quarta-feira, 23 de março de 2016

FLORIANO MARTINS | Nicolau Saião e o Surrealismo em Portugal


FLORIANO MARTINS | Simbolismo, Modernismo, Futurismo – com quais desses momentos melhor se identifica o Surrealismo em Portugal? O crítico brasileiro, de origem austríaca, Otto Maria Carpeaux (1900-1978), em sua História da literatura ocidental, aponta “a ausência de um verdadeiro Simbolismo em Portugal”, ao mesmo tempo em que situa Mario de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa como “dois poetas de formação esteticista mas de ambições que já antecipam o Surrealismo”. Por onde começamos? Gostaria aqui de fazer menção a um termo valioso do António Cándido Franco, o de “afinidade involuntária”.

NICOLAU SAIÃO | O nó do problema creio que assenta nas condições de antidemocracia que sempre – sublinho, sempre) – existiram em Portugal, não só propiciadas por uma classe dominante extremamente cínica e autoritária mas, ainda, pelo seu tipo de cultura primarizada e pela sua mentalidade inculta, plebeia no sentido exato e o seu reacionarismo incrementado e sustentado por um tipo de fideísmo profundamente limitado e preconceituoso que tentava eliminar, espingardear ou suster tudo o que lhe cheirasse a modernidade ou trouxesse o selo de algo menos academizado. Sempre dominaram os estabelecimentos de ensino a alto nível, que em Portugal são os órgãos que controlam apertadamente os sectores intelectuais que fazem entre nós a chuva e o bom tempo por razões óbvias. Era assim dantes e continua a ser assim hoje. Daí que as afinidades entre os autores/criadores tenham de ser involuntárias ou, dizendo de outra maneira, conforme se pode…
Isso faz com que, ainda neste tempo em que vivemos, ou sobrevivemos, a arte moderna em geral e o surrealismo em especial sejam olhados como excrescências carnosas, produtos de quase marginais, de gente que não se deve deixar entrar, preferentemente, nos salões onde os donos da sociedade exercem a sua música e a sua dança contra tudo o que é legítimo em vida sã.
Portugal segue sendo um entreposto claramente de signo cripto-fascista, mau grado a maquiagem arranjada nos primeiros tempos a seguir ao 25 de Abril – maquiagem essa que, por já não lhes fazer falta, têm estado a abandonar com decisão. Só têm algum respeito pela chamada arte moderna em sentido lato porque esta, nos lugares onde o ambiente é mais salubre, vale muito dinheiro! Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, como se sabe, foram sempre corpos estranhos no tempo em que estavam inseridos. E o panorama continua a ser assim… exceto se o autor/artista se alcandorou por companheirismos ou afeições, geralmente, aos lugares de topo da “árvore dos níveis”…



FM | O que evidencia a revolução surrealista em Portugal e como ela se insere em um mapa da Península Ibérica? Penso aqui nas relações entre Cesariny e Buñuel, que bem poderiam ter sido ampliadas, considerando afinidades históricas. Cesariny chega a comentar tangencialmente acerca de Juan Larrea, J. V. Foix, José María de Hinojosa… Porém nunca houve entendimento entre as duas vertentes surrealistas. Algum motivo determinante?

NS | O que a revolução surrealista, encarada a nível europeu ou mesmo ibérico, evidencia, é a meu ver as enormes dificuldades de se existir autonomamente, livremente. O poder político-social, precisamente pelas razões históricas nos dois países, tentou sempre impedir que fôsse fácil existirem relações entre os criadores daqui e dali. Por isso o cardo foi sempre enorme, parafraseando uma expressão de Cesariny…

FM | As cartas de António Maria Lisboa constituem uma fonte de iluminação sobre inúmeros aspectos referentes ao Surrealismo em Portugal. Poucos anos antes de sua morte, já descrente da perspectiva de reestruturação grupal do movimento, lemos em uma carta destinada a Cesariny ali imprimir seu desejo de ver seus amigos uma vez mais a seu lado, “desta vez não com a sombra de um Breton”. E em uma de suas últimas cartas, já no Sanatório da Quinta dos Vales Covões, em Coimbra, 1952, comenta com Mário Henrique Leiria acerca de uma “fundamental dificuldade” dos surrealistas: “sair da fácil expressão, do hábito a que dialeticamente se deram e onde anti-dialeticamente permanecem”, finalizando: “Breton será mil vezes culpado”. Até onde acerta António Maria Lisboa, não propriamente acerca de uma culpa de Breton, mas antes de uma falta de identidade no tocante ao Surrealismo em Portugal?

NS | A culpa de Breton, digamos assim simbolicamente, assentou no fato de que ele vivia numa França aberta e os surrealistas portugueses, ou que tentavam sê-lo, viviam num Portugal do antigo regime, ultraconservador e muitas vezes ultramontano. Em França era-se hostilizado pela mentalidade academicista da classe dominante, mas em Portugal ia-se parar diretamente, sem paninhos quentes, à prisão, à miséria econômica e à marginalização pura e simples. O que agravava as divergências, as questiúnculas e os destrambelhamentos até, dos autores portugueses, meros sobreviventes de uma nação dominada por gente nefanda.

FM | Há um comentário de Adolfo Casais Monteiro - A palavra essencial, 1972 - sobre composição e espontaneidade em que recorda que, “tal como em toda a literatura, também nas criações surrealistas havia uma diferença abissal entre a poesia espontânea de uns e a espontânea… vacuidade dos restantes”. Como lidou o Surrealismo em Portugal com essa aparente ambiguidade?

NS | Lidou mal, necessariamente. E o contrário é que seria estranho. Um surrealista autentico, em Portugal, vive ainda hoje, como vivia dantes, sob a férula de poetinhas que promovem, controlam, selecionam e acatitam muitíssimas vezes ilustres mediocratas que exibem como gente de grande gabarito.
Não é pois uma ambiguidade, mas uma consequência de Portugal ter sempre vivido no domínio apertado de aparelhagens de extermínio moral que epigrafa os “surrealistas” que lhes convém epigrafar. Liofilizados ou amansados. Objetos de literatura no pior sentido do termo. E quem se rebela… fica frito por esses cozinheiros de más iguarias.

FM | Seria possível imaginar um Surrealismo outro em Portugal sem a figura tutelar de Mário Cesariny de Vasconcelos?

NS | A realidade é que foi como foi. Cesariny, da maneira que pôde ou lhe consentiram, foi um resistente. Bem, mal, assim-assim? Sei das dificuldades que teve, que muitas vezes lhe criaram, já pela hostilidade já, depois, por o querem jungir a um surrealismo que, se fosse como eles determinavam, seria então credor de aplausos e de carinhos…duvidosos. Acresce que Cesariny tinha uma orientação sexual que essa gente tentava fosse a marca da sua totalidade enquanto ser humano/autor. O truque infame é bem conhecido…numa sociedade fideísta e, mais que isso, que se serve do fideísmo, tal qual se serve doutras afins, como arma de repressão e opressão.

FM | Quais relações podemos encontrar entre Surrealismo e o happening, como já o propusera Ernesto de Sousa em 1969, ao reunir poemas de Almada Negreiros, Mário Cesariny, Herberto Helder e Luiza Neto Jorge? E quais desdobramentos relevantes podemos comentar?

NS | Não o sei exatamente. Só sei que Cesariny, por várias vezes, me referiu que em Portugal o fenômeno happening corria o risco de acabar por ser uma coisa em estilo Parque Mayer. O que eu pude observar deixou-me muitas vezes com a sensação de que ele, que era um fino observador, percebera que numa sociedade como a nossa se corria sempre o risco de se mergulhar num “melting pot” transversalmente atravessado por um ar eventualmente percorrido por fumos e odores nada salubres.

FM | O que o tema Surrealismo significa hoje em Portugal?

NS | Algo que foi e continua a ser, da parte dos seus criadores sem jaça, qualquer coisa de muito luminoso, mau-grado as sombras que lhe tentaram sempre criar na figura. Da parte dos observadores que estabelecem os seus figurinos e as suas indumentárias para o baile social, algo que conviria desaparecesse o mais depressa possível. Apesar de o surrealismo praticamente não contar para nada socialmente, neste país, se pudesse ser exterminado deixaria muitíssimo mais felizes os que sentem no sapatinho essa pedra incómoda.



***

Nicolau Saião (Monforte do Alentejo, Portalegre, 1949).
Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha etc.  
Em 1990 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro Os objectos inquietantes (1992). Autor ainda de Assembleia geral (1990), Passagem de nível (1992), Flauta de Pan (1998), Os olhares perdidos (2001), O desejo dança na poeira do tempo (2008), Olhares perdidos (2007), O armário de Midas (2008), As vozes ausentes (2011), Escrita e o seu contrário (a sair). 
Prefaciou os livros Mansões abandonadas, de José do Carmo Francisco, Fora de portas, de Carlos Garcia de Castro, Estravagários, de Nuno Rebocho e Chão de Papel, de Maria Estela Guedes. 
Fez para a Black Sun Editores a primeira tradução mundial integral de Os fungos de Yuggoth, de H. P. Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana, Bichos (2005).
Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional Poetas na surrealidade em Estremoz (2007) e co-organizou/prefaciou Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril
Com Mário Cesariny e Carlos Martins, colaborou na efectuação da exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, levou a efeito a mostra de mail art “O futebol” (1995).  Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões). O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum Canciones lusitanas
Tem colaborado em espaços culturais de vários países.
Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de Mérito Municipal.






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