FLORIANO MARTINS | Simbolismo, Modernismo, Futurismo – com quais desses momentos
melhor se identifica o Surrealismo em Portugal? O crítico brasileiro, de origem
austríaca, Otto Maria Carpeaux (1900-1978), em sua História da
literatura ocidental, aponta “a ausência de um verdadeiro Simbolismo em
Portugal”, ao mesmo tempo em que situa Mario de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa
como “dois poetas de formação esteticista mas de ambições que já antecipam o
Surrealismo”. Por onde começamos? Gostaria aqui de fazer menção a um termo
valioso do António Cándido Franco, o de “afinidade involuntária”.
NICOLAU SAIÃO | O nó do problema creio que
assenta nas condições de antidemocracia que sempre – sublinho, sempre) –
existiram em Portugal, não só propiciadas por uma classe dominante extremamente
cínica e autoritária mas, ainda, pelo seu tipo de cultura primarizada e pela
sua mentalidade inculta, plebeia no sentido exato e o seu reacionarismo
incrementado e sustentado por um tipo de fideísmo profundamente limitado e
preconceituoso que tentava eliminar, espingardear ou suster tudo o que lhe
cheirasse a modernidade ou trouxesse o selo de algo menos academizado. Sempre
dominaram os estabelecimentos de ensino a alto nível, que em Portugal são os
órgãos que controlam apertadamente os sectores intelectuais que fazem entre nós
a chuva e o bom tempo por razões óbvias. Era assim dantes e continua a ser
assim hoje. Daí que as afinidades entre os autores/criadores tenham de ser
involuntárias ou, dizendo de outra maneira, conforme se pode…
Isso faz com que, ainda neste tempo em que vivemos,
ou sobrevivemos, a arte moderna em geral e o surrealismo em especial sejam
olhados como excrescências carnosas, produtos de quase
marginais, de gente que não se deve deixar entrar, preferentemente, nos salões
onde os donos da sociedade exercem a sua música e a sua dança contra tudo o que
é legítimo em vida sã.
Portugal segue sendo um entreposto claramente de
signo cripto-fascista, mau grado a maquiagem arranjada nos primeiros tempos a
seguir ao 25 de Abril – maquiagem essa que, por já não lhes fazer falta, têm
estado a abandonar com decisão. Só têm algum respeito pela chamada arte moderna
em sentido lato porque esta, nos lugares onde o ambiente é mais salubre, vale
muito dinheiro! Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, como se sabe, foram sempre
corpos estranhos no tempo em que estavam inseridos. E o panorama continua a ser
assim… exceto se o autor/artista se alcandorou por companheirismos ou afeições,
geralmente, aos lugares de topo da “árvore dos níveis”…
FM | O que evidencia a revolução surrealista
em Portugal e como ela se insere em um mapa da Península Ibérica? Penso aqui
nas relações entre Cesariny e Buñuel, que bem poderiam ter sido ampliadas, considerando
afinidades históricas. Cesariny chega a comentar tangencialmente acerca de Juan
Larrea, J. V. Foix, José María de Hinojosa… Porém nunca houve entendimento
entre as duas vertentes surrealistas. Algum motivo determinante?
NS | O que a revolução surrealista, encarada a
nível europeu ou mesmo ibérico, evidencia, é a meu ver as enormes dificuldades
de se existir autonomamente, livremente. O poder político-social, precisamente
pelas razões históricas nos dois países, tentou sempre impedir que fôsse fácil
existirem relações entre os criadores daqui e dali. Por isso o cardo foi sempre
enorme, parafraseando uma expressão de Cesariny…
FM | As cartas de António Maria Lisboa
constituem uma fonte de iluminação sobre inúmeros aspectos referentes ao
Surrealismo em Portugal. Poucos anos antes de sua morte, já descrente da
perspectiva de reestruturação grupal do movimento, lemos em uma carta destinada
a Cesariny ali imprimir seu desejo de ver seus amigos uma vez mais a seu lado,
“desta vez não com a sombra de um Breton”. E em uma de suas últimas cartas, já
no Sanatório da Quinta dos Vales Covões, em Coimbra, 1952, comenta com Mário
Henrique Leiria acerca de uma “fundamental dificuldade” dos surrealistas: “sair
da fácil expressão, do hábito a que dialeticamente se deram e onde
anti-dialeticamente permanecem”, finalizando: “Breton será mil vezes culpado”.
Até onde acerta António Maria Lisboa, não propriamente acerca de uma culpa de
Breton, mas antes de uma falta de identidade no tocante ao Surrealismo em
Portugal?
NS | A culpa de Breton, digamos assim
simbolicamente, assentou no fato de que ele vivia numa França aberta e os
surrealistas portugueses, ou que tentavam sê-lo, viviam num Portugal do antigo
regime, ultraconservador e muitas vezes ultramontano. Em França era-se
hostilizado pela mentalidade academicista da classe dominante, mas em Portugal
ia-se parar diretamente, sem paninhos quentes, à prisão, à miséria econômica e
à marginalização pura e simples. O que agravava as divergências, as
questiúnculas e os destrambelhamentos até, dos autores portugueses, meros
sobreviventes de uma nação dominada por gente nefanda.
FM | Há um comentário de Adolfo Casais
Monteiro - A palavra essencial, 1972 - sobre
composição e espontaneidade em que recorda que, “tal como em toda a literatura,
também nas criações surrealistas havia uma diferença abissal entre a poesia
espontânea de uns e a espontânea… vacuidade dos restantes”. Como lidou o
Surrealismo em Portugal com essa aparente ambiguidade?
NS | Lidou mal, necessariamente. E o contrário
é que seria estranho. Um surrealista autentico, em Portugal, vive ainda hoje,
como vivia dantes, sob a férula de poetinhas que promovem, controlam,
selecionam e acatitam muitíssimas vezes ilustres mediocratas que exibem como
gente de grande gabarito.
Não é pois uma ambiguidade, mas uma consequência de
Portugal ter sempre vivido no domínio apertado de aparelhagens de extermínio
moral que epigrafa os “surrealistas” que lhes convém epigrafar.
Liofilizados ou amansados. Objetos de literatura no pior sentido do termo. E
quem se rebela… fica frito por esses cozinheiros de más iguarias.
FM | Seria possível imaginar um Surrealismo
outro em Portugal sem a figura tutelar de Mário Cesariny de Vasconcelos?
NS | A realidade é que foi como foi. Cesariny,
da maneira que pôde ou lhe consentiram, foi um resistente. Bem, mal,
assim-assim? Sei das dificuldades que teve, que muitas vezes lhe criaram, já
pela hostilidade já, depois, por o querem jungir a um surrealismo que, se fosse
como eles determinavam, seria então credor de aplausos e de carinhos…duvidosos.
Acresce que Cesariny tinha uma orientação sexual que essa gente tentava fosse a
marca da sua totalidade enquanto ser humano/autor. O truque infame é bem
conhecido…numa sociedade fideísta e, mais que isso, que se serve do fideísmo,
tal qual se serve doutras afins, como arma de repressão e opressão.
FM | Quais relações podemos encontrar entre
Surrealismo e o happening, como já o propusera Ernesto de Sousa em
1969, ao reunir poemas de Almada Negreiros, Mário Cesariny, Herberto Helder e
Luiza Neto Jorge? E quais desdobramentos relevantes podemos comentar?
NS | Não o sei exatamente. Só sei que Cesariny, por várias
vezes, me referiu que em Portugal o fenômeno happening corria o risco de acabar
por ser uma coisa em estilo Parque Mayer. O que eu pude observar deixou-me
muitas vezes com a sensação de que ele, que era um fino observador, percebera
que numa sociedade como a nossa se corria sempre o risco de se mergulhar num “melting
pot” transversalmente atravessado por um ar eventualmente percorrido por fumos
e odores nada salubres.
FM | O que o tema Surrealismo significa hoje em Portugal?
NS |
Algo que foi e continua a ser, da parte dos seus criadores sem jaça, qualquer
coisa de muito luminoso, mau-grado as sombras que lhe tentaram sempre criar na
figura. Da parte dos observadores que estabelecem os seus figurinos e as suas
indumentárias para o baile social, algo que conviria desaparecesse o mais
depressa possível. Apesar de o surrealismo praticamente não contar para nada
socialmente, neste país, se pudesse ser exterminado deixaria muitíssimo mais
felizes os que sentem no sapatinho essa pedra incómoda.
Nicolau Saião (Monforte
do Alentejo, Portalegre, 1949).
Participou
em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia,
Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e
colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres,
Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha etc.
Em 1990 a
Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu
livro Os objectos inquietantes (1992).
Autor ainda de Assembleia geral
(1990), Passagem de nível (1992), Flauta de Pan (1998), Os olhares perdidos (2001), O desejo dança na poeira do tempo
(2008), Olhares perdidos (2007), O armário de Midas (2008), As vozes ausentes (2011), Escrita e o seu contrário (a sair).
Prefaciou
os livros Mansões abandonadas, de
José do Carmo Francisco, Fora de portas,
de Carlos Garcia de Castro, Estravagários,
de Nuno Rebocho e Chão de Papel, de
Maria Estela Guedes.
Fez para
a Black Sun Editores a primeira tradução mundial integral de Os fungos de Yuggoth, de H. P. Lovecraft
(2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta
brasileiro Renato Suttana, Bichos
(2005).
Organizou,
coordenou e prefaciou a antologia internacional Poetas na surrealidade em Estremoz (2007) e co-organizou/prefaciou Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril.
Com Mário
Cesariny e Carlos Martins, colaborou na efectuação da exposição “O Fantástico e
o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, levou a efeito a mostra de mail art
“O futebol” (1995). Concebeu, realizou e
apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36
emissões). O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum Canciones lusitanas.
Tem
colaborado em espaços culturais de vários países.
Em 1992 o
município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em
2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e
cultural outorgando-lhe a medalha de Mérito Municipal.
Contacto:
nicolau49@yahoo.com.
Nenhum comentário:
Postar um comentário