O pormenor está em
ouvir ainda que Breton defendesse um dia que o que era preciso, para chegar ao
último estádio da Obra – discretamente, falo por símbolos… - era um superior
mergulho na grande ausência, aquele estado de distracção fervilhante capaz de
levar o poeta, ou o fulano por extenso, pelo mar ou a planície de casas,
corpos, intensidades bruscas, sentimentos e esperas. O viandante
transformar-se-ia, assim, num telescópio – ou num microscópio, porque o grande
e o pequeno incluem-se e o que está em baixo é como o que está em cima –
navegando como uma escuna que recebesse no casco o embate dos habitantes dos
oceanos, os ventos de longe, o fulgor dos astros ainda inocentes.
Mas refiro-me a ouvir tudo. Os
ritmos secretos da Terra? Sim, mas parece-me que foi chão que deu uvas, a
acreditar em anos e anos de má literatura ou, mais grave, de más consciências
transbordadas em “gestos cívicos” a dar por um pau, amores próprios e alheios,
corridas pedestres. Jogging, como se diz. A verdade, aqui para nós, é que não
existe segredo que contemple, por banda dos deuses da escrita, o ligeiramente
ingénuo sujeito que se ponha ao trabalho: a corte celeste será então de loucos
ou de poetas absolutos e não seria demasiado pensar que Diana ou Artemisa, no
intervalo dos seus “affaires” normais, compusessem olhando em volta com certa
angústia uma ode, um alongado canto onde se mesclariam porventura os lamentos
por um planeta perdido, ou por uma terra distante, ou simplesmente uma
interrogação mais ou menos rendida de como se encontra a chave do mistério –
que segundo parece não entra todavia em nenhuma fechadura.
Digo para mim entredentes: passemos por esta rua, hoje o sol abriu
contra os muros das velhas casas claridades insuspeitadas. Entreguemo-nos por
alguns minutos às nossas selvagens alegrias. Façamos de conta que a literatura
não existe e que sentarmo-nos num banco, no antigo Jardim da Corredoura, não
traz imediatamente à lembrança uma página de Bulgakov, quando Margarita
contempla o despertar de Moscovo e em sua volta se movem estranhas influências
que iriam culminar no grande baile de Satã onde os sete palmos da existência e
as cinco dimensões teriam uma palavra a dizer. Mas a literatura existe e é
escusado querermos afastar as suas reminiscências.
Afastar é como quem diz, porque
não se dispensa a música ao longe seja qual for o sentido que se lhe dê.
Resumindo: quem iria dizer (pensar, o que vai dar no mesmo) que o Tio Brandão
era farda? Por estranho que pareça, ou não – e nisto os Liceus é que têm a
culpa - só por volta dos vinte e muitos soube que o nosso homem era oficial do
Exército. O que aliás não tem mal nenhum, acentuo. Pode ser-se militar quase
como se é pasteleiro ou director dum clube de críquete. E os futebolistas
canadianos que participaram com pundonor no campeonato do mundo no México, ou
coisa, não eram empregados-de-balcão, advogados, estudantes e por aí fora?
Vou então ficcionar por uns
momentos. E atribuir profissões desencontradas a este, aquele, aqueloutro. Por
exemplo: Tolstoi como jornalista no “Expresso”; Marco Aurélio como escriturário
em Queluz ou Campo Maior; Camilo como farmacêutico num estabelecimento em
Lisboa; Proust como árbitro de andebol nos momentos livres e, para ganhar a
sopinha, primeiro-oficial num município; Abelaira como gerente duma casa de
fados e, para espairecer, pintor de domingo nos intervalos das escritas; Eça de
Queiroz, odontologista em Montemor-o-Novo; Pessoa, evidentemente, funcionário
do FAOJ destacado em Sintra; Marguerite Yourcenar, professora de História em
Beja; quanto a Rimbaud seria excitante imaginá-lo por uns segundos aluno da
Faculdade de Letras alfacinha, assim como será difícil resistir a congeminar
Flaubert como médico de senhoras em Elvas ou Alenquer.
Se, como alguns excelentes
críticos pretendem, os axiomas são desmontáveis mais que não seja dentro das
suas cabeças, a suprema festa seria então abandonar os textos ao seu destino. E
teríamos: “O vermelho e o preto” por David Mourão-Ferreira; “A morgadinha dos
Canaviais” por Witold Gambrowicz; “Por quem os sinos dobram” de José L.
Peixoto; “Histórias do fim da rua” por Chateaubriand; o “Só” de Saint-John
Perse; finalmente, “A vida em Middlemarch” por Ramalho Ortigão.
Imaginemos mais um pouco: não
haveria maneira de se entretecerem as escritas? Assim, as frases iniciais de “O
deserto dos tártaros” poderiam enroscar-se a dado passo num trecho de “A
Cartuxa de Parma”; e o “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho” não
ficaria descabido, convenientemente acomodado, numa página de Jorge Luís
Borges. E o conflito moral de “Beau Geste”, antes e depois de ir para a Legião
Estrangeira? Pelo andar que as coisas levam não seria de estranhar vê-lo na
escrita sugestiva e ágil daquele romancista que ficou tão galhardo em
telenovelas.
Leio, dos “Princípios” de Eyrinée
Philalète, o décimo-terceiro e não porque tenha simpatia pelos números ímpares:
“Encontrando-se as coisas assim
dispostas, colocai o ovo onde estiver a vossa matéria nesse forno e dai-lhe o
calor que a Natureza pede, isto é, fraco e não demasiado violento, começando
aonde essa Natureza o deixou. Não deveis ignorar que a dita Natureza deixou a
vossa matéria no reino mineral e que, embora nós tiremos as nossas comparações
dos vegetais e dos animais, é necessário contudo que concebais uma relação
apropriada ao reino no qual está colocada a matéria que quereis trabalhar(…)”.
Se o romancista é alguém para quem nada está definitivamente perdido, como se
disse (com propriedade? sem propriedade?) o truque estaria porventura em
efectuar passages à tabac aos
sentimentos, às sensações, às alegrias e aos infortúnios. Como nas batalhas em
jogos de computador. Mas como os jogos são todos de vida ou de morte, quer
sejam no interior do núcleo (a palavra, leia-se) ou no grande exterior (ainda a
palavra, previno) deixemos o Norte a norte, o sueste a Sueste e os rios
correndo franca e limpidamente para a sua foz.
Raul Brandão era pois militar?
Era militar e ainda bem – e nem sequer lhe foi preciso, como a Mac Orlan, ter
ido para os aquartelamentos legionários no deserto. Foi o que no seu teatro
próprio melhor lhe quadrou (porque foi dess’arte e não doutra maneira) de resto
parece que ao mandar os taratas efectuar “esquerda ou direita volver”
acrescentava frequentemente “se me fazem o favor”. Reminiscências, dirão os
mais experientes em tratos místicos, dos hortos de uma certa Arcádia, da pureza
das areias argelinas ou da serenidade das planícies de Saskatchewan.
Não sei, não quero opinar e além
do mais as partidas é como se as tivéssemos, já, todas ganhas.
Aqui ou em Sidi-bel-Abbès
Seria fácil imaginar um tigre a comer erva,
assim como um cordeiro a engolir a pitança. Todavia… Todavia estou a
lembrar-me, ao calhar dos minutos, daquela célebre hipótese de Mark Twain: “Se Moisés não tivesse existido, teria
existido decerto outro indivíduo com o mesmo nome”. E funções,
evidentemente, acrescento de minha lavra. Aqui, entra Chesterton em cena,
peso-pesado das metafísicas ligeiras mas reconfortantes: “Eu nunca minto, a não
ser que seja absolutamente necessário”. Pois, é como na História não reciclada
pelos descendentes ou herdeiros de Walt Disney. Velha mania de ocupar os
lugares todos, de preencher o tal
vazio assustador dos metafísicos? Ou apenas sensatez suficiente para que
saibamos, definitivamente, que onde está um baú não pode estar uma cadeira de
baloiço, assim como onde está um inteligente não podem estar sete idiotas?
Em trocos miúdos: o que se aponta é de facto para o simulacro da “hybris” revista pelos sucessivos
concílios. Esses tais que nos quebraram a cara como o faria um soco de
pugilista desempenado, sem que no entanto em simultâneo nos tratassem da alma
que como se sabe se multiplica nas celestes moradas em graus de aperfeiçoamento
singular. Questão intemporal de ascensões no etéreo, digamos, ou de quedas
corporais. Ou, melhor ainda, o apelo fascinado de certos mundos paralelos que
nos oferecem a ciência e a religião oficializadas, certas paisagens serenas ou
infernais cuja traça se ergue para logo se desmoronar, como em Hollywood.
Aqui entre nós, que pouca gente nos escuta: quem é que não sonhou ainda
em mudar de rota, uma vez por outra, mesmo sabendo que o ser-se isto implica
necessariamente não se ser aquilo, sendo a Vida como é (ao que alguns dizem com
sensatez maldosa) não propriamente uma escolha mas a impossibilidade de se
terem dois destinos?
Com o que, pelo que, conclui-se sem mais demoras que um tigre a comer
erva só nos anúncios da margarina Custódio ou do automóvel Tortilha. Ou nas
estórias da Carochinha que os malabaristas da coisa pública, finamente, nos
distribuem pelas rádios e têvês.
Digamos com certa inocência, como
nas doces festas de anos de antanho: saibam lá vossências que há pouco tempo
atrás um sábio que é também robusto memorialista – trata-se de François Jacob –
assinalou que a existência mais parece coisa de biscateiro que de engenheiro,
mesmo genético. As somas eventuais não apagam nem destroçam e muito menos
repelem o já construído. É no género do “Blade Runner” ou dos fabulosos
bricabraques de Tinguely. Coisa de truz – e eu fico-me um bocado a rir das
tiradas dos que compenetradamente afirmam nos media que estão muito atentos e um pouco trémulos ante a
possibilidade de se multiplicarem em provetas os hitlers, os stallones e outros
hermanjosés. Mas não foi sempre a sociedade, além da ciência e das técnicas que
lhe estão nos arrabaldes, uma perigosa brincadeira? Se no próprio laboratório
do Éden, onde os elohins oficiavam… - mas deixemos isso por ora.
Creio que fará sentido concordar
com Thomas Mann quando este refere, nos intervalos do seu sonho montanhês, que
ao nível das concreções superiores existe como que uma actuação
alquímico-hermética do coração humano, uma renovação de todas as fibras do ser
que nos força a ir em busca do conhecimento capaz de nos fazer compreender que
os passeios pelas margens dos rios, as idas ao cinema ou ao circo de mão na
mão, o acordar no azul penumbroso dum quarto às três da tarde ou às quatro da
manhã são o equivalente de coisas que a mística só pode explicar de forma
aproximativa. (Dantes agia-se de forma expedita e suave: calabouço com eles e
uma eventual passagem pelas brasas). E talvez faça sentido, também, meditar
nesta frase de Nietzsche que, como num espelho mágico, nos diz lá do fundo: “Há
alguns que nunca se tornam doces e apodrecem mesmo no Verão. Só a cobardia os
sustenta no ramo”. E antes de entrarmos no fato bem passado da angústia
existencial, vistamos por baixo uma camisola barata de senso comum: “Quando eu tinha vinte anos, diziam-me:
hás-de ver quando tiveres quarenta anos! Pois bem: tenho quarenta anos - não me
mostraram nada”. (Benjamin Péret).
Venham cá dizer-me que a
metafísica é uma serena imanência! Não os acreditarei, com mil bombas. Seja no
masculino ou no feminino. Porque os deuses têm cara de tarráqueos nestes tempos
que vão correndo. Quer dizer; antes de subirem aos céus experimentam em nós os
seus destinos; não falando - porque isso dá excomunhão mais ou menos
democrática - no cultivo intensivo e na intensa proliferação de santos, aspecto
que não será de desconsiderar. Na verdade é tudo uma questão de símbolos.
Eis senão quando que Gilgamesh,
por causa das vozes de sempre (já com Joana d’Arc irá ser alegadamente o mesmo
incómodo) se decidiu a tomar da capa e do porrete e abalar para o deserto. Ia
em busca da flor azul, como nos contos de fadas? Parece que não, o que estava
em causa era tão só a imortalidade e não a saúde e a cura por extenso (úlceras,
cegueira, tiro de pistola no flanco, enfarte de miocárdio). E então deu-se que
Enkidu, ser primordial e selvático, inocente como um padre cura do breviário,
lhe apareceu pela frente – os braços peludos de atleta, os olhos de vedeta das
matinés adolescentes, a naturalidade de futebolista ferrabraz, a figura talhada
ao jeito das fitas de Spielberg… e foi o coup
de foudre conforme reza nas tábuas de barro. Coisa mística, de resto, como
nos conta a seguir um velho papiro (apócrifo?). Saborosa e interdisciplinar.
Contudo…
Contudo, como já cá se ficou
sabendo, os cordeiros não comem carne e os tigres muito menos tasquinham a
ervinha tenra. Gilgamesh, algo ingénuo e estupefacto, viu aparecer de chofre
coisas adustas no corpinho empolgado de Enkidu: tinha de se render à evidência,
a metafísica às vezes fica claramente ultrapassada pelas circunstâncias do
momento em tempo real, a filosofia e os textos pré-diluvianos são muito bonitos
mas não servem, de todo, em determinadas ocasiões: Gilgamesh, com a
personalidade enrodilhada, as roupas num farrapo, começou a perceber que Enkidu
não era tão angélico e abstracto como nas ficções, mais parecia um gigolo do Parque Mayer, a braguilha
desapertava-se-lhe em alturas muito impróprias e um arfar suspeito punha-se a
trabalhar como um motor de avioneta. Gilgamesh concluiu então que os mitos são
coisa fina mas não safam a virtude de um homem de brios, co’os diabos. Tratou,
rapidamente, de se pôr a andar enquanto dizia de si para si que é inútil um
zé-maria enlear-se no golpe da mágica/mitológica compreensão absoluta com um
zé-antónio, porque então o zé-antónio transforma-se noutro zé-maria e tudo
volta ao princípio.
Circular, como nas fábulas
iniciáticas. De sorte que o nosso herói, já com a escolaridade pessoal toda
empinadinha, aprofundou-se finalmente pelo rosto da deusa, que mais adiante no
relato o esperava a pé firme. “Será este pois o sentido da Estória que se conta
depois do repouso do Senhor, quando Adão viu, entre assustado e divertido, o
pirilau crescer com denodo ao contemplar o fruto da sua costela?” perguntará,
do lado, o leitor com ironia.
Na verdade, o andrógino inicial é
coisa com certa piada, talvez, mas só faz sentido nos contos de proveito e
exemplo mediante os quais se chega a conclusões diametralmente opostas
consoante se for anjo ou demónio. Enoch sabia disso (e era esta a sabedoria dos
antigos escribas, que só por irrisão se crismariam de hipnotizados. Adiante). O
que realmente faz brilhar as pupilas da existência, essa existência séria que o
grande Humboldt tão bem escrutinou, é o facto de haver opostos com a autonomia
que dá origem às novelas surpreendentes. De resto, não. E foi nisto certamente
que o Alfa-Ómega pensou, ele que é princípio e meio e parece que não tem fim e
que, experiente até mais não, tem para além dos limites a legítima lábia e o
conhecimento da matéria.
Mas seria, com franqueza, de
esperar coisa diferente? Como dizia outra vez Chesterton, depois de ter
relanceado a lady do distrito de
Belgravia com olho maroto, “Os amores platónicos, como todos os tónicos, são
apenas um estimulante”. Se não acreditam, vão perguntá-lo a Gilgamesh.
À Deusa, quer-se dizer…
Sabe-se que há pessoas felizes - segundo me
confidenciou o meu assistente de bordo, que por coincidência crepuscular ou madrugadora
ainda é parente do daimon do pensador
grego - que colhem os seus textos (poemaria sentimental ou quotidiana,
versalhada esotérica com e sem rima, naco de prosa ou entradazinha diarística
relativamente sobranceira ou merencória) ao deambular pelas ruas, no escuro dum
parque, à porta duma estalagem ou na dulcíssima e profícua casa-de-banho duma
amante ocasional ou dum consistente companheiro de estúrdia.
Assim como quem apanha, de passagem, no estrépito gratificante de um bar
de luxo, meia-dúzia de amêndoas torradas ou um punhadinho de ervilhanas
descascadas ao passar pelo balcão a caminho duma mesa onde os convivas o
esperam com as peças de resistência.
Pelo menos é o que se extrai, se bem lidos, da frequentação de alguns
autores e de matérias de aturado estudo de costumes, de enviesados momentos de
profunda criação (alheia) que nos fazem, nos melhores casos, salivar com
apetite.
Dizia Guillaume de Poitiers, numa bela tarde que também pode ter sido
noite ou manhã, que fizera um poema de
nada. Por seu turno, Saint-John Perse afirmou algures que a sua aspiração
maior era fazer um poema sobre nada.
Seria o nada que é tudo como artilhou
o sagaz e melancólico portuguesinho de Durban (South África)? Mas é claro que
por detrás destas pequenas e aparentes boutades
vive e sobressalta-se uma profunda contemplação do Universo das probabilidades,
no género das que Bernard Trevisan punha no seu tempo em equação.
E, detalhe profundamente contemporâneo mas conjunturalmente inquietante
embora sem metafísicas, tende imensos cuidados vós que me ledes: se mal vos
precatardes, pelo descuido dum dedo podereis mandar interactivamente para a
inexistência definitiva e sem piedade um lindíssimo trecho que acabastes de
escrevicar, o que pode dar choro e ranger de dentes sem ponta de literatura
dramática. Em tudo terá também de haver, sem desdouro, um pouco de ternura!
A verdade é que, nos tempos mais
chegados, por mor da modificação de usos societários (?) sai-se para o lirismo
como se sai para a caça. E, conforme me esclarecem, isso dá-se tanto em Chicago
como em Bruges, tanto em Edimburgo ou Lyon como no Funchal, no Porto, em
Nápoles, em Lisboa. Serão aspectos da mundialização, do aquecimento global dos
corações e dos cérebros postos à prova pelos que traçam (os Bielderbergs? os
Opus Dei? os aqueles que nem é bom nomear para não se ficar feito em estilhas?)
as nossas folhas de destino sobre o planeta?
(Antes de passar para outro continente, continuando todavia a juntar
alhos e bugalhos, permitam-me entretanto que proceda a alguns agradecimentos
completamente filhos de uma comoção muito aparentada com certa inocência que me
foi escapando devido à safra dos anos e às más companhias que sempre nos
estorvam antes de as pontapearmos com decisão: a Axel Munthe por ter escrito
tudo o que escreveu; a Mikhail Bulgakov por não ter escrito o que queriam que
escrevesse; a Jean Husson por ter andado pouco com os gandulos das letras com
quem queriam aparentá-lo; a Silver Kane por ser também Enrique Moriel e
Francisco González Ledesma, além de possivelmente outros na vasta pradaria dos
seus afectos; a Alain Decaux por ter narrado, em directo e de viva voz na
televisão, todas as suas surtidas históricas que só depois, razoavelmente mais
tarde, iria passar ao papel – feito notável que só um herói das letras
conseguiria; a Sherlock Holmes e Poirot por terem existido; a Conan Doyle e
Agatha Christie por não terem existido, excepto com a lupa e o cachimbo e o
bigodinho roubados às suas criaturas; a Cézanne por ter sido apenas pintor; a
Schubert por ter sido apenas compositor e músico; a Malte Laurids Brigge por
não ser nem um a coisa nem outra; por último, mas não finalmente, a Rilke por
ter sido tudo inclusivamente secretário particular de Rodin, que como poderia
escrever outro companheiro da corda não entrava nesta estória; e a alguns
ibéricos e lusitanos por o terem continuado a ser, não sendo alanos ou mouros).
Mas dizia eu que se vai saindo
para o lirismo como se sai para a caça. Nos últimos anos de civilização certos
quadrantes aumentaram extraordinariamente o apuro da sua pituitária espiritual.
A mistura em partes desiguais de carne de primeira e de segunda, ou mesmo de
terceira ou quarta, vem permitindo uma transubstanciação que muitos julgariam
inimaginável. Os gourmets da
literatura não são, evidentemente, todos do mesmo género. Há felizmente nuances compensadoras. E se é um facto
que se subdividem em dois grandes sectores – o escarlate e o cinzento, sendo o
primeiro de tendência devoradora e o segundo raciocinadora – isso não implica o
desaparecimento dos que vêem na poesia algo mais que uma tarefa ou uma
fatalidade. Por enquanto – o panorama pode mudar.
Há contudo variações insuspeitadas e não estou a lançar uma indirecta,
garanto, àquele ensaísta genial que uma vez vi ao vivo numa sessão em Cascais e
que afirmou com pujança que nunca nada tinha sido criado no programa do Bernard
Pivot, o que não o impediu de um mês depois lá ter estado a convite, de face
risonha e radiante e engrolando seus conceitos lusos que ora se engelham ora se
distendem como se fossem bonecos insufláveis.
Há o lirismo para comemorações patrióticas progressistas ou
casamenteiras de estadão, para desforços conservadores, para amores infelizes,
para gestos sociais diversos; o lirismo circunspecto, diríamos universitariante, em timbres secos e
escanhoados, preciso e conciso como o relatório de um conselho de
administração, ou o mais exaltado ainda que científico,
sendo este uma variante algo descabelada do anterior. Digamos – mais pão pão, queijo queijo.
Segundo julga saber-se, há poemas que não convém serem deglutidos de
manhã: pesam no bucho, criam soluços e azia. De modo que é mais aconselhável
tomá-los à tardinha, quando os apetites já se locupletaram com meia dúzia de
canalhices bem rimadas ou uma pratada de sonetos à marinheira ou com todos os matadouros.
A verdadeira vida
está ausente, dizia Rimbaud. Ausente, no entender de alguns
gastrónomos que por vezes também versejam – gastrónomos premiados se calha
pelos salões de jantar letrados - como as narcejas, as galinholas, as lebres e
as perdizes. A caça espiritual ainda
será, se os fados ajudarem, uma realidade peculiar.
Em certas alturas, o pesquisador-amador das várias espécies poéticas
está particularmente inclinado para a amável prática desta salutar manducação:
de alma à bandoleira, com boas reservas de cartuchos de escolaridade
obrigatória no cinturão, facanejo de aço carbónico na ilharga, ei-los que
partem para os lugares apropriados.
Nos montes e valados
distinguem-se então minúsculas figuras movendo-se ora ágil e graciosamente, ora
mais pesadamente; uns mais ardilosamente que outros lá se acocoram, armadilham,
tocaiam, simulam. E finalmente estendem a presa com dois ou três certeiros
balázios.
No fim, chegado o crepúsculo,
aconchegadas as matilhas no palheiro ou no pátio, ao redor da grande mesa de
madeira de pinho grosseiro ou de carvalho mal desbastado, abancam os amantes
desta actividade venatória. Todo o dia o sol lhes ondeou sobre as frontes,
queimando-lhes as faces, crestando-lhes os olhos e a vivacidade. Uma paz muito
suave os prende agora à fraternal roda de congéneres. Da cozinha já chega até
aos narizes dos convivas o cheiro picante dos pitéus: Camões guisado, Lorca
salteado, Antero com rodelinhas de paio, Neruda com alcachofras na caçarola,
Pessoa com vinho grego, Régio frito com batatinhas às rodelas, Pascoaes assado
com uma gota de limão prudente. (Eugénio, por distracção da cozinheira,
primeiro ficara meio cru, depois demasiado passado).
No fim virão as sobremesas
diversas: vates novos, postos em remolhão de vinho do Porto durante horas, a
embeberem-se, para fazerem contraste com as arrufadas de Coimbra e as queijadas
de Sintra espirituais, com sabores e com doçuras a dar para o selvagem e o
inusitado (e que até requentadas calam no gosto, entrada a hora da ceia).
Lá fora crescem luzes no céu:
Sírius, Canis Minor, o sete-estrelo, o brilho nostálgico de Vega que na Caldeia
inspirava magos e arquitectos (talvez, como alguns cá, traçando por vezes seu
versinho no fim dum lauto repasto).
Se o tempo é de grilos, ralos e
cigarras ei-los que cantam ajudando à festa. Mas sempre, por sobre a massa pura
das árvores e o negrume palpitante da noite estrelada, se expande um ruído
difuso, amplo, que conviria ser – para que tudo estivesse a carácter – o
filosófico rolar das esferas do universo.
Seja como for, tenho para mim que as espécies poéticas ainda irão estar
intensamente noutros locais privilegiados e privilegiadores – e que
possibilitarão menos canseira - as grandes superfícies comerciais aprazíveis e
acolhedoras onde por ora praticamente só se mercam produtos para bater: romances, novelas, robustas
casquinadas políticas, memorialismo relativamente pindérico.
Mais frescas e nutritivas (porque sujeitas ao congelamento eficaz e
benéfico que lhes preserva os elementares), mais baratas e abundantes, terão
ademais o aliciante do diploma e certificado de garantia. É aliás assim que tem
de se proceder em sociedade organizada e moderna. Claro que a caça pode continuar,
deve continuar, ninguém pretende hostilizar a surtida cinegética. No entanto dá
obviamente um certo conforto saber-se que há nas bancas, estimuladas pela
tecnologia, espécies prontinhas para a festança quando calham de ser
subitamente desejadas.
Enfim, será um quadro apropriado onde poderá talvez, até, achar-se um
bom naco de felicidade. Havendo, mesmo, lugar para as surpresas porque
existirão concerteza aspectos não contemplados nos manuais de civilidade
obrigada a mote. Poderão inclusivamente propor-se, pelo seguro, interessantes
variações: sonetilhos escalfados, elegias torradinhas, odes com mel e pinhões,
haikais empapados em uísque ou no proverbial saké para os puristas. O espanto
ganhará o seu justo lugar na sensibilização das línguas – mesmo mortas –
através de uma ou outra distribuição fortuita mas enquadrada de provérbios e
redondilhas.
Entraremos no domínio da poesia
quase perfeita, ora de cariz labirintiforme ora de raiz levemente mística. Às
tantas, subindo verticalmente na bolsa de valores da existência como as pirites
neo-zelandezas ou o café do Calulo.
Um tom rosado irá paulatinamente cobrindo as faces outrora lívidas dos
cidadãos alfabetizados.
E tudo findará, evidentemente, por uma poderosa manducação geral só
detida nos limites da antropofagia.
Bastante épica.
Suponhamos, não por traquinice mas muito a
sério, que numa quinta-feira um artefacto voador alienígena (um dos chamados,
na Bíblia, “glória do Senhor” e, nos
anais quíchuas, “serpentes voadoras” devido
à forma alongada da sua fuselagem), por isto ou por aquilo pousava num
arrabalde de Santarém, de Lamego, ou mesmo na Buraca ou em Linda-a-Pastora e,
enquanto os seus tripulantes tratavam dos seus afazeres localizados, eram
avistados durante quarenta e oito minutos (horário TMG) por habitantes locais,
a saber: um membro da secção portuguesa dos Alcoólicos Anónimos; um sacerdote
dominicano; três futebolistas de momento a jogarem nas reservas do respectivo
clube; uma escritora doublée de
cientista; dois agentes da autoridade acompanhados de um autuado; um jornalista
de um órgão de tiragem média; dezasseis ovelhas e o respectivo cão (o pastor
dormia beatificamente sob uma árvore ou junto a um muro e não se apercebera de
nada); duas crianças e três adolescentes, incluindo um telemóvel e um boneco de
pano; oito passeantes diversos sem estatuto definido por não interessar a esta
crónica.
Perplexos, nos sítios e localidades respectivas, todos eles se punham
mais ou menos coerentemente a relatar o avistamento, dando pormenores a quem os
quisesse ouvir e os não mandasse bugiar logo a partir da quarta estrofe…
O periodista, que o chefe-de-redacção tinha na conta de pessoa séria e
pouco dada a tratos vínicos, ainda colocava por mansuetude companheirona do
superior, na terceira página, uma local
em 16 linhas na qual, um pouco encabuladamente, falaria num caso curioso, num facto que
intrigou observadores e lengalengas que tais, sendo o assunto rapidamente
esquecido e mergulhando, como milhares de outros, no vasto cafarnaum do
enigmático e do misterioso para pessoal com alguma imaginação e sentido do
mundo para além dos quatro olhos e dos sete sentidos.
Mas suponhamos agora que por fas ou por nefas o assunto era tomado a sério por alguns grupos da
intelectualidade dominante que em geral ciranda nas veredas do poder. E que o
assunto ganhava, nos círculos certos, certo destaque e certo crédito – tanto
mais que nos últimos anos entidades responsáveis vincadamente oficiais ou mais
discretas como entre outras a Sodalitium Pianum (serviços secretos da ICAR), a
Agencia Nacional de Segurança (NSA), o Deuxième Bureau e o Inteligence Service
se têm debruçado parece que proficientemente sobre esses curiosos factos em ordem a tentarem perceber o como e o porquê de
tais intrigantes casos.
A não ser dum ponto de vista
académico – isso não aqueceria nem
arrefeceria absolutamente nada. Quando muito deixaria apenas nos cérebros e
nos relatórios dos operacionais uma congeminação, um raciocínio, talvez um leve
zumbido de crença ou de descrença intelectual ou filosófica neles e nos
superiores, talvez um pedacinho de inquietação na alma dos mais argutos ou
temerosos ou perspicazes (ou desconfiados), porque ficariam com a pedra no sapato e a pulga atrás da orelha, como
pitorescamente sói dizer-se.
Na verdade, que poderiam esses
beneméritos fazer, resolver? Dizer aos quatro ventos que afinal, pelas
conclusões competentíssimas tiradas pelos grupos de trabalho (as task force como usam ser apelidadas)
andava gente realmente pelos céus, que poisavam quando queriam e deixavam
contactos se lhes apetecia com iluminados (posteriores) e delegados (santões)
se lhes dava na bolha modificar ou incrementar localmente certas regiões e
comunidades? Quem lhes daria crédito? Quem os levaria a sério? E se levassem,
cadê o resultado? Poderiam pedir responsabilidades aos viandantes do cosmo por
entrarem sem visto nem passaporte por qualquer fronteira a dentro? Por gerarem
filhos numa moçoila aprazível? Por levarem de viagem uns tantos parentes da mãe
Terra? Por…
Mas creio que já todos
perceberam, é escusado ser mais redundante ainda.
Assim, num outro plano, já se
sabe que são estorietas de ficção científica escrita ou cinematográfica, ou da
legenda dos séculos, os relatos de cães com cabeças de homens ou de homens com
cabeças de tigres. Ou de mancebos com asas de andorinha, de águia ou de
pterodáctilo, ou de senhorinhas com cauda de pescada ou de espadarte. De acordo
com o que nos informa a ciência de ponta, pelo menos até agora, a semente do
homem não é susceptível de se misturar com a do animal sendo a inversa também
muito verdadeira.
Esses sucessos, de acordo com os melhores autores, só estão dentro das
possibilidades dos deuses – se lhes
apetecesse, mas tanto quanto se sabe esses são gente sensata, até mais ver, e
não lhes devem interessar, ao que se pensa, manejos em estilo doutor Mengele…
Como diria um amigo meu com muitas leituras e reflexões, “Os planos, seja na vida seja na metafísica, ou na transvida ou na
existência em geral, não se misturam”. Concordo com ele.
“É possível, Nadja, que o maravilhoso, todo o maravilhoso, resida neste
lado da vida?” perguntava o autor de “A chave dos campos” à sua apaixonada
poética que a distracção do velho descobridor manteve sempre como platónica com
resultados quase trágicos.
Possivelmente, quase de certeza que sim. Pois o outro mundo que nos
escapa, escapa-nos por óbvias razões embora seja um belo projecto de vida
tentar devassar-lhe os bosques e as montanhas, os desertos e os mares, a luz e
a sombra do segredo que suspeitamos nele se acoite.
As cidades reais continuam a
existir deste lado, assim como os que
as habitam. O fogo da imaginação é o nosso seguro penhor de que o melhor da
noite é só ser noite, a noite, sem
fantasmas nem assombrações, sem presenças etéreas ou substanciais de enganoso
recorte, a noite com a luz das estrelas tal como o dia é o continente sob o sol
e com tudo o que nos anima e conforta. Os grandes momentos das nossas mais
belas horas. Sim, os planos não se misturam, não são susceptíveis de interpenetração.
Pois o que voga no espaço
exterior a seu tempo se conhecerá – quando chegarem os tempos adequados tanto
de uns como de outros.
Nicolau
Saião (Monforte do Alentejo, Portalegre, 1949).
Participou em mostras de Arte Postal em
países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e
Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como
Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada,
Tiblissi, Sevilha etc.
Em 1990 a Associação Portuguesa de
Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro Os objectos inquietantes (1992). Autor ainda de Assembleia geral (1990), Passagem de nível (1992), Flauta de Pan (1998), Os olhares perdidos (2001), O desejo dança na poeira do tempo
(2008), Olhares perdidos (2007), O armário de Midas (2008), As vozes ausentes (2011), Escrita e o seu contrário (a sair).
Prefaciou os livros Mansões abandonadas, de José do Carmo
Francisco, Fora de portas, de Carlos
Garcia de Castro, Estravagários, de
Nuno Rebocho e Chão de Papel, de
Maria Estela Guedes.
Fez para a Black Sun Editores a
primeira tradução mundial integral de Os
fungos de Yuggoth, de H. P. Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e
ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana, Bichos (2005).
Organizou, coordenou e prefaciou a
antologia internacional Poetas na
surrealidade em Estremoz (2007) e co-organizou/prefaciou Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril.
Com Mário Cesariny e Carlos Martins,
colaborou na efectuação da exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e,
com João Garção, levou a efeito a mostra de mail art “O futebol” (1995). Concebeu, realizou e apresentou o programa
radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões). O cantor
espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum Canciones
lusitanas.
Tem colaborado em espaços culturais de
vários países.
Em 1992 o município da sua terra natal
atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre
comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a
medalha de Mérito Municipal.
Contacto:
nicolau49@yahoo.com.
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