Com quem o artista contemporâneo quer compartilhar seu mundo? Dedica-se a
quê, em seus experimentos estéticos? À compreensão de si mesmo, de sua complexidade
existencial, ou simplesmente anseia por uma condição que lhe coloque acima de sua
própria arte? Impossível não pensar em tais aspectos ao contemplar o universo criativo
de Hélio Rola. Há ali um acentuado abismo que o separa dessa arte que já se desgasta
nem tanto por repetição, mas antes por falta de substância.
O que encontramos em galerias, bienais etc., e que atende por arte contemporânea,
não passa de um estímulo ao desconforto provocado por uma sociedade baseada no alheamento,
na cisão entre vida e arte, privilegiando o adorno e a mais abjeta disfunção. Evidente
que os artistas são os grandes apologistas desse desconforto, não como críticos,
mas antes como entusiastas de sua irrefletida propagação. Mudamos em tudo, pelo
mais simples sinal dos tempos, mas o artista contemporâneo segue fiel ao desprezível
ornato, deslocando apenas ocasionalmente o ponto de convergência de sua percepção,
ou seja, o enfeite tanto pode ser a obra como, hoje preferencialmente, o artista.
Por vezes parece que o artista contemporâneo disputa com sua obra o delirante direito
de combinar com a decoração do ambiente a que se submetem.
Se há um desconforto quando estamos diante de uma arte assim, por outro lado
se verifica uma empatia imediata com a alegria que esplende da obra de Hélio Rola.
Trata-se de um contentamento, de uma identificação vigorosa com alguém que conversa
conosco, que declara suas inquietações, que se move, participa da vida. E o faz
sem perder o acento crítico ou o humor, sem enveredar pelo entretenimento ou pelos
dilemas angustiados da criação, respectivamente. O que se passa é que Hélio Rola
está tão repleto de humanidade que não há como não compartilhá-la. É disto que somos
feitos, afinal: humanidade. Não se trata do artista ou de sua obra, mas sim de uma
semelhança compartilhada, que busca um diálogo aberto com quem se aproxime.
Em texto para o folder da mostra de pinturas de Hélio Rola no MAC-USP
(São Paulo, 1996), chamou atenção o crítico Roberto Galvão para um componente na
poética deste artista que funciona como um “escudo brilhante que reflete o mundo
que nos envolve e, ao refleti-lo, transforma-se em imagem conscientizadora e apavorante
sinal de alerta capaz de mexer nas consciências”. Temos aí a idéia da arte como
representação, ao mesmo tempo em que age como catalisador de uma reflexão acerca
da relação entre ser e tempo. Nem o artista nem o expectador se encontram fora do
mundo, ou habitam mundos distantes entre si, como se costuma compreender em visitas
aos espaços públicos da arte contemporânea.
Não é diferente o que nos propõe Hélio Rola desta vez, com a mostra Cidades que se apresenta no MCC-Dragão do Mar (Fortaleza, 2005). Acentua o entendimento múltiplo em torno do “escudo brilhante” aludido por Galvão, ou seja, a arte é tanto o que se volta sobre si mesmo quanto o que evoca reparos, meditações, discernimentos e, sobretudo, expande os limites de nossa percepção da realidade. Para tanto, incide de maneira vertiginosa, sobre a pele dessa geografia humana, descarnando-a, e sendo o próprio reflexo descarnado de seus conflitos, acentuando o quanto há de imitação e desencanto naquele espectro em que fixamos nosso juízo acerca da cidade, do espaço público de convivência, dessa demografia exequível com que sonhamos todos e raros se animam a fazê-la existir.
Tudo aquilo que o artista já alertava a princípio da década passada conforma
hoje uma realidade ainda mais dilacerante, espécie de engodo histórico, a maneira
como deixamos aflorar nosso lado sombrio, violento, desagregante. E reflete isto
em um recorte diacrônico que nos permite compreender as modulações de um paraíso
perdido, de uma condição dissipada por inação, o que acabou gerando um rancor generalizado,
uma já clássica má vontade de recuperar o que há de humano no homem. A mostra conta
com o amparo mágico da estrutura arquitetônica do espaço do MCC. São duas amplas
salas entrecortadas por um espaço exterior de circulação, como se fossem as duas
margens de um rio – possivelmente o rio dos seres a que se refere Dante na Divina
Comédia. Naquele entremeio está toda a aposta de Hélio Rola, posto que situou
sua poética no limite desses dois extremos, de tal maneira que, ao invés de Cidades,
esta mostra poderia muito bem ter por título Intervalos.
E que permeio deve ser considerado? Nossa relação a diário com o tempo, esse
dilema enleado entre passado e presente, ambiente propício a frustrações e arrependimentos.
Aí estão as duas cidades propostas por Hélio Rola: a de ontem, a de hoje. Seu humor
cortante impede que se manifeste qualquer forma de saudosismo. Penúria e perplexidade
fazem parte de nossas vidas. Há uma cidade branca, arejada, que reflete um momento
idílico e ao mesmo tempo prevê distorções; e uma cidade negra, sufocante, que incapacita
qualquer esperança. As duas margens de um mesmo rio estimulam um baralhamento de
idéias, quando pensamos nos recursos técnicos que o artista utiliza para provocar
sua estimativa. Se a margem branca, que representa aquele alerta aludido por Roberto
Galvão, se mostra em grandes painéis de acrílica sobre tela, a contraparte reúne
uma mescla de técnicas (escultura, collage, óleo, instalação, acrílica, vídeo, fotografia
animada) que dão sinal de uma sufocação, e cavam a terra sob os pés do expectador.
O artista Hélio Rola (Fortaleza, 1936) sempre teve presente em si uma atuação
no cotidiano da relação entre arte e vida. Pensemos nos painéis urbanos que o grupo
Aranha propagou pela cidade, em sua obstinada ação através da arte postal e hoje
atualizada pelas intervenções diárias através da Internet, ou no mural que efetuou
para uma instituição mexicana, ou mesmo na atividade como gravador que já lhe rendeu
mostra na Alemanha ou a edição completa de números das revistas Alforja (México),
Matérika (Costa Rica) e Agulha (Brasil). Trata-se de um conjunto de
obra que define a essencialidade estética de um artista. Contudo, importa aqui destacar
que esta mostra soma quase que à exaustão todos os seus esforços por evidenciar
um mundo que perdemos, por nossa inapetência.
As duas margens desta exposição, as duas Cidades de Hélio Rola, são
um paralelo, ético e estético, acerca do que o homem conseguiu provar a si mesmo
até o momento, onde naturalmente atua o entendimento de feitos e efeitos da criação
artística. A multiplicidade de técnicas a serviço de quê? Para que insistir em tantas
maneiras de dizer que o homem é um animal falido do ponto de vista social, que o
convívio se limita a perseguições, conluio, estratagema, enfim, que o homem não
sobrevive sem um artifício, que esta é sua habilidade essencial? Ontem ou hoje,
a cidade é o tablado dessa articulação humana, realidade postiça, recurso engenhoso
de simplesmente escapar vivo. O que Hélio Rola indaga com toda a força de seu ser
e de sua arte é: e se sobrevivermos, a que estaremos sobrevivendo?
*****
Agulha Revista
de Cultura
# 44. Março de 2005. Página ilustrada com obras de Hélio Rola (Brasil), artista
convidado desta edição especial de ARC.
Organização a cargo de Floriano
Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | Hélio
Rola
Agradecimentos a Mhelena
Castro
Imagens © Acervo Resto do
Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais
da Agulha Revista de Cultura, assim
estruturado:
S1 | PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC
FASE I (1999-2009)
S2 | VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial
de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia.
No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o
título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins.
Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de
Floriano Martins e Márcio Simões.
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