quarta-feira, 23 de março de 2016

NICOLAU SAIÃO | A caixa de Pandora


1. AS PROFISSÕES RECUSADAS

O pormenor está em ouvir ainda que Breton defendesse um dia que o que era preciso, para chegar ao último estádio da Obra – discretamente, falo por símbolos… - era um superior mergulho na grande ausência, aquele estado de distracção fervilhante capaz de levar o poeta, ou o fulano por extenso, pelo mar ou a planície de casas, corpos, intensidades bruscas, sentimentos e esperas. O viandante transformar-se-ia, assim, num telescópio – ou num microscópio, porque o grande e o pequeno incluem-se e o que está em baixo é como o que está em cima – navegando como uma escuna que recebesse no casco o embate dos habitantes dos oceanos, os ventos de longe, o fulgor dos astros ainda inocentes.
Mas refiro-me a ouvir tudo. Os ritmos secretos da Terra? Sim, mas parece-me que foi chão que deu uvas, a acreditar em anos e anos de má literatura ou, mais grave, de más consciências transbordadas em “gestos cívicos” a dar por um pau, amores próprios e alheios, corridas pedestres. Jogging, como se diz. A verdade, aqui para nós, é que não existe segredo que contemple, por banda dos deuses da escrita, o ligeiramente ingénuo sujeito que se ponha ao trabalho: a corte celeste será então de loucos ou de poetas absolutos e não seria demasiado pensar que Diana ou Artemisa, no intervalo dos seus “affaires” normais, compusessem olhando em volta com certa angústia uma ode, um alongado canto onde se mesclariam porventura os lamentos por um planeta perdido, ou por uma terra distante, ou simplesmente uma interrogação mais ou menos rendida de como se encontra a chave do mistério – que segundo parece não entra todavia em nenhuma fechadura.
Digo para mim entredentes: passemos por esta rua, hoje o sol abriu contra os muros das velhas casas claridades insuspeitadas. Entreguemo-nos por alguns minutos às nossas selvagens alegrias. Façamos de conta que a literatura não existe e que sentarmo-nos num banco, no antigo Jardim da Corredoura, não traz imediatamente à lembrança uma página de Bulgakov, quando Margarita contempla o despertar de Moscovo e em sua volta se movem estranhas influências que iriam culminar no grande baile de Satã onde os sete palmos da existência e as cinco dimensões teriam uma palavra a dizer. Mas a literatura existe e é escusado querermos afastar as suas reminiscências.
 Afastar é como quem diz, porque não se dispensa a música ao longe seja qual for o sentido que se lhe dê. Resumindo: quem iria dizer (pensar, o que vai dar no mesmo) que o Tio Brandão era farda? Por estranho que pareça, ou não – e nisto os Liceus é que têm a culpa - só por volta dos vinte e muitos soube que o nosso homem era oficial do Exército. O que aliás não tem mal nenhum, acentuo. Pode ser-se militar quase como se é pasteleiro ou director dum clube de críquete. E os futebolistas canadianos que participaram com pundonor no campeonato do mundo no México, ou coisa, não eram empregados-de-balcão, advogados, estudantes e por aí fora?
 Vou então ficcionar por uns momentos. E atribuir profissões desencontradas a este, aquele, aqueloutro. Por exemplo: Tolstoi como jornalista no “Expresso”; Marco Aurélio como escriturário em Queluz ou Campo Maior; Camilo como farmacêutico num estabelecimento em Lisboa; Proust como árbitro de andebol nos momentos livres e, para ganhar a sopinha, primeiro-oficial num município; Abelaira como gerente duma casa de fados e, para espairecer, pintor de domingo nos intervalos das escritas; Eça de Queiroz, odontologista em Montemor-o-Novo; Pessoa, evidentemente, funcionário do FAOJ destacado em Sintra; Marguerite Yourcenar, professora de História em Beja; quanto a Rimbaud seria excitante imaginá-lo por uns segundos aluno da Faculdade de Letras alfacinha, assim como será difícil resistir a congeminar Flaubert como médico de senhoras em Elvas ou Alenquer.
 Se, como alguns excelentes críticos pretendem, os axiomas são desmontáveis mais que não seja dentro das suas cabeças, a suprema festa seria então abandonar os textos ao seu destino. E teríamos: “O vermelho e o preto” por David Mourão-Ferreira; “A morgadinha dos Canaviais” por Witold Gambrowicz; “Por quem os sinos dobram” de José L. Peixoto; “Histórias do fim da rua” por Chateaubriand; o “Só” de Saint-John Perse; finalmente, “A vida em Middlemarch” por Ramalho Ortigão.
 Imaginemos mais um pouco: não haveria maneira de se entretecerem as escritas? Assim, as frases iniciais de “O deserto dos tártaros” poderiam enroscar-se a dado passo num trecho de “A Cartuxa de Parma”; e o “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho” não ficaria descabido, convenientemente acomodado, numa página de Jorge Luís Borges. E o conflito moral de “Beau Geste”, antes e depois de ir para a Legião Estrangeira? Pelo andar que as coisas levam não seria de estranhar vê-lo na escrita sugestiva e ágil daquele romancista que ficou tão galhardo em telenovelas.
 Leio, dos “Princípios” de Eyrinée Philalète, o décimo-terceiro e não porque tenha simpatia pelos números ímpares: “Encontrando-se as coisas assim dispostas, colocai o ovo onde estiver a vossa matéria nesse forno e dai-lhe o calor que a Natureza pede, isto é, fraco e não demasiado violento, começando aonde essa Natureza o deixou. Não deveis ignorar que a dita Natureza deixou a vossa matéria no reino mineral e que, embora nós tiremos as nossas comparações dos vegetais e dos animais, é necessário contudo que concebais uma relação apropriada ao reino no qual está colocada a matéria que quereis trabalhar(…)”. Se o romancista é alguém para quem nada está definitivamente perdido, como se disse (com propriedade? sem propriedade?) o truque estaria porventura em efectuar passages à tabac aos sentimentos, às sensações, às alegrias e aos infortúnios. Como nas batalhas em jogos de computador. Mas como os jogos são todos de vida ou de morte, quer sejam no interior do núcleo (a palavra, leia-se) ou no grande exterior (ainda a palavra, previno) deixemos o Norte a norte, o sueste a Sueste e os rios correndo franca e limpidamente para a sua foz.
 Raul Brandão era pois militar? Era militar e ainda bem – e nem sequer lhe foi preciso, como a Mac Orlan, ter ido para os aquartelamentos legionários no deserto. Foi o que no seu teatro próprio melhor lhe quadrou (porque foi dess’arte e não doutra maneira) de resto parece que ao mandar os taratas efectuar “esquerda ou direita volver” acrescentava frequentemente “se me fazem o favor”. Reminiscências, dirão os mais experientes em tratos místicos, dos hortos de uma certa Arcádia, da pureza das areias argelinas ou da serenidade das planícies de Saskatchewan.
 Não sei, não quero opinar e além do mais as partidas é como se as tivéssemos, já, todas ganhas.
 Aqui ou em Sidi-bel-Abbès

2. GILGAMESH OU A APOSTA IMPOSSÍVEL

 Seria fácil imaginar um tigre a comer erva, assim como um cordeiro a engolir a pitança. Todavia… Todavia estou a lembrar-me, ao calhar dos minutos, daquela célebre hipótese de Mark Twain: “Se Moisés não tivesse existido, teria existido decerto outro indivíduo com o mesmo nome”. E funções, evidentemente, acrescento de minha lavra. Aqui, entra Chesterton em cena, peso-pesado das metafísicas ligeiras mas reconfortantes: “Eu nunca minto, a não ser que seja absolutamente necessário”. Pois, é como na História não reciclada pelos descendentes ou herdeiros de Walt Disney. Velha mania de ocupar os lugares todos, de preencher o tal vazio assustador dos metafísicos? Ou apenas sensatez suficiente para que saibamos, definitivamente, que onde está um baú não pode estar uma cadeira de baloiço, assim como onde está um inteligente não podem estar sete idiotas?
Em trocos miúdos: o que se aponta é de facto para o simulacro da “hybris” revista pelos sucessivos concílios. Esses tais que nos quebraram a cara como o faria um soco de pugilista desempenado, sem que no entanto em simultâneo nos tratassem da alma que como se sabe se multiplica nas celestes moradas em graus de aperfeiçoamento singular. Questão intemporal de ascensões no etéreo, digamos, ou de quedas corporais. Ou, melhor ainda, o apelo fascinado de certos mundos paralelos que nos oferecem a ciência e a religião oficializadas, certas paisagens serenas ou infernais cuja traça se ergue para logo se desmoronar, como em Hollywood.
Aqui entre nós, que pouca gente nos escuta: quem é que não sonhou ainda em mudar de rota, uma vez por outra, mesmo sabendo que o ser-se isto implica necessariamente não se ser aquilo, sendo a Vida como é (ao que alguns dizem com sensatez maldosa) não propriamente uma escolha mas a impossibilidade de se terem dois destinos?
Com o que, pelo que, conclui-se sem mais demoras que um tigre a comer erva só nos anúncios da margarina Custódio ou do automóvel Tortilha. Ou nas estórias da Carochinha que os malabaristas da coisa pública, finamente, nos distribuem pelas rádios e têvês.
 Digamos com certa inocência, como nas doces festas de anos de antanho: saibam lá vossências que há pouco tempo atrás um sábio que é também robusto memorialista – trata-se de François Jacob – assinalou que a existência mais parece coisa de biscateiro que de engenheiro, mesmo genético. As somas eventuais não apagam nem destroçam e muito menos repelem o já construído. É no género do “Blade Runner” ou dos fabulosos bricabraques de Tinguely. Coisa de truz – e eu fico-me um bocado a rir das tiradas dos que compenetradamente afirmam nos media que estão muito atentos e um pouco trémulos ante a possibilidade de se multiplicarem em provetas os hitlers, os stallones e outros hermanjosés. Mas não foi sempre a sociedade, além da ciência e das técnicas que lhe estão nos arrabaldes, uma perigosa brincadeira? Se no próprio laboratório do Éden, onde os elohins oficiavam… - mas deixemos isso por ora.
 Creio que fará sentido concordar com Thomas Mann quando este refere, nos intervalos do seu sonho montanhês, que ao nível das concreções superiores existe como que uma actuação alquímico-hermética do coração humano, uma renovação de todas as fibras do ser que nos força a ir em busca do conhecimento capaz de nos fazer compreender que os passeios pelas margens dos rios, as idas ao cinema ou ao circo de mão na mão, o acordar no azul penumbroso dum quarto às três da tarde ou às quatro da manhã são o equivalente de coisas que a mística só pode explicar de forma aproximativa. (Dantes agia-se de forma expedita e suave: calabouço com eles e uma eventual passagem pelas brasas). E talvez faça sentido, também, meditar nesta frase de Nietzsche que, como num espelho mágico, nos diz lá do fundo: “Há alguns que nunca se tornam doces e apodrecem mesmo no Verão. Só a cobardia os sustenta no ramo”. E antes de entrarmos no fato bem passado da angústia existencial, vistamos por baixo uma camisola barata de senso comum: “Quando eu tinha vinte anos, diziam-me: hás-de ver quando tiveres quarenta anos! Pois bem: tenho quarenta anos - não me mostraram nada”. (Benjamin Péret).
 Venham cá dizer-me que a metafísica é uma serena imanência! Não os acreditarei, com mil bombas. Seja no masculino ou no feminino. Porque os deuses têm cara de tarráqueos nestes tempos que vão correndo. Quer dizer; antes de subirem aos céus experimentam em nós os seus destinos; não falando - porque isso dá excomunhão mais ou menos democrática - no cultivo intensivo e na intensa proliferação de santos, aspecto que não será de desconsiderar. Na verdade é tudo uma questão de símbolos.
 Eis senão quando que Gilgamesh, por causa das vozes de sempre (já com Joana d’Arc irá ser alegadamente o mesmo incómodo) se decidiu a tomar da capa e do porrete e abalar para o deserto. Ia em busca da flor azul, como nos contos de fadas? Parece que não, o que estava em causa era tão só a imortalidade e não a saúde e a cura por extenso (úlceras, cegueira, tiro de pistola no flanco, enfarte de miocárdio). E então deu-se que Enkidu, ser primordial e selvático, inocente como um padre cura do breviário, lhe apareceu pela frente – os braços peludos de atleta, os olhos de vedeta das matinés adolescentes, a naturalidade de futebolista ferrabraz, a figura talhada ao jeito das fitas de Spielberg… e foi o coup de foudre conforme reza nas tábuas de barro. Coisa mística, de resto, como nos conta a seguir um velho papiro (apócrifo?). Saborosa e interdisciplinar.
 Contudo…
 Contudo, como já cá se ficou sabendo, os cordeiros não comem carne e os tigres muito menos tasquinham a ervinha tenra. Gilgamesh, algo ingénuo e estupefacto, viu aparecer de chofre coisas adustas no corpinho empolgado de Enkidu: tinha de se render à evidência, a metafísica às vezes fica claramente ultrapassada pelas circunstâncias do momento em tempo real, a filosofia e os textos pré-diluvianos são muito bonitos mas não servem, de todo, em determinadas ocasiões: Gilgamesh, com a personalidade enrodilhada, as roupas num farrapo, começou a perceber que Enkidu não era tão angélico e abstracto como nas ficções, mais parecia um gigolo do Parque Mayer, a braguilha desapertava-se-lhe em alturas muito impróprias e um arfar suspeito punha-se a trabalhar como um motor de avioneta. Gilgamesh concluiu então que os mitos são coisa fina mas não safam a virtude de um homem de brios, co’os diabos. Tratou, rapidamente, de se pôr a andar enquanto dizia de si para si que é inútil um zé-maria enlear-se no golpe da mágica/mitológica compreensão absoluta com um zé-antónio, porque então o zé-antónio transforma-se noutro zé-maria e tudo volta ao princípio.
 Circular, como nas fábulas iniciáticas. De sorte que o nosso herói, já com a escolaridade pessoal toda empinadinha, aprofundou-se finalmente pelo rosto da deusa, que mais adiante no relato o esperava a pé firme. “Será este pois o sentido da Estória que se conta depois do repouso do Senhor, quando Adão viu, entre assustado e divertido, o pirilau crescer com denodo ao contemplar o fruto da sua costela?” perguntará, do lado, o leitor com ironia.
 Na verdade, o andrógino inicial é coisa com certa piada, talvez, mas só faz sentido nos contos de proveito e exemplo mediante os quais se chega a conclusões diametralmente opostas consoante se for anjo ou demónio. Enoch sabia disso (e era esta a sabedoria dos antigos escribas, que só por irrisão se crismariam de hipnotizados. Adiante). O que realmente faz brilhar as pupilas da existência, essa existência séria que o grande Humboldt tão bem escrutinou, é o facto de haver opostos com a autonomia que dá origem às novelas surpreendentes. De resto, não. E foi nisto certamente que o Alfa-Ómega pensou, ele que é princípio e meio e parece que não tem fim e que, experiente até mais não, tem para além dos limites a legítima lábia e o conhecimento da matéria.
 Mas seria, com franqueza, de esperar coisa diferente? Como dizia outra vez Chesterton, depois de ter relanceado a lady do distrito de Belgravia com olho maroto, “Os amores platónicos, como todos os tónicos, são apenas um estimulante”. Se não acreditam, vão perguntá-lo a Gilgamesh.
 À Deusa, quer-se dizer…

3. AS ESPÉCIES POÉTICAS

 Sabe-se que há pessoas felizes - segundo me confidenciou o meu assistente de bordo, que por coincidência crepuscular ou madrugadora ainda é parente do daimon do pensador grego - que colhem os seus textos (poemaria sentimental ou quotidiana, versalhada esotérica com e sem rima, naco de prosa ou entradazinha diarística relativamente sobranceira ou merencória) ao deambular pelas ruas, no escuro dum parque, à porta duma estalagem ou na dulcíssima e profícua casa-de-banho duma amante ocasional ou dum consistente companheiro de estúrdia.
Assim como quem apanha, de passagem, no estrépito gratificante de um bar de luxo, meia-dúzia de amêndoas torradas ou um punhadinho de ervilhanas descascadas ao passar pelo balcão a caminho duma mesa onde os convivas o esperam com as peças de resistência.
Pelo menos é o que se extrai, se bem lidos, da frequentação de alguns autores e de matérias de aturado estudo de costumes, de enviesados momentos de profunda criação (alheia) que nos fazem, nos melhores casos, salivar com apetite.
Dizia Guillaume de Poitiers, numa bela tarde que também pode ter sido noite ou manhã, que fizera um poema de nada. Por seu turno, Saint-John Perse afirmou algures que a sua aspiração maior era fazer um poema sobre nada. Seria o nada que é tudo como artilhou o sagaz e melancólico portuguesinho de Durban (South África)? Mas é claro que por detrás destas pequenas e aparentes boutades vive e sobressalta-se uma profunda contemplação do Universo das probabilidades, no género das que Bernard Trevisan punha no seu tempo em equação.
E, detalhe profundamente contemporâneo mas conjunturalmente inquietante embora sem metafísicas, tende imensos cuidados vós que me ledes: se mal vos precatardes, pelo descuido dum dedo podereis mandar interactivamente para a inexistência definitiva e sem piedade um lindíssimo trecho que acabastes de escrevicar, o que pode dar choro e ranger de dentes sem ponta de literatura dramática. Em tudo terá também de haver, sem desdouro, um pouco de ternura!
 A verdade é que, nos tempos mais chegados, por mor da modificação de usos societários (?) sai-se para o lirismo como se sai para a caça. E, conforme me esclarecem, isso dá-se tanto em Chicago como em Bruges, tanto em Edimburgo ou Lyon como no Funchal, no Porto, em Nápoles, em Lisboa. Serão aspectos da mundialização, do aquecimento global dos corações e dos cérebros postos à prova pelos que traçam (os Bielderbergs? os Opus Dei? os aqueles que nem é bom nomear para não se ficar feito em estilhas?) as nossas folhas de destino sobre o planeta?
(Antes de passar para outro continente, continuando todavia a juntar alhos e bugalhos, permitam-me entretanto que proceda a alguns agradecimentos completamente filhos de uma comoção muito aparentada com certa inocência que me foi escapando devido à safra dos anos e às más companhias que sempre nos estorvam antes de as pontapearmos com decisão: a Axel Munthe por ter escrito tudo o que escreveu; a Mikhail Bulgakov por não ter escrito o que queriam que escrevesse; a Jean Husson por ter andado pouco com os gandulos das letras com quem queriam aparentá-lo; a Silver Kane por ser também Enrique Moriel e Francisco González Ledesma, além de possivelmente outros na vasta pradaria dos seus afectos; a Alain Decaux por ter narrado, em directo e de viva voz na televisão, todas as suas surtidas históricas que só depois, razoavelmente mais tarde, iria passar ao papel – feito notável que só um herói das letras conseguiria; a Sherlock Holmes e Poirot por terem existido; a Conan Doyle e Agatha Christie por não terem existido, excepto com a lupa e o cachimbo e o bigodinho roubados às suas criaturas; a Cézanne por ter sido apenas pintor; a Schubert por ter sido apenas compositor e músico; a Malte Laurids Brigge por não ser nem um a coisa nem outra; por último, mas não finalmente, a Rilke por ter sido tudo inclusivamente secretário particular de Rodin, que como poderia escrever outro companheiro da corda não entrava nesta estória; e a alguns ibéricos e lusitanos por o terem continuado a ser, não sendo alanos ou mouros).
 Mas dizia eu que se vai saindo para o lirismo como se sai para a caça. Nos últimos anos de civilização certos quadrantes aumentaram extraordinariamente o apuro da sua pituitária espiritual. A mistura em partes desiguais de carne de primeira e de segunda, ou mesmo de terceira ou quarta, vem permitindo uma transubstanciação que muitos julgariam inimaginável. Os gourmets da literatura não são, evidentemente, todos do mesmo género. Há felizmente nuances compensadoras. E se é um facto que se subdividem em dois grandes sectores – o escarlate e o cinzento, sendo o primeiro de tendência devoradora e o segundo raciocinadora – isso não implica o desaparecimento dos que vêem na poesia algo mais que uma tarefa ou uma fatalidade. Por enquanto – o panorama pode mudar.
Há contudo variações insuspeitadas e não estou a lançar uma indirecta, garanto, àquele ensaísta genial que uma vez vi ao vivo numa sessão em Cascais e que afirmou com pujança que nunca nada tinha sido criado no programa do Bernard Pivot, o que não o impediu de um mês depois lá ter estado a convite, de face risonha e radiante e engrolando seus conceitos lusos que ora se engelham ora se distendem como se fossem bonecos insufláveis.
Há o lirismo para comemorações patrióticas progressistas ou casamenteiras de estadão, para desforços conservadores, para amores infelizes, para gestos sociais diversos; o lirismo circunspecto, diríamos universitariante, em timbres secos e escanhoados, preciso e conciso como o relatório de um conselho de administração, ou o mais exaltado ainda que científico, sendo este uma variante algo descabelada do anterior. Digamos – mais pão pão, queijo queijo.
Segundo julga saber-se, há poemas que não convém serem deglutidos de manhã: pesam no bucho, criam soluços e azia. De modo que é mais aconselhável tomá-los à tardinha, quando os apetites já se locupletaram com meia dúzia de canalhices bem rimadas ou uma pratada de sonetos à marinheira ou com todos os matadouros.
A verdadeira vida está ausente, dizia Rimbaud. Ausente, no entender de alguns gastrónomos que por vezes também versejam – gastrónomos premiados se calha pelos salões de jantar letrados - como as narcejas, as galinholas, as lebres e as perdizes. A caça espiritual ainda será, se os fados ajudarem, uma realidade peculiar.
Em certas alturas, o pesquisador-amador das várias espécies poéticas está particularmente inclinado para a amável prática desta salutar manducação: de alma à bandoleira, com boas reservas de cartuchos de escolaridade obrigatória no cinturão, facanejo de aço carbónico na ilharga, ei-los que partem para os lugares apropriados.
 Nos montes e valados distinguem-se então minúsculas figuras movendo-se ora ágil e graciosamente, ora mais pesadamente; uns mais ardilosamente que outros lá se acocoram, armadilham, tocaiam, simulam. E finalmente estendem a presa com dois ou três certeiros balázios.
 No fim, chegado o crepúsculo, aconchegadas as matilhas no palheiro ou no pátio, ao redor da grande mesa de madeira de pinho grosseiro ou de carvalho mal desbastado, abancam os amantes desta actividade venatória. Todo o dia o sol lhes ondeou sobre as frontes, queimando-lhes as faces, crestando-lhes os olhos e a vivacidade. Uma paz muito suave os prende agora à fraternal roda de congéneres. Da cozinha já chega até aos narizes dos convivas o cheiro picante dos pitéus: Camões guisado, Lorca salteado, Antero com rodelinhas de paio, Neruda com alcachofras na caçarola, Pessoa com vinho grego, Régio frito com batatinhas às rodelas, Pascoaes assado com uma gota de limão prudente. (Eugénio, por distracção da cozinheira, primeiro ficara meio cru, depois demasiado passado).
 No fim virão as sobremesas diversas: vates novos, postos em remolhão de vinho do Porto durante horas, a embeberem-se, para fazerem contraste com as arrufadas de Coimbra e as queijadas de Sintra espirituais, com sabores e com doçuras a dar para o selvagem e o inusitado (e que até requentadas calam no gosto, entrada a hora da ceia).
 Lá fora crescem luzes no céu: Sírius, Canis Minor, o sete-estrelo, o brilho nostálgico de Vega que na Caldeia inspirava magos e arquitectos (talvez, como alguns cá, traçando por vezes seu versinho no fim dum lauto repasto).
 Se o tempo é de grilos, ralos e cigarras ei-los que cantam ajudando à festa. Mas sempre, por sobre a massa pura das árvores e o negrume palpitante da noite estrelada, se expande um ruído difuso, amplo, que conviria ser – para que tudo estivesse a carácter – o filosófico rolar das esferas do universo.
Seja como for, tenho para mim que as espécies poéticas ainda irão estar intensamente noutros locais privilegiados e privilegiadores – e que possibilitarão menos canseira - as grandes superfícies comerciais aprazíveis e acolhedoras onde por ora praticamente só se mercam produtos para bater: romances, novelas, robustas casquinadas políticas, memorialismo relativamente pindérico.
Mais frescas e nutritivas (porque sujeitas ao congelamento eficaz e benéfico que lhes preserva os elementares), mais baratas e abundantes, terão ademais o aliciante do diploma e certificado de garantia. É aliás assim que tem de se proceder em sociedade organizada e moderna. Claro que a caça pode continuar, deve continuar, ninguém pretende hostilizar a surtida cinegética. No entanto dá obviamente um certo conforto saber-se que há nas bancas, estimuladas pela tecnologia, espécies prontinhas para a festança quando calham de ser subitamente desejadas.
Enfim, será um quadro apropriado onde poderá talvez, até, achar-se um bom naco de felicidade. Havendo, mesmo, lugar para as surpresas porque existirão concerteza aspectos não contemplados nos manuais de civilidade obrigada a mote. Poderão inclusivamente propor-se, pelo seguro, interessantes variações: sonetilhos escalfados, elegias torradinhas, odes com mel e pinhões, haikais empapados em uísque ou no proverbial saké para os puristas. O espanto ganhará o seu justo lugar na sensibilização das línguas – mesmo mortas – através de uma ou outra distribuição fortuita mas enquadrada de provérbios e redondilhas.
 Entraremos no domínio da poesia quase perfeita, ora de cariz labirintiforme ora de raiz levemente mística. Às tantas, subindo verticalmente na bolsa de valores da existência como as pirites neo-zelandezas ou o café do Calulo.
Um tom rosado irá paulatinamente cobrindo as faces outrora lívidas dos cidadãos alfabetizados.
E tudo findará, evidentemente, por uma poderosa manducação geral só detida nos limites da antropofagia.
Bastante épica.

4. O OLIMPO JÁ ESTÁ A ARDER?

 Suponhamos, não por traquinice mas muito a sério, que numa quinta-feira um artefacto voador alienígena (um dos chamados, na Bíblia, “glória do Senhor” e, nos anais quíchuas, “serpentes voadoras” devido à forma alongada da sua fuselagem), por isto ou por aquilo pousava num arrabalde de Santarém, de Lamego, ou mesmo na Buraca ou em Linda-a-Pastora e, enquanto os seus tripulantes tratavam dos seus afazeres localizados, eram avistados durante quarenta e oito minutos (horário TMG) por habitantes locais, a saber: um membro da secção portuguesa dos Alcoólicos Anónimos; um sacerdote dominicano; três futebolistas de momento a jogarem nas reservas do respectivo clube; uma escritora doublée de cientista; dois agentes da autoridade acompanhados de um autuado; um jornalista de um órgão de tiragem média; dezasseis ovelhas e o respectivo cão (o pastor dormia beatificamente sob uma árvore ou junto a um muro e não se apercebera de nada); duas crianças e três adolescentes, incluindo um telemóvel e um boneco de pano; oito passeantes diversos sem estatuto definido por não interessar a esta crónica.
Perplexos, nos sítios e localidades respectivas, todos eles se punham mais ou menos coerentemente a relatar o avistamento, dando pormenores a quem os quisesse ouvir e os não mandasse bugiar logo a partir da quarta estrofe…
O periodista, que o chefe-de-redacção tinha na conta de pessoa séria e pouco dada a tratos vínicos, ainda colocava por mansuetude companheirona do superior, na terceira página, uma local em 16 linhas na qual, um pouco encabuladamente, falaria num caso curioso, num facto que intrigou observadores e lengalengas que tais, sendo o assunto rapidamente esquecido e mergulhando, como milhares de outros, no vasto cafarnaum do enigmático e do misterioso para pessoal com alguma imaginação e sentido do mundo para além dos quatro olhos e dos sete sentidos.
 Mas suponhamos agora que por fas ou por nefas o assunto era tomado a sério por alguns grupos da intelectualidade dominante que em geral ciranda nas veredas do poder. E que o assunto ganhava, nos círculos certos, certo destaque e certo crédito – tanto mais que nos últimos anos entidades responsáveis vincadamente oficiais ou mais discretas como entre outras a Sodalitium Pianum (serviços secretos da ICAR), a Agencia Nacional de Segurança (NSA), o Deuxième Bureau e o Inteligence Service se têm debruçado parece que proficientemente sobre esses curiosos factos em ordem a tentarem perceber o como e o porquê de tais intrigantes casos.
 A não ser dum ponto de vista académico – isso não aqueceria nem arrefeceria absolutamente nada. Quando muito deixaria apenas nos cérebros e nos relatórios dos operacionais uma congeminação, um raciocínio, talvez um leve zumbido de crença ou de descrença intelectual ou filosófica neles e nos superiores, talvez um pedacinho de inquietação na alma dos mais argutos ou temerosos ou perspicazes (ou desconfiados), porque ficariam com a pedra no sapato e a pulga atrás da orelha, como pitorescamente sói dizer-se.
 Na verdade, que poderiam esses beneméritos fazer, resolver? Dizer aos quatro ventos que afinal, pelas conclusões competentíssimas tiradas pelos grupos de trabalho (as task force como usam ser apelidadas) andava gente realmente pelos céus, que poisavam quando queriam e deixavam contactos se lhes apetecia com iluminados (posteriores) e delegados (santões) se lhes dava na bolha modificar ou incrementar localmente certas regiões e comunidades? Quem lhes daria crédito? Quem os levaria a sério? E se levassem, cadê o resultado? Poderiam pedir responsabilidades aos viandantes do cosmo por entrarem sem visto nem passaporte por qualquer fronteira a dentro? Por gerarem filhos numa moçoila aprazível? Por levarem de viagem uns tantos parentes da mãe Terra? Por…
 Mas creio que já todos perceberam, é escusado ser mais redundante ainda.
 Assim, num outro plano, já se sabe que são estorietas de ficção científica escrita ou cinematográfica, ou da legenda dos séculos, os relatos de cães com cabeças de homens ou de homens com cabeças de tigres. Ou de mancebos com asas de andorinha, de águia ou de pterodáctilo, ou de senhorinhas com cauda de pescada ou de espadarte. De acordo com o que nos informa a ciência de ponta, pelo menos até agora, a semente do homem não é susceptível de se misturar com a do animal sendo a inversa também muito verdadeira.
Esses sucessos, de acordo com os melhores autores, só estão dentro das possibilidades dos deuses – se lhes apetecesse, mas tanto quanto se sabe esses são gente sensata, até mais ver, e não lhes devem interessar, ao que se pensa, manejos em estilo doutor Mengele… Como diria um amigo meu com muitas leituras e reflexões, “Os planos, seja na vida seja na metafísica, ou na transvida ou na existência em geral, não se misturam”. Concordo com ele.
 “É possível, Nadja, que o maravilhoso, todo o maravilhoso, resida neste lado da vida?” perguntava o autor de “A chave dos campos” à sua apaixonada poética que a distracção do velho descobridor manteve sempre como platónica com resultados quase trágicos.
Possivelmente, quase de certeza que sim. Pois o outro mundo que nos escapa, escapa-nos por óbvias razões embora seja um belo projecto de vida tentar devassar-lhe os bosques e as montanhas, os desertos e os mares, a luz e a sombra do segredo que suspeitamos nele se acoite.
 As cidades reais continuam a existir deste lado, assim como os que as habitam. O fogo da imaginação é o nosso seguro penhor de que o melhor da noite é só ser noite, a noite, sem fantasmas nem assombrações, sem presenças etéreas ou substanciais de enganoso recorte, a noite com a luz das estrelas tal como o dia é o continente sob o sol e com tudo o que nos anima e conforta. Os grandes momentos das nossas mais belas horas. Sim, os planos não se misturam, não são susceptíveis de interpenetração.
 Pois o que voga no espaço exterior a seu tempo se conhecerá – quando chegarem os tempos adequados tanto de uns como de outros.



***

Nicolau Saião (Monforte do Alentejo, Portalegre, 1949).
Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha etc.  
Em 1990 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro Os objectos inquietantes (1992). Autor ainda de Assembleia geral (1990), Passagem de nível (1992), Flauta de Pan (1998), Os olhares perdidos (2001), O desejo dança na poeira do tempo (2008), Olhares perdidos (2007), O armário de Midas (2008), As vozes ausentes (2011), Escrita e o seu contrário (a sair). 
Prefaciou os livros Mansões abandonadas, de José do Carmo Francisco, Fora de portas, de Carlos Garcia de Castro, Estravagários, de Nuno Rebocho e Chão de Papel, de Maria Estela Guedes. 
Fez para a Black Sun Editores a primeira tradução mundial integral de Os fungos de Yuggoth, de H. P. Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana, Bichos (2005).
Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional Poetas na surrealidade em Estremoz (2007) e co-organizou/prefaciou Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril
Com Mário Cesariny e Carlos Martins, colaborou na efectuação da exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, levou a efeito a mostra de mail art “O futebol” (1995).  Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões). O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum Canciones lusitanas
Tem colaborado em espaços culturais de vários países.
Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de Mérito Municipal.







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