Clarisse Abujamra de todos os palcos. A boa conversa
com esta notável mulher reflete a luz que emana de seu corpo em movimento: na dança,
na coreografia, no teatro, na representação. As referências familiares, sempre postas
em destaque pela crítica, não são necessárias. Clarisse tem uma envolvente luz própria,
com matizes valiosos que sabem lidar com o estúdio e palco, cinema, televisão e
teatro. No cinema, Os anjos do Arrabalde (Carlos Reichenbach, 1987), Gaijin
– Ama-me como sou (Tizuka Yamazaki, 2005) e Chega de saudade (Laís Bodanzky,
2008). A televisão a conhece por telenovelas como Escrava Isaura (1976),
Os ossos do Barão (1997), Maria Esperança (2007), além das minisséries
Chiquinha Gonzaga (1999), Presença de Anita (2001), e JK (2006).
Clarisse nasceu em São Paulo, em 1948. A essência de seu trabalho, da vibrante e
intensa manifestação da arte em suas veias, vem do teatro, seja da dança ou da dramaturgia.
Ainda jovem mudou-se para Nova York, onde foi aluna da bailarina e coreógrafa estadunidense
Martha Graham (1894-1991). Na dança, não atuou somente como bailarina, mas sim como
coreógrafa e chegou a montar a Companhia Teatro Brasileiro de Dança. Teve um papel
de destaque na formação da dança moderna no Brasil, sobretudo através do Ballet
Stagium. Da dança passa a fazer coreografia para peças de teatro. Foi uma das precursoras
de um gênero que mesclava as duas atividades, o teatro-dança. No teatro destaca-se
como atriz em inúmeras peças, tendo sido dirigida por nomes como Flávio Rangel,
Antonio Abujamra e Antunes Filho. Atualmente tem em cartaz uma peça-show, Antonio
– Da tua tão necessária poesia, em que se apresenta ao lado do pianista Ivan
Abujamra. Este nosso diálogo é um desses preciosos frutos do acaso objetivo. No
instante seguinte em que nos conhecemos tínhamos já o coração afinado e lhe sugeri
uma conversa para a Agulha Revista de Cultura.
Ela não sabia que seria a última entrevista nossa, da revista. Um destaque que é
um presente especial para nossos leitores. Abraxas
FM | Bem, começaste pelo corpo, como bailarina. Também esta
nossa conversa se inicia pelo corpo, este grande símbolo em movimento, poço mágico
de significâncias. Considerando as experiências seguintes, o corpo relacionado ao
canto e à interpretação teatral, foi casual ou houve algum interesse particular
na dança como primeira revelação artística?
CA | Meu querido o corpo foi meu primeiro instrumento de
trabalho. Diz minha mãe que aos 4 anos entrei numa sala de aula de dança e desde
então nunca mais saí. Não me lembro de ter feito outra coisa na vida. Foi sem dúvida
minha primeira e inspiradora revelação ao melhor dos mundos… o ofício inigualável
de ser outros.
Aprendi que ele, o corpo, não mente, jamais.
FM | Acaso te espelhavas em alguma bailarina em especial,
ou era a própria dança, o movimento, que guiava teus passos?
CA | Não, na dança o instrumento é tão particular que não
há como se espelhar, mas há sim a busca pelo grande mestre, aquela que satisfaz
nosso empenho pelo aperfeiçoamento da técnica.
FM | Conta-me um pouco da experiência como coreógrafa, o
princípio desse grande desbravamento da dança como espetáculo no Brasil, do qual
foste uma protagonista de destaque.
AC | Na escola, na hora do recreio, ainda menina, minha
diversão era coreografar! Assim que comecei a dançar minha curiosidade por
juntar passos (como realmente foram minhas primeiras tentativas) era grande,
mas comecei mesmo coreografando para teatro. Durante 10 anos tive minha própria
Cia. de dança e lá pude coreografar livremente chegando a fazer coisas muito boas
e erros quase imperdoáveis. Depois em espetáculos solo ousei monólogos com coreografias
realmente voltadas para o personagem em questão. Como se mexe, como gira, como anda,
como salta… Era a tal da Dança Teatro.
CA | A dança tem fôlego de gato e resistiu a tempos difíceis
ocupando hoje um lugar de destaque conseguindo plateias lotadas e uma geração de
novos bailarinos já com assinatura. Com isso quero dizer que já não há mais o clássico,
o moderno, o jazz… Há a vocação, a vontade de colocar seus desejos em cena, independendo
de rótulos ou estilo ou técnica.
FM | Um personagem de Eugène Ionesco, precisamente o Berenguer
da peça Le piéton de l’air (1963), punha em dúvida que o teatro – e incluía
a seu lado a literatura – pudesse “dar idéia da enorme complexidade do real”. Em
grande parte a relação com o real assume uma conotação moralista, o que resulta
em uma arte de denúncia. O próprio Ionesco observa que não lhe parece ser esta a
função da arte, e sim a “de tornar real o irreal, de suscitar o imprevisto” (Entrevista
a Claude Bonnefoy, 1970). Temos aqui uma infinidade de temas, que iremos desfiando,
porém primeiramente eu queria entender a tua relação com a representação, com o
dar vida, no palco e não mais no roteiro escrito, a um personagem.
CA | Representar é, sem dúvida, fruto de pesquisa de entrega
de humildade. A busca de conhecer, entender, compreender e mais que tudo jamais
criticar seu personagem.
Roubamos da vida pra devolver em forma de arte, ou seja, emprestando nossa
ousadia e outras tantas coisas que são nossas.
FM | Assim como no canto as modulações na interpretação de
um texto, na vivência de um personagem, pode sofrer significativa alteração de um
ator para outro? Por trás do estilo do dramaturgo, haveria então um estilo de atuação?
CA | Infelizmente não canto. Protagonizei um musical fazendo
a vida de uma cantora por conta da audácia da juventude. Digamos que hoje entendo
mais de afinação e me reservo o papel de atriz que eventualmente, se o personagem
pedir, cantará… como atriz… Dá pra me entender?
Ah o que não fazemos para viver um personagem!!!
A mudança de um intérprete, sem sombra de dúvida, provocará significativa
alteração no modo de apresentar o personagem e caberá ao diretor orientar este intérprete
de acordo com a linha traçada pela direção.
FM | O diretor, então, é que é o criador maior?
CA | O diretor é aquele que do lado de fora te impulsiona,
provoca o intérprete a descobrir nuanças, pertinências, possibilidades que o personagem
oferece, e quem define a linha do espetáculo. Para mim a responsabilidade do diretor
vai de como o espectador é recebido na entrada do teatro até o momento mais íntimo
da criação de um ator. Momentos indescritíveis quando nos tornamos indefesos e expostos.
Cabe a ele aceitar ou não a luz, o cenário o figurino, a trilha.
FM | Há algum tempo, quando escrevi sobre a montagem de uma
peça sob a direção de Celso Nunes, observei: “Está certo, como queria Grotovski,
que o teatro é essencialmente o encontro do ator com o espectador. O mesmo se pode
dizer de um livro ou de um disco. O que não se pode é comprometer a essência estética
de uma obra (teatro, poema, canção) com seus acessórios. Nem se reveste uma peça
teatral de arquitetura, indumentária e iluminação na expectativa de ocultar a falta
de texto, ou se anula todo este aparato de forma preconceituosa, como sendo danoso
ao justo encontro do ator com os espectadores.” Como vês esta relação entre essencial
e acessório na construção de um espetáculo teatral?
CA | Essencial é tudo aquilo que está em cena para servir
ao espetáculo, ao intérprete, e quando isso não acontece apenas serve para desvirtuar
a atenção e ocupar um espaço que não é de direito. O belo é essa união de manifestações,
a harmonia entre criadores voltados todos para o mesmo fim: o espetáculo.
Este sim, é o valor maior.
FM | Como se inter-relacionam real e irreal em tua concepção
da criação artística? São tratados de maneira distinta no canto, na dança, na representação
teatral?
CA | Em perfeita harmonia é uma loucura sã!
FM | Volto ao Ionesco ao dizer que “a crise do teatro é a
crise da renovação da expressão”. De que maneira a renovação dessa expressão, no
teatro, depende do texto? A dança seria uma espécie de teatro mudo?
CA | A dança, o teatro, a pintura… O artista retrata seu
tempo, a linha que divide as formas das manifestações da criação são tênues demais
e nos une a todos, atores são pintores, pintores são músicos, e por aí vai… Somos
farinha do mesmo saco!
FM | Na composição expressiva dos personagens que representas,
qual papel desempenha o ego? Sentes acaso algum conflito em despir-se temporariamente
de si para deixar fluir este outro que é o personagem?
CA | Pelo contrário, é um prazer sem igual esse desnudar-se.
Depois, Floriano, não há personagem que seja totalmente diferente de nós, é só procurarmos
com carinho e atenção que há em nós um pouco de tudo/todos.
Depois de conhecermos o personagem ele está sob nossas rédeas. Não há como
ser outro, mas sim a técnica de ser outro.
Como no dia a dia, dure o tempo que for o espetáculo continuamos a descobrir
emoções e gestos que às vezes nos dão a maior satisfação possível que é a de nos
surpreendermos a nós mesmos. Reações que chegam e nos pegam de surpresa. Estavam
lá em algum lugar do nosso coração, da nossa cabeça e que dão o ar da graça
e consolidam o recomeçar que é o que o bom intérprete faz todas as noites. Jamais
é o mesmo espetáculo.
FM | Francis Bacon, em uma entrevista, faz uma abordagem
interessante acerca da criação artística em nosso tempo. Diz ele: “Acho que estamos
numa posição muito curiosa hoje, porque não existe qualquer tradição, o que existe
são dois extremos opostos. Há o depoimento direto que é muito parecido com um relatório
de polícia. E há a tentativa de se buscar uma arte maior. Mas a chamada arte, que
realmente é de meio-termo, numa época como a atual não existe.” (Entrevista a David
Sylvester, 1966) Não sei se estás de acordo com ele, porém como situarias esta observação
dele em termos de teatro brasileiro atualmente?
CA | Eu não acredito em arte meio-termo. Há o bom teatro
e o mal teatro, ou qualquer outra manifestação artística. Aqui deixo Bacon e digo
que no Brasil estamos vivendo dias de belíssimas montagens e outras pequenas e perdidas.
Entre textos medíocres e grandes textos, e o que é pior: o publico, com naturais
exceções, sem saber qual é qual. Estamos massacrados pela pior das censuras que
é a censura econômica, prensados entre patrocinadores e a impossibilidade
(quase geral) de se produzir sem eles.
FM | Nos espetáculos de leitura de textos, de que maneira
teces o roteiro?
CA | Leitura de texto é mergulhar os olhos no papel e entregar
para o público da maneira mais clara, audível, compreensível, o texto. Porém nunca
deixaremos de fazer uma partitura do texto para que torne a leitura agradável
e provoque por mais delicadamente que seja a intenção do autor.
FM | Há naturalmente autores de tua preferência. Quais e
o que encontras neles?
CA | Minha grande paixão é a palavra. Bons textos. Por isso
os clássicos me encantam sempre, por tratarem de assuntos diversos com a melhor
das palavras, com ritmo e poesia, assim como autores novos e ousados que possam
provocar. Não há como citar um preferido porque não tenho um preferido.
Literature, sweet and never ending obsession!!!
FM | Há algo que sempre tenhas querido incorporar, porém
jamais o tenha conseguido? Não me refiro exclusivamente a um personagem, de maneira
que penso também em algum sentimento, como um escárnio ou um riso.
CA | Carmen, personagem na Ópera. No teatro, como atriz,
tive o inenarrável prazer de ser Carmem. Na vida, bem, não acerto muito na
vida, me falta certa competência para viver… Por conta disto, para o dia-a-dia algumas
coisas ficaram sem acontecer. Meu lugar de conforto, fé e plenitude é o palco.
FM | Falas em conforto, porém não em refúgio. A plenitude
que alcanças no palco supriria a realidade, de alguma maneira? Esta falta de competência
de viver abrange a administração da própria arte, amores, os gestos simples do cotidiano,
como a troca de uma lâmpada? Fala-me um pouco desse personagem chamado Clarisse
Abujamra.
CA | A realidade é sempre seca e amarga e digo realidade,
não o que fazemos com o que nos oferece a vida. Sou um atropelo constante de sensações
e desejos, sempre em excesso e, como diria Pessoa, sinto um cansaço antiquíssimo,
mas a despeito de tudo adoro a risada franca, o bom humor e não abro mão dos sonhos
diferenciando-se de esperança. A esperança por vezes me irrita… muito.
O palco me oferece um descanso mesmo sendo ele o olho do furacão.
A ponta do meu nariz coça quando estou carente, e tenho certeza de que, como
diz Mia Couto, "Somos quando somos os outros", que a guerra, a ignorância
e o preconceito são o mal da humanidade. Não tenho ex-amores, continuo amando-os
e sou louca por vinho tinto e por queijos. Sei que não é fácil ser sobrinha do velho
Abu (Antonio Abujamra), que adoro os escritores
russos, que sou leitora voraz, que nada é mais forte do que amizade – amigos, eu
os prezo mais que tudo. A velhice me assusta. Ensaio escrever, apreender a escrever.
Deve ser horrível perder a curiosidade e triste quando já não nos surpreendemos
com a vida, o viver. Tenho horror à injustiça. Se não há paixão, invento, porque
é um estado necessário de estar. A inadmissível NÃO distribuição de renda me fere.
A poesia faz parte da minha vida. Em minha casa tenho livros espalhados por toda
parte e sempre à mão um poeta. Adoro dançar, mesmo aquele dois pra lá dois pra
cá. Ter saúde é tuuuuuuuuuuuudo! Meu desejo é estar no palco, sempre, e que
a pior solidão é a solidão intelectual. Acho o sorriso uma arma poderosa, e tenho
pai e mãe vivos e a eles peço que me abençoem. Tenho dois irmãos, uma irmã caçula
e 3 filhos invejáveis que amo e admiro cada
dia mais… E por aí vai!
FM | Como lidas no palco com o acaso, com o improviso?
CA | Estudo alucinadamente e apaixonadamente o personagem.
A despeito de muitos, gosto imensamente de ensaiar. Busco conhecer todas as possibilidades
explorar o desconhecido e domá-lo.
Sou péssima no improviso, me intimido, me perco. Sei que resolvo, mas não
com o talento, com a esperteza e a qualidade que gostaria.
FM | Ao lidar com televisão e cinema, o que estes distintos
palcos exigem do ator que já não tenha experimentado em sua vivência no teatro?
CA | Na TV a agilidade, no cinema o Tempo. Fora essas duas
observações não há nada que o trabalho de um intérprete para estar no palco não
tenha dado. Temos apenas que compreender o veículo e servir a ele. Cada um requer
uma faceta da interpretação. Trabalhar com e para a câmera é dificílimo, pelo menos
para mim. Porém não menos excitante. Creio que o que queremos é atuar e o que sempre
buscamos é o grande personagem e, por ele, eu passo a vida a estudar, a me preparar,
para estar pronta para servi-lo quando chegar.
FM | Personagens, espetáculos, filmes, diretores etc. Ao
somar toda essa bagagem de vivência como atriz, quais os destaques, que situações
em especial a memória retêm ou quais gostarias de reviver?
CA | Reviver, Carmem. E a memória recente e inesquecível
de As nove partes do desejo, meu último trabalho, pois acredito que ainda
demore para encontrar outro texto que ofereça ao intérprete tantas possibilidades,
que traz poesia e que fala de nosso dias, guerras, amores estratégias de sobrevivência.
O texto dói, clareia, impulsiona, elucida. Foi escrito por Heather Raffo. Brilhante.
E a passagem em minha vida de diretores como Antunes Filho, com quem adoraria
trabalhar mais uma vez… Bobagem tentar dar nomes porque foram muitos e tive o privilégio
de ter trabalhado com os nomes mais importantes do teatro, da dança, da música.
E esse amor imensurável que sinto por minha profissão, pelos meus colegas
de palco.
*****
Agulha Revista
de Cultura
# 70. Agosto de 2009. Página ilustrada com obras de Hélio Rola (Brasil), artista
convidado desta edição especial de ARC.
Organização a cargo de Floriano
Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | Hélio
Rola
Agradecimentos a Mhelena
Castro
Imagens © Acervo Resto do
Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais
da Agulha Revista de Cultura, assim
estruturado:
S1 | PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC
FASE I (1999-2009)
S2 | VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial
de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia.
No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o
título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins.
Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de
Floriano Martins e Márcio Simões.
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