pontos cardeais e nos
empolga ao dar-nos reminiscências, memórias, esperanças verdadeiras e retratos
das cidades e dos campos que umas vezes se contemplam e outras se adivinham,
Soares Feitosa (Francisco) é bem o aedo, o nosso próximo de humanidade ao
dizer-nos impressamente: “Anda comigo,
meu parente, veremos tanto o distante mar como as coisas conhecidas e as
figuras que as habitam. Aqui te deixo a lembrança dum primo, dum avô, dum
momento imorredoiro. Eis o sol e a penumbra, eis o voo dum pássaro, o cantar
dum galo, o sinal dum verso numa página de acaso. E sobre tudo isto, junto de
tudo isto, os perfumes das campinas e os sons da vida que se evola”.
Impressamente.
Serenamente, mas com a vivacidade de quem tem em si o conhecimento do que
significa uma palavra posta e escrita em cursivo, sublinhada num livro como
numa pauta de música, aberta na manhã dos homens como um vulto caminhando
firmemente num bosque ou na rua duma cidade longínqua.
5. C. RONALD OU OS FOGOS DA NOITE
A voz dos deuses não é sempre que fala. Tal
como a voz do poeta. Mas, quando isso sucede, há fogueiras na noite que se põem
a tremeluzir. Contudo, a voz dos deuses é pouco segura, afasta-se para além de
nós, oscila, cria espaços de sombra à escala do destino dos seus senhores:
porque os deuses vão secularmente desaparecendo mas a medida dos homens é
diferente, resiste e a sua sombra é mais humilde – como a dum gato, dum
arbusto, duma oliveira. Duma pessoa, simplesmente.
Recorra-se então à voz do poeta. Ela tem fracturas, o sangue estanca-se,
a penumbra faz-se de súbito nuns olhos inquietos. Não importa, o sinal aí
permanece, se propaga e estende. Alastra. Seja num descampado ou dentro duma
casa, os sons ouvem-se, é inegável o eco despertado. Em redor da nossa cabeça
cria-se como que um espaço de brusca realidade – e é então
que as figuras e as palavras começam a aparecer: estranhas salas
repletas de mesas e reposteiros onde passam claros e sóbrios vultos de
mulheres, coisas simples aos cantos que tomam outro perfil, o som de flautas,
de violões e até de guitarras espanholas. E de repente um silencio que se
dilata mas fica ocupado por um grito reboante e claro, possivelmente feliz. O
poeta interroga-se, mas não é tudo uma interrogação? Não é tudo a dúvida de quem,
não sabendo, conhece todavia muito do que subjaz às frases? Evidentemente, é o
mistério da poesia, essa florescida necessidade que tanto parte do acaso como a
ele conduz, essa chama que o poeta acende com ramos e com papéis, com tecidos,
com substancias inomináveis, com os próprios dedos e que deixam rastos de fogo
nas paredes e, principalmente, nas páginas que se organizam em forma de livros.
C. Ronald conhece bem os diversos rostos das palavras. Assim como
conhece a face da alegria e do sofrimento, desse quotidiano que muitas vezes
nos fere e nos angustia.
Conhece as ruas e a floresta, conhece o que há dentro duma cozinha e
também dentro dum coração desconhecido, o que se esqueceu para sempre dentro
dum quarto, o que se tem e teve, vulgar e por isso mesmo absolutamente belo,
numa saleta que se recorda duma casa que amámos. Um rosto de velho ou de
criança, as mãos dum amigo que se foi. Os ruídos do mar e o vozear da freguesia
quotidiana num bar ou numa cidade que se visitou pela primeira vez.
Nos seus poemas existe sempre uma busca do que é significativo, ele
procura sempre aprofundar o conhecimento possível para que se entenda o como e
o porquê da escuridão que por vezes envolve o mundo.
A meu ver, este poeta de que tenho falado com empenho através da voz e
da escrita é possuidor de um método de renovação da visão há mais de quarenta
anos. E muitos o têm entendido.
Nos sons da sua poesia algo se prolonga e percebe-se neles a mais nobre
e serena música, como num mundo que discreto se renova e continua a ouvir
através das páginas e dos campos onde as fogueiras iluminam a noite.
Um mundo feérico, alucinante e encantado
de faunas diversas, de monstros e de meninos, de bichos que assumem a sua
condição de santos civis e quotidianos visitados pela amargura e a mais
devastadora felicidade. Coisas do mar, coisas da terra. A preto e branco e a
cores. Olhos que se viram na direcção do horizonte. Ali no Brasil. Ou seja: ali
ao pé da esquina, ao virar da página e da avenida: no teu largo, na tua rua, no
teu quintal. Dentro do Brasil e fora do Brasil – no coração duma floresta da
Europa onde se acocoram os mal-nascidos.
Entre dentes e entre
linhas. Entre deambulações. Entre o grito e o soluço. Para levar para casa como
recordação intempestiva, para levar a todo o lado como uma minúscula
assombração. Uma gargalhada louca correndo nos ares como o trilo duma flauta
numa viela onde jazem carros esventrados, sacos velhos e dejectos de um mundo
supranumerário. E também muitos lugares de serena contemplação. A tua, a minha,
a alegria dos outros, de todos os que ainda não se desvaneceram. O adeus que
não cessa, a melancolia de cidades ao alvorecer. A lua, o sol, um bocejo
sonolento no meio da madrugada.
Ao bom calor do Brasil -
aqui mesmo no Alentejo, junto ao lago dos patos no Palácio de Cristal, numa
simpática tasquinha de Borba. Em Coimbra, nas terras da Amazónia. Como se o
tempo e os seus contrastes fosse não mais que uns olhos ouvindo atentamente,
orelhas a captarem todas as cores, a boca e a mão esvoaçantes que traçam os
seus sinais sobre um cantinho do universo.
Como se tudo e ainda bem não passasse de
um desenho a tinta-da-china ou então um volteio de guache enfeitiçado.
7. HENRIK EDSTROM OU A RECONVERSÃO DO
UNIVERSO
Todo o verdadeiro pintor é de facto um
demiurgo. E, como referiu Pablo Picasso, “mais que o inspirado é aquele que
inspira”. Que inspira o desejo de uma nova visão, de uma nova formulação e, ao
mesmo tempo, fornece as faculdades interiores para que tal seja não só possível
como concretizável.
Mediante as cores e as
formas com que se erguem os sinais dos três reinos da natureza, o que este
pintor lírico e surrealista visa é transfigurar a existência em algo de
significativo e de salubre, indo para além das condicionantes sociais e
humanas. Uma vez que a pintura autêntica é uma alquimia espiritual, que
transforma e que faz permanecer na existência quotidiana os signos que a
sustentam e através dela permanecem no mundo.
Sendo um filho da Europa
do Norte, Henrik Edstrom. aprendeu bem cedo as lendas dessas terras onde os
gnomos e as fadas dos bosques vivem paredes-meias com os habitantes dos
jardins, onde os turbilhões de neve nos deixam adivinhar figuras mágicas ao
crepúsculo das povoações. Onde as cores e os traços, por seu turno, nas tardes
de sol e de bom tempo possuem uma exactidão precisa e luminosa.
Porque dá mais
facilidade de manejo, sendo mais libertador do gesto uma vez que confere mais
rapidez à execução, o pintor utiliza preferentemente o guache e a aguarela, como
nas obras (uma série de 24 pinturas encantadoras e plenas de frescura) com que
ilustrou os poemas do grande poeta húngaro Attila Joszef.
Henrik Edstrom, através
da sua paleta tão sabedora e livre como o coração duma criança, viaja pelos
mundos onde dá gosto viver, mas com o conhecimento que de tal pode ter um
animal quotidiano ou fabuloso entre os bosques e jardins dos nossos afectos
vitais.
Nele habitam o poeta e o
artista - que as cores e seus prestígios revelam como num encantamento que a
todos é, afinal, íntimo e comunicativo.
Tive o gosto de o conhecer na biblioteca
municipal, em Portalegre, onde veio há
um par de anos expôr uma surpreendente série de 46 óleos, guaches, aguarelas e
colagens. Eu cumpria ali os meus últimos dias de funcionário.
Durante duas horas, na sua voz suavizada pela
idade, mas firme e sugestiva como os versos do Kalevaala que aliás teve o
ensejo de ilustrar, falou-me de lendas da sua terra, de projectos e de maneiras
de pintar – pois este pintor-poeta é de igual modo um fabro, um hacedor no
plano das matérias, da forma concreta pela qual se exerce a arte de efectivar
uma obra que haverá de andar nos dois planos do tempo: a que se palpa com os
olhos e a que se observa com os dedos das mãos. Adicionalmente, a que – como a
ars magna, a opus primae – reside e se reconhece no plano
da alma, como nos disse Eyrinée Philalète.
Dias depois – já ele
voava de regresso a Anneberg, onde nasceu em 1937 - sem que para tal eu
houvesse feito algo de assinalável vieram trazer-me ao gabinete um embrulho
relativamente volumoso. Abri-o com expectativa. Continha dois quadros
belíssimos e, num bilhetinho, vinham os seguintes dizeres: “Para o amigo NS
intitular como achar melhor”.
Estão hoje na sala da minha casa de
Portalegre. Chamam-se, com efeito, “A
partida para a ilha” e “O príncipe colhendo a estrela” e epigrafam duas
passagens do Kalevaala.
Foi a fórmula mais adequada que encontrei
para lhe agradecer.
8. PALÁCIOS DA SILVA OU A NATUREZA
TRANSFIGURADA
Nos
quadros de Palácios esplende a transfiguração do mundo. As cores, os traços, as
manchas - as formas que projectam o seu universo interior - organizam o caos e
dão um sentido novo à perspectiva humana do quotidiano. Recriação da Natureza?
Talvez. Mas uma natureza reencontrada, finalmente próxima do Homem, ou seja:
habitável, plásmica e salubre - mesmo nos seus tempos de inquietação.
Em Palácios há drama, - a selva obscura dos filósofos e místicos da
Idade Média, mas há também a alegria forjada
por combinações coloridas em que o movimento da mão possibilita o
encontro entre raciocínio e sentimento.
Descendente directo de La Tour e de
Dubuffet, Palácios retoma de forma muito própria a interrogação nuclear que foi
cara a Gauguin: Quem somos? De onde
viemos? Para onde vamos?, o que significa que ele se apercebeu que a viagem
humana pode ser interpretada mediante a elaboração de uma escrita pictural onde
consciente e inconsciente se entrecruzam e palpitam. Não é assim estranho que
este colorista se sinta atraído simultaneamente pelo vitral e pela escultura
monocromática: no fundo, é a interrogação dos elementos contraditórios que,
frequentemente, suscitam a atenção e o interesse de parentes pictóricos como
Boccioni e Manolo Millares.
Ao mesmo tempo próximo e disperso, Palácios conservou do passado os
mitos de uma infância que lhe permite esvoaçar sobre o abismo dos minutos que a
razia social tenta limitar. Algumas vezes cândido outras vezes trágico, o
universo de Palácios conhece os mistérios das estações. E, através duma concentração
em que a paleta se transfigura, concebe visões vegetais e minerais que nos dão
a imagem duma existência finalmente liberta e à medida do percurso humano.
NOTA Este artista
alentejano, para cujas esculturas dei a lume os poemas de “Fotosíntese da
pedra” (incluídos no livro “Os olhares perdidos”, faleceu prematuramente em
2001.
9. ANDRÉS NAGEL, EM RELEVO
Os resíduos
preocupam visivelmente Andrés Nagel (1947). Trata-se de
vestígios ou de novas propostas de coisas (latas vazias, escovas partidas,
invólucros rasgados, lâmpadas fundidas, trapos velhos e manchados)? As suas
cores, contudo, são como sinais de explosões, estranhos obuses coloridos
atirados para o espaço. E, na organização do gatafunho, abrem-se janelas para o
mais além.
Definitivamente, Nagel procura
devolver a dignidade ao detrito, mas algo há lá por dentro que o suscita e
impele. Ou, então, que o impede de assentar as suas barreiras ou as suas
frestas pessoais em ordem a fazer passar sobre as flores do mundo um vento
devastador. Como é que se organiza a existência, será por bruscos arranques ou
tudo se processa num muito certo e seguro caminho de deuses? A interrogação
está aí e não nos descansa nada. As pirâmides de Yucatan ou de Tal-el-Amarna,
os monólitos de Cuzco e de Gessen só por excesso respondem a esta interrogação
crucial. Uns à escala do grande e, no relativamente pequeno a pintura, o
desenho e a escultura, afinal, buscam na sua dimensão, mas por outro
continente, o mistério que subjaz à pedra, ao tijolo e, no registo do artista,
ao cartão e ao contraplacado.
Andrés Nagel creio que tenta, ao
seu modo muito pessoal, reparar as muralhas derruídas desta solitária fortaleza
em que se transformou o espírito humano. Se o faz com tubos de tinta ou com
objectos mais apropriados a uma arqueologia futura é algo irrelevante. Ou
antes, emendo, talvez seja fundamental porque desta soma de indecisões (ou de
buscas intensas) parte porventura - e entre o lixo do tempo – um grito cuja
assimetria, se não tem a ver com outras escritas pensadas, tem todavia
muitíssimo a ver com a descoberta do drama em que todos nós estamos
mergulhados.
10. MANOLO RUBANO E OS JARDINS SUSPENSOS
É por dentro do artista que tudo existe com
mais intensidade: cidades e gentes, os grandes impulsos que fazem aparecer e
desaparecer os astros e as coisas. Por isso, a mão do pintor é uma sombra que
entre as casas e as árvores tenta seguir a trajectória do seu sonho, uma vez
que a realidade existe em vários planos seccionados, como se fosse uma
sequência de fotografias deslocadas ao
longo do quotidiano mas vistas de diversas perspectivas.
Criado por tios almocreves, Manolo Rubano (Manuel Rubano y Rocablanca,
1972) aprendeu as vivências de um mundo outro, de um mundo penetrado por ritmos
não-habituais, suscitadores de um olhar diferente, mutável e especioso. Talvez
por isso, se assim me exprimo, os ruídos de diferentes lugares também aparecem
frequentemente nos seus quadros: o som de um carro ao longe, apitos de barcos
em tardes e manhãs ausentes e esquecidas, as vozes ofertadas de transeunte para
transeunte enquanto os minutos se escoam – todos eles sugeridos pela magia das
tonalidades que se completam. E o passado comparece também em certos momentos
de nostalgia ou de mágoa, com as suas impossibilidades e as suas memórias. Um
rasto fragmentado, na verdade, como forma de interrogação aos deuses do tempo.
Artista ligado ao acto de fazer,
de manufacturar espécies diversas do espaço plástico, expande-se igualmente na
escultura – nos objectos, como ele
gosta de lhes chamar por temperamento – este artista que navega na figura do
dia-a-dia; aqui e acolá, uma frase lida num livro de outrora ou num caderno já
só vivendo na recordação.
E as presenças enevoadas de
palavras aprendidas através dos anos, ao sabor das viagens, entre a alegria e a
inquietação. Ou seja: cores, cores e formas plásticas entrando em nós, saindo
de nós, calmas e ardentes de sugestão e de procura. Assim como se tudo fosse um
jardim encantado dos tempos da nossa infância.
Utilizando o pincel, o guache, o lápis de cor e a tinta-china, na tela e
no papel, Manolo Rubano busca que o mistério do mundo apareça e se configure
como se a Natureza se desvelasse.
Ele, à guisa de pesquisador ou de
investigador do espírito, pega neste ou naquele indício, neste ou naquele
pequeno facto e relaciona-os entre si. Para melhor os conhecer, para melhor
lhes dar o seu verdadeiro rosto de serenas evidências Como um demiurgo, como um
simples ser que sabe que os traços que pomos nos quadros são como que o mapa da
caminhada entre os múltiplos continentes da nossa vida.
Nicolau
Saião (Monforte do Alentejo, Portalegre, 1949).
Participou em mostras de Arte Postal em
países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e
Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como
Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada,
Tiblissi, Sevilha etc.
Em 1990 a Associação Portuguesa de
Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro Os objectos inquietantes (1992). Autor ainda de Assembleia geral (1990), Passagem de nível (1992), Flauta de Pan (1998), Os olhares perdidos (2001), O desejo dança na poeira do tempo
(2008), Olhares perdidos (2007), O armário de Midas (2008), As vozes ausentes (2011), Escrita e o seu contrário (a sair).
Prefaciou os livros Mansões abandonadas, de José do Carmo
Francisco, Fora de portas, de Carlos
Garcia de Castro, Estravagários, de
Nuno Rebocho e Chão de Papel, de
Maria Estela Guedes.
Fez para a Black Sun Editores a
primeira tradução mundial integral de Os
fungos de Yuggoth, de H. P. Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e
ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana, Bichos (2005).
Organizou, coordenou e prefaciou a
antologia internacional Poetas na
surrealidade em Estremoz (2007) e co-organizou/prefaciou Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril.
Com Mário Cesariny e Carlos Martins,
colaborou na efectuação da exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e,
com João Garção, levou a efeito a mostra de mail art “O futebol” (1995). Concebeu, realizou e apresentou o programa
radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões). O cantor
espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum Canciones
lusitanas.
Tem colaborado em espaços culturais de
vários países.
Em 1992 o município da sua terra natal
atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre
comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a
medalha de Mérito Municipal.
Contacto:
nicolau49@yahoo.com.
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