sábado, 23 de abril de 2016

FLORIANO MARTINS | Clarisse Abujamra: sempre o palco


Clarisse Abujamra de todos os palcos. A boa conversa com esta notável mulher reflete a luz que emana de seu corpo em movimento: na dança, na coreografia, no teatro, na representação. As referências familiares, sempre postas em destaque pela crítica, não são necessárias. Clarisse tem uma envolvente luz própria, com matizes valiosos que sabem lidar com o estúdio e palco, cinema, televisão e teatro. No cinema, Os anjos do Arrabalde (Carlos Reichenbach, 1987), Gaijin – Ama-me como sou (Tizuka Yamazaki, 2005) e Chega de saudade (Laís Bodanzky, 2008). A televisão a conhece por telenovelas como Escrava Isaura (1976), Os ossos do Barão (1997), Maria Esperança (2007), além das minisséries Chiquinha Gonzaga (1999), Presença de Anita (2001), e JK (2006). Clarisse nasceu em São Paulo, em 1948. A essência de seu trabalho, da vibrante e intensa manifestação da arte em suas veias, vem do teatro, seja da dança ou da dramaturgia. Ainda jovem mudou-se para Nova York, onde foi aluna da bailarina e coreógrafa estadunidense Martha Graham (1894-1991). Na dança, não atuou somente como bailarina, mas sim como coreógrafa e chegou a montar a Companhia Teatro Brasileiro de Dança. Teve um papel de destaque na formação da dança moderna no Brasil, sobretudo através do Ballet Stagium. Da dança passa a fazer coreografia para peças de teatro. Foi uma das precursoras de um gênero que mesclava as duas atividades, o teatro-dança. No teatro destaca-se como atriz em inúmeras peças, tendo sido dirigida por nomes como Flávio Rangel, Antonio Abujamra e Antunes Filho. Atualmente tem em cartaz uma peça-show, Antonio – Da tua tão necessária poesia, em que se apresenta ao lado do pianista Ivan Abujamra. Este nosso diálogo é um desses preciosos frutos do acaso objetivo. No instante seguinte em que nos conhecemos tínhamos já o coração afinado e lhe sugeri uma conversa para a Agulha Revista de Cultura. Ela não sabia que seria a última entrevista nossa, da revista. Um destaque que é um presente especial para nossos leitores. Abraxas

FM | Bem, começaste pelo corpo, como bailarina. Também esta nossa conversa se inicia pelo corpo, este grande símbolo em movimento, poço mágico de significâncias. Considerando as experiências seguintes, o corpo relacionado ao canto e à interpretação teatral, foi casual ou houve algum interesse particular na dança como primeira revelação artística?

CA | Meu querido o corpo foi meu primeiro instrumento de trabalho. Diz minha mãe que aos 4 anos entrei numa sala de aula de dança e desde então nunca mais saí. Não me lembro de ter feito outra coisa na vida. Foi sem dúvida minha primeira e inspiradora revelação ao melhor dos mundos… o ofício inigualável de ser outros.
Aprendi que ele, o corpo, não mente, jamais.

FM | Acaso te espelhavas em alguma bailarina em especial, ou era a própria dança, o movimento, que guiava teus passos?

CA | Não, na dança o instrumento é tão particular que não há como se espelhar, mas há sim a busca pelo grande mestre, aquela que satisfaz nosso empenho pelo aperfeiçoamento da técnica.

FM | Conta-me um pouco da experiência como coreógrafa, o princípio desse grande desbravamento da dança como espetáculo no Brasil, do qual foste uma protagonista de destaque.

AC | Na escola, na hora do recreio, ainda menina, minha diversão era coreografar! Assim que comecei a dançar minha curiosidade por juntar passos (como realmente foram minhas primeiras tentativas) era grande, mas comecei mesmo coreografando para teatro. Durante 10 anos tive minha própria Cia. de dança e lá pude coreografar livremente chegando a fazer coisas muito boas e erros quase imperdoáveis. Depois em espetáculos solo ousei monólogos com coreografias realmente voltadas para o personagem em questão. Como se mexe, como gira, como anda, como salta… Era a tal da Dança Teatro.

FM | Desde então, como evoluiu a dança no Brasil?

CA | A dança tem fôlego de gato e resistiu a tempos difíceis ocupando hoje um lugar de destaque conseguindo plateias lotadas e uma geração de novos bailarinos já com assinatura. Com isso quero dizer que já não há mais o clássico, o moderno, o jazz… Há a vocação, a vontade de colocar seus desejos em cena, independendo de rótulos ou estilo ou técnica.

FM | Um personagem de Eugène Ionesco, precisamente o Berenguer da peça Le piéton de l’air (1963), punha em dúvida que o teatro – e incluía a seu lado a literatura – pudesse “dar idéia da enorme complexidade do real”. Em grande parte a relação com o real assume uma conotação moralista, o que resulta em uma arte de denúncia. O próprio Ionesco observa que não lhe parece ser esta a função da arte, e sim a “de tornar real o irreal, de suscitar o imprevisto” (Entrevista a Claude Bonnefoy, 1970). Temos aqui uma infinidade de temas, que iremos desfiando, porém primeiramente eu queria entender a tua relação com a representação, com o dar vida, no palco e não mais no roteiro escrito, a um personagem.

CA | Representar é, sem dúvida, fruto de pesquisa de entrega de humildade. A busca de conhecer, entender, compreender e mais que tudo jamais criticar seu personagem.
Roubamos da vida pra devolver em forma de arte, ou seja, emprestando nossa ousadia e outras tantas coisas que são nossas.

FM | Assim como no canto as modulações na interpretação de um texto, na vivência de um personagem, pode sofrer significativa alteração de um ator para outro? Por trás do estilo do dramaturgo, haveria então um estilo de atuação?

CA | Infelizmente não canto. Protagonizei um musical fazendo a vida de uma cantora por conta da audácia da juventude. Digamos que hoje entendo mais de afinação e me reservo o papel de atriz que eventualmente, se o personagem pedir, cantará… como atriz… Dá pra me entender?
Ah o que não fazemos para viver um personagem!!!
A mudança de um intérprete, sem sombra de dúvida, provocará significativa alteração no modo de apresentar o personagem e caberá ao diretor orientar este intérprete de acordo com a linha traçada pela direção.

FM | O diretor, então, é que é o criador maior?

CA | O diretor é aquele que do lado de fora te impulsiona, provoca o intérprete a descobrir nuanças, pertinências, possibilidades que o personagem oferece, e quem define a linha do espetáculo. Para mim a responsabilidade do diretor vai de como o espectador é recebido na entrada do teatro até o momento mais íntimo da criação de um ator. Momentos indescritíveis quando nos tornamos indefesos e expostos. Cabe a ele aceitar ou não a luz, o cenário o figurino, a trilha.

FM | Há algum tempo, quando escrevi sobre a montagem de uma peça sob a direção de Celso Nunes, observei: “Está certo, como queria Grotovski, que o teatro é essencialmente o encontro do ator com o espectador. O mesmo se pode dizer de um livro ou de um disco. O que não se pode é comprometer a essência estética de uma obra (teatro, poema, canção) com seus acessórios. Nem se reveste uma peça teatral de arquitetura, indumentária e iluminação na expectativa de ocultar a falta de texto, ou se anula todo este aparato de forma preconceituosa, como sendo danoso ao justo encontro do ator com os espectadores.” Como vês esta relação entre essencial e acessório na construção de um espetáculo teatral?

CA | Essencial é tudo aquilo que está em cena para servir ao espetáculo, ao intérprete, e quando isso não acontece apenas serve para desvirtuar a atenção e ocupar um espaço que não é de direito. O belo é essa união de manifestações, a harmonia entre criadores voltados todos para o mesmo fim: o espetáculo. Este sim, é o valor maior.

FM | Como se inter-relacionam real e irreal em tua concepção da criação artística? São tratados de maneira distinta no canto, na dança, na representação teatral?

CA | Em perfeita harmonia é uma loucura sã!

FM | Volto ao Ionesco ao dizer que “a crise do teatro é a crise da renovação da expressão”. De que maneira a renovação dessa expressão, no teatro, depende do texto? A dança seria uma espécie de teatro mudo?

CA | A dança, o teatro, a pintura… O artista retrata seu tempo, a linha que divide as formas das manifestações da criação são tênues demais e nos une a todos, atores são pintores, pintores são músicos, e por aí vai… Somos farinha do mesmo saco!

FM | Na composição expressiva dos personagens que representas, qual papel desempenha o ego? Sentes acaso algum conflito em despir-se temporariamente de si para deixar fluir este outro que é o personagem?

CA | Pelo contrário, é um prazer sem igual esse desnudar-se. Depois, Floriano, não há personagem que seja totalmente diferente de nós, é só procurarmos com carinho e atenção que há em nós um pouco de tudo/todos.
Depois de conhecermos o personagem ele está sob nossas rédeas. Não há como ser outro, mas sim a técnica de ser outro.
Como no dia a dia, dure o tempo que for o espetáculo continuamos a descobrir emoções e gestos que às vezes nos dão a maior satisfação possível que é a de nos surpreendermos a nós mesmos. Reações que chegam e nos pegam de surpresa. Estavam lá em algum lugar do nosso coração, da nossa cabeça e que dão o ar da graça e consolidam o recomeçar que é o que o bom intérprete faz todas as noites. Jamais é o mesmo espetáculo.

FM | Francis Bacon, em uma entrevista, faz uma abordagem interessante acerca da criação artística em nosso tempo. Diz ele: “Acho que estamos numa posição muito curiosa hoje, porque não existe qualquer tradição, o que existe são dois extremos opostos. Há o depoimento direto que é muito parecido com um relatório de polícia. E há a tentativa de se buscar uma arte maior. Mas a chamada arte, que realmente é de meio-termo, numa época como a atual não existe.” (Entrevista a David Sylvester, 1966) Não sei se estás de acordo com ele, porém como situarias esta observação dele em termos de teatro brasileiro atualmente?

CA | Eu não acredito em arte meio-termo. Há o bom teatro e o mal teatro, ou qualquer outra manifestação artística. Aqui deixo Bacon e digo que no Brasil estamos vivendo dias de belíssimas montagens e outras pequenas e perdidas. Entre textos medíocres e grandes textos, e o que é pior: o publico, com naturais exceções, sem saber qual é qual. Estamos massacrados pela pior das censuras que é a censura econômica, prensados entre patrocinadores e a impossibilidade (quase geral) de se produzir sem eles.

FM | Nos espetáculos de leitura de textos, de que maneira teces o roteiro?

CA | Leitura de texto é mergulhar os olhos no papel e entregar para o público da maneira mais clara, audível, compreensível, o texto. Porém nunca deixaremos de fazer uma partitura do texto para que torne a leitura agradável e provoque por mais delicadamente que seja a intenção do autor.

FM | Há naturalmente autores de tua preferência. Quais e o que encontras neles?

CA | Minha grande paixão é a palavra. Bons textos. Por isso os clássicos me encantam sempre, por tratarem de assuntos diversos com a melhor das palavras, com ritmo e poesia, assim como autores novos e ousados que possam provocar. Não há como citar um preferido porque não tenho um preferido.
Literature, sweet and never ending obsession!!!

FM | Há algo que sempre tenhas querido incorporar, porém jamais o tenha conseguido? Não me refiro exclusivamente a um personagem, de maneira que penso também em algum sentimento, como um escárnio ou um riso.

CA | Carmen, personagem na Ópera. No teatro, como atriz, tive o inenarrável prazer de ser Carmem. Na vida, bem, não acerto muito na vida, me falta certa competência para viver… Por conta disto, para o dia-a-dia algumas coisas ficaram sem acontecer. Meu lugar de conforto, fé e plenitude é o palco.

FM | Falas em conforto, porém não em refúgio. A plenitude que alcanças no palco supriria a realidade, de alguma maneira? Esta falta de competência de viver abrange a administração da própria arte, amores, os gestos simples do cotidiano, como a troca de uma lâmpada? Fala-me um pouco desse personagem chamado Clarisse Abujamra.

CA | A realidade é sempre seca e amarga e digo realidade, não o que fazemos com o que nos oferece a vida. Sou um atropelo constante de sensações e desejos, sempre em excesso e, como diria Pessoa, sinto um cansaço antiquíssimo, mas a despeito de tudo adoro a risada franca, o bom humor e não abro mão dos sonhos diferenciando-se de esperança. A esperança por vezes me irrita… muito.
O palco me oferece um descanso mesmo sendo ele o olho do furacão.
A ponta do meu nariz coça quando estou carente, e tenho certeza de que, como diz Mia Couto, "Somos quando somos os outros", que a guerra, a ignorância e o preconceito são o mal da humanidade. Não tenho ex-amores, continuo amando-os e sou louca por vinho tinto e por queijos. Sei que não é fácil ser sobrinha do velho Abu (Antonio Abujamra), que adoro os  escritores russos, que sou leitora voraz, que nada é mais forte do que amizade – amigos, eu os prezo mais que tudo. A velhice me assusta. Ensaio escrever, apreender a escrever. Deve ser horrível perder a curiosidade e triste quando já não nos surpreendemos com a vida, o viver. Tenho horror à injustiça. Se não há paixão, invento, porque é um estado necessário de estar. A inadmissível NÃO distribuição de renda me fere. A poesia faz parte da minha vida. Em minha casa tenho livros espalhados por toda parte e sempre à mão um poeta. Adoro dançar, mesmo aquele dois pra lá dois pra cá. Ter saúde é tuuuuuuuuuuuudo! Meu desejo é estar no palco, sempre, e que a pior solidão é a solidão intelectual. Acho o sorriso uma arma poderosa, e tenho pai e mãe vivos e a eles peço que me abençoem. Tenho dois irmãos, uma irmã caçula e 3 filhos invejáveis que  amo e admiro cada dia mais… E por aí vai!

FM | Como lidas no palco com o acaso, com o improviso?

CA | Estudo alucinadamente e apaixonadamente o personagem. A despeito de muitos, gosto imensamente de ensaiar. Busco conhecer todas as possibilidades explorar o desconhecido e domá-lo.
Sou péssima no improviso, me intimido, me perco. Sei que resolvo, mas não com o talento, com a esperteza e a qualidade que gostaria.

FM | Ao lidar com televisão e cinema, o que estes distintos palcos exigem do ator que já não tenha experimentado em sua vivência no teatro?

CA | Na TV a agilidade, no cinema o Tempo. Fora essas duas observações não há nada que o trabalho de um intérprete para estar no palco não tenha dado. Temos apenas que compreender o veículo e servir a ele. Cada um requer uma faceta da interpretação. Trabalhar com e para a câmera é dificílimo, pelo menos para mim. Porém não menos excitante. Creio que o que queremos é atuar e o que sempre buscamos é o grande personagem e, por ele, eu passo a vida a estudar, a me preparar, para estar pronta para servi-lo quando chegar.

FM | Personagens, espetáculos, filmes, diretores etc. Ao somar toda essa bagagem de vivência como atriz, quais os destaques, que situações em especial a memória retêm ou quais gostarias de reviver?

CA | Reviver, Carmem. E a memória recente e inesquecível de As nove partes do desejo, meu último trabalho, pois acredito que ainda demore para encontrar outro texto que ofereça ao intérprete tantas possibilidades, que traz poesia e que fala de nosso dias, guerras, amores estratégias de sobrevivência. O texto dói, clareia, impulsiona, elucida. Foi escrito por Heather Raffo. Brilhante.
E a passagem em minha vida de diretores como Antunes Filho, com quem adoraria trabalhar mais uma vez… Bobagem tentar dar nomes porque foram muitos e tive o privilégio de ter trabalhado com os nomes mais importantes do teatro, da dança, da música.
E esse amor imensurável que sinto por minha profissão, pelos meus colegas de palco.

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Agulha Revista de Cultura # 70. Agosto de 2009. Página ilustrada com obras de Hélio Rola (Brasil), artista convidado desta edição especial de ARC.



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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | Hélio Rola
Agradecimentos a Mhelena Castro
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

S1 | PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
S2 | VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO DA MEMÓRIA

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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