Há lugar para António Maria Lisboa no
elenco dos filósofos, tanto portugueses, como europeus? O vulto do poeta minora
o vulto do pensador?
Tese retomada dos clássicos pelos nomes magistrais do nosso
pensamento filosófico, (incluindo Leonardo Coimbra e, com ele, os discípulos
mais atentos às vias plurais do conhecimento para além do óbvio positivista),
aduz que o pensamento filosófico não é redutível apenas ao discurso geométrico,
silogístico, dedutivo, dialético, ou no mínimo, ao discurso racional, mas que
ele se encontre ainda, difuso e infuso, em outras formas de revelação como a
literatura, e de modo particular com a Poesia. Importa distinguir: a tese não
se refere a qualquer forma ou tipo de poesia filosófica, ou de filosofia
poética; refere-se à poesia enquanto veículo gnosiológico que, a seu modo, leva
um pensamento filosófico à incarnação conceptual e à mostração de um percurso
que não se prende no racional, nem no puro objetivo ao modo das ciências de
rigor, mas se banha nas águas da subjectividade, mediante a intuição. Parece
que, nos primórdios da sofia, a arte poética, o cântico, era a via
anelada pelo exercício filosófico, e os grandes pensadores gregos anteriores a
Platão foram, de um modo geral, poetas e mesmo entoadores ambulantes, aoidós,
trovadores. A grande poesia é veículo revelativo da grande ascese
filosófico-teológica. Basta lembrar os poemas homéricos, Lucrécio, os Salmistas
hebraicos, Dante, Milton, enfim, Camões … e outros.
Francisco da Cunha Leão teve como certo o valor filosófico
da obra que nos restou de António Maria Lisboa. Director da casa Guimarães
Editores (Lisboa), produziu e manteve a Coleção “Filosofia e Ensaios”, por
norma destinada a autores consagrados, mas para a qual surgiam novos autores,
apresentando novos produtos. Cunha Leão atendeu ao mérito de alguns textos que
lhe foram submetidos e, desejando salvá-los, criou a Coleção “Ideia Nova”, que
editaria, ou autores novos, ou introduziria pensadores estrangeiros ainda não
vulgarizados. Lembremos que nessa Coleção foram editados em 1962, o Elogio
da Filosofia (Merleau-Ponty, em tradução de António Braz Teixeira), Comunidade
Pluri-Racial (Fernando Sylvan), Aproximação Antropológica (Fernando
Gil) e Erro Próprio (António Maria Lisboa, com prefácio de Mário
Cesariny). Cremos que, nesses já remotos anos sessenta, e fora deste mundo,
Lisboa era o nome de quem se esperava apenas uma teoria estética ou poética,
não se lhe exigindo um discurso filosófico. Discurso esse que, afinal de
contas, se acha corporizado na sua obra, sobretudo em dois capítulos
singulares, Erro Próprio (1ª ed., 1952) e Isso Ontem Único (1953).
Noutros textos, incluindo poemas, o discurso ontológico e gnoseológico emerge,
mas cremos que, para amostragem, estes dois títulos bastam, dando a A.M. Lisboa
jus a um lugar no elenco dos pensadores portugueses do vigésimo século, sem ter
de se olhar ao facto de ter cumprido um exercício filosófico bem jovem, ainda
muito longe da maturidade que só a experiência continuada de vida permite
consolidar e clarear.
Dolente e sofrente, num viver que foi luz já em
evanescência, de si mesmo, ele esboçou o retrato físico e decerto anímico: Nesta minha vida de deitado. Assim
dispôs de horas e horas até ao finalíssimo dia 11 de novembro de 1953, (quando
entregou a sua alma num quarto pobre da rua das Beatas à Graça) para, mesmo
apesar de jovem, refletir acerca do seu próprio conhecimento e das suas
circunstâncias ou categorias acidentais.
Internado no Sanatório da Quinta dos Vales, escreveu numa
carta para Cesariny, a propósito de ver o seu nome incluído no elenco dos
Surrealistas, e demarcou-se: Não pertenço
a grupo surrealista algum, não nego o surrealismo, as suas conquistas, a
experiência realizada; não posso é suspender-me em atitudes, gestos, palavras,
ditos já “convencionais”. [1] Em
outro tempo afirmaria a rejeição, tanto do que nominou de surracionalismo, como
de racionalismo.
A ambos os métodos objectou que todo o pensamento lógico tem levado o homem para um sempre maior
dessincronismo com o Universo e a chamada intuição só é possível dada a
presença (do) existir lógico. [2]
A intuição disputa o poder, que tende ao absolutismo da razão, gerando um
dogma, qual o racionalismo, que supõe a necessidade de todo o conhecimento ser
objectivo e objectivista. Ora a ginástica do pensamento está sempre diante do
que diremos serem as trevas da transparência, em que, no fim de contas, não
visionamos mais do que esboços de ser/seres, ou sombras de um revelado que
também se oculta.
Não há sujeito sem objecto para conhecer, pois o sujeito só
é tal por conhecer o objecto, ou em relação a este, quer dizer: o sujeito
conhece o objecto, mas este dá realidade ao sujeito pelo qual permite ser
conhecido. Não há um conhecer objectivo sem implicação do subjectivo, a pura
objectividade sendo um irreal e, segundo parece, a filosofia é essencialmente subjectividade, [3] depois organizada pelo exercício da objectividade e da razão.
Convém, para evitar a queda nas sombras, uma aliança séria, (diremos:
sacramental) do Eu racional e do Eu intuitivo, pois nem a razão descansa com a
intuição, nem esta dorme por causa daquela, como por outras palavras, em
magistral aula, ensinou Leonardo Coimbra. Ora, e de facto, conhecer é receber a realidade tal qual vem e no mesmo tempo torná-la
outra realidade, de forma que a realidade não venha sem ser indo. [4] Lemos o gerúndio indo como análogo do gerundivo sendo,
como no dizer não conhecemos o ser, conhecemos os momentos em que vai sendo,
e se nos revela; indo significa que a realidade não vem toda de vez, vai
indo, vem vindo.
Na díade razão/intuição, o poeta interpõe a via poética como
alternativa, ainda quanto esteja, talvez incerto, de que o “não pensar é o
impulso mais íntimo do poeta”, se bem que o pensamento seja um modo de completação,
quer dizer, o pensamento contempla e completa o real, enquanto o “viver
poeticamente” já conhece o real por estar dentro dele. [5] Enquanto o pensamento intuitivo ou racional carece dos sentidos
– nada se encontra no intelecto que não haja passado pelos sentidos – a
subjectividade solicita a imaginação que “não vai além da sensação, pois
sensação é acto de imaginar – mas ela é para além dos sentidos”. [6] A imaginação transforma o dado da
sensação. Os lógicos ensinam que pensamos por ideias, outros admitem que
pensamos por imagens, sendo complexo distinguir entre as noções de ideia e de
imagem. Que é a ideia senão a imagem intelectual, em última instância, da
mensagem sensitiva? Sempre a relação sujeito/objecto. Aquele já contendo este,
e este dando realidade àquele: A Seta já
contém o Alvo, mas só percorre a Seta aquele que lhe conhece o Alvo? [7]
Os elementos de gnoseologia, ou de teoria do conhecimento,
obrigam ao questionamento do mediato e do imediato, ou se não tivermos razoável
objeção, de físico e de metafísico. Na idade clássica helénica, a palavra
Metafísica foi utilizada como advérbio de lugar pelo bibliotecário Andrónico de
Rodes que, ao arrumar em rolos com os escritos aristotélicos, e depois de
colocar no lugar os livros chamados Dos
Naturais ou Da Física, teve de
colocar uns outros, sem objectiva e inequívoca identidade. Andrónico resolveu o
problema identificando-os como sendo “os que vinham depois dos da Física”, e
assim se introduziu um advérbio, próprio da biblioteconomia, mas destinado a
faustosa aventura, depois de, advérbio de lugar, ser elevado a nome de um
saber, ou de uma disciplina, [8] que
se fixou como título para os tais livros de Aristóteles.
Na
Escolástica medieval, sobretudo na mais vinculada à tradição arábica, e logo
depois à latina (cristã), o continuado exercício das Escolas chegou a um ponto
em que os saberes físicos se mostravam insuficientes para a compreensão do
ideal universal, onde se pensavam ideias mas fora da presença de coisas. A
insuficiência foi resolvida adoptando o advérbio a nome substantivo, como
palavra da primeira categoria (oussia,
essência) significando tudo quanto se anelara saber para além das evidências
físicas. E assim se procedeu à elevação da Metafísica, nome que releva de uma
questão problemática: se ela constitui uma Metaciência, que se colocava para
além das ciências naturais (então teria de preferir-se o nome Meta-sofia, mas
tal era polémico, uma vez já aceite o consenso de que Sofia era nome apenas
para sabedoria, tornando-se insólita a proposta de um saber para além da
sabedoria). Talvez tivesse sido preferível adoptar, para o saber que se
propunha, o nome de Metalógica. Se, na Lógica, as ferramentas de trabalho se
ordenam à construção de uma gramática lógica, – a palavra, o juízo, a definição
– na Metalógica (dita Metafísica) o objetivo ou escopo é constituído pelo
entendimento dos universais, para além dos particulares.
Ora,
neste quadro, A. M. Lisboa parece não ter duvidado, de algum modo convergindo
com os teóricos que aceitavam o positivismo não abarcar toda a ciência, abrindo
o precedente para uma variante amplificativa (positivismo metafísico) que
também se descreve mediante perífrase: para além da ciência, ou como tal
considerada, Metaciência.
Recorrendo
a termos da Geometria, dizemos que o natural é um plano e o sobrenatural outro
plano, acima do primeiro, mas a díade parece requerer um terceiro plano, qual
seja (talvez?) o anterior ao primeiro, um subplano, ou, ainda com mais rigor,
um aplano, algo que não chega a plano, mas se constitui como potenciador
do plano. Traduzindo: anatureza ou anatural, natureza ou natural e
sobrenatural ou transnatural. A tríade, conceito aritmético, tão usado
pelo saber geométrico, torna-se, na escola gnoseológica, uma chave tão crucial
como no Pitagorismo a tétrada e a década.
A onto-fenomenologia gnóstica, qual essa,
como obra-prima do pensamento, exposta pelo nosso Visconde de Figanière, numa
tríade que considerou os planos submundo, mundo e supramundo,
mereceria ter sido conhecida do Surrealismo, tanto mais que a doutrina de
Figanière (Frederico) acabou por influenciar a moderna teosofia de, por
exemplo, uma Helena Blavatsky. [9]
Em
filosofia não há sinónimos. Cada nome é o que é, sem equivalente, pois se o
nome existe, é porque não há outro para nominar aquilo a nominar. A essência do
vero saber manda que seja possível filosofar sem pesos excessivos, que só geram
confusão e risco de erro. Convém, neste particular, seguir Aristóteles ao
ensinar como evitar “argumentos erísticos e contenciosos”. [10] Produzir mais com menos recursos é
preferível a produzir o mesmo com mais recursos. Trata-se de uma economia
vocabular. A tríade ou trilogia dos planos relativa aos naturais também permite
ajustamento às noções (conceito é outra coisa!) do real em que, por analogia,
encadeamos o real e o surreal, por via de regra entendido como
transreal, todavia, antes, na escola, acha-se o subreal. Considerando as
origens francesas do termo surrealismo, cumpre lê-lo como sur-réalisme, o que respeita ao sobre
(sur) real, mas toda a doutrinação da ideia parece carecer de antecedente:
sous-réalisme, o ínfero em contraposição ao súpero, melhor, o inferno
antecedendo o superno, através do eterno. Ora, a valorização estética da
inconsciência, da irracionalidade, do perturbado onírico, do automatismo,
solicita, a nosso ver, a intendência do subreal, ou cisreal, sob pena de este
ser absorvido pelo ultra-real, sendo, embora, noções de diferente grau de
conhecimento.
No
concurso dos paradigmas uma por vezes inexplicável tensão entre lógica e poesia
acha quem postule a inevitabilidade dessa tensão, porque o coisismo e o
positivismo entendem que Ciência e Filosofia estão peadas pela necessidade ou
vício demonstrativo: o real só é real e aceite quando obedece ao filosofema
demonstrativo que prove o que é isso que se demonstra, e para que é. No
entanto, as grandes causas segundas, e sobretudo a primeira delas em natureza e
em grandeza, é o Universo, que submetemos a demonstração como se não bastasse o
estarmos em ele, nele, mas talvez possamos admitir que os argumentos da
Cosmologia dita científica são vãos: A
existência do Universo não necessita de demonstração, porquanto ele existe, e
mesmo que não existisse, era assim que existia. [11] A dificuldade gnoseológica reside em que a Cosmologia dita
científica só apreende o que vê, ou o que por dedução pode demonstrar como
facto; é imperita para demonstrar o inexistente.
Ora,
a Ciência constitui um conhecimento
parcelar, embora tendendo a uma unificação do universo […] por Filosofia, o
conhecimento do Absoluto, pela pura especulação racional. [12] Aos limites dos saberes científico
e filosófico o poeta e pensador sobrepõe a Poesia que é, mais do que
demonstração, acto criacional: Pensamento
poético é para mim o único com valor, porque é o único interessado na realidade
que se nos apresenta num todo e não parcelado. [13] Se ousarmos recorrer a imagens criacionistas, diremos que
António Maria Lisboa, se quisesse, poderia afirmar: Deus criou o mundo, não por
arte demonstrativa, mas por arte criativa (= poética). É um acto de Poesia e
não de Ciência.
O
“sistema” de A. M. Lisboa envolve também a Antropologia, que envolve num tecido de enigmas e de símbolos, em que
avulta a figura da Mulher de cinco faces, simbólico e porventura onírico
enigma, que tanto pode surdir de uma transpsicose como de um febril
visionarismo, como construção filológico-hermenêutica. Seja o que for, essa figura
só foi vista por quem, e só ele, a viu. Uma perplexa interrogação é possível
mesmo que o dardo não atinja o alvo. Tanto consiste num exercício ou tentativa
de ler, em letra legível, o porventura ilegível enigma. Ela é criada sem
génese, criatura provinda de uma metagenesia, ou mesmo de uma agenesia. O poeta
transforma-se no divino feminino essencial, um brinquedo que o divino (palavras
nossas!) para si mesmo criou para brincar no mundo saído de sua mão.
Quatro
faces sensíveis os quatro elementos naturais (ar, água, terra, fogo) e, como
quinta face, a unidade das partes elementares, ou, usando uma perícopa de
Pascoaes, a “face espiritual do mundo”. Na simbologia gnóstica, cinco é
sinal de união, ou número das núpcias hierogâmicas dos três princípios celestes,
e da díade da mãe terrestre. A esta figura equivale a estrela de cinco pontas,
tal como no pentagrama de Salomão, estrela essa que evoca o dom da renascença,
da contínua regeneração da aeterna vita,
a vida infinda.
Esta
Mulher aparece como sensível, conquanto apenas idealizável, ou imaginativa
aparição. Deu-lhe um nome e situa essa aparição: persisto na noite que nasceu para além dos olhos e neles estão os teus olhos de Mulher-Mãe, Magnífica
na tua veste de cabelos. […] Via-lhe
o nome que nasceu virgem nas estrelas ao nascer d’Ela. [14] Um nome: SAGIR, a mulher-mãe que unida ao homem realiza um
destino idêntico. [15]
Quem
é Sagir? A tentação de ler o nome em conformidade com a mítica metáfora da
criatura hermafrodita apresentada por Aristófanes, aos outros dialogantes que
Platão acomodou no diálogo O Simpósio, é inevitável: que no princípio
havia três géneros humanos (masculino, feminino e, um outro composto de ambos,
a espécie andrógina) de que o terceiro desapareceu, restando os outros dois. A
criatura humana, integrando ambas as naturezas era esférica, unificando o
masculino solar e o feminino terreno, e, uma vez separadas, cada metade é uma
téssera da outra, e ambas procuram, mediante eros-amor, reunificar-se, pois cada um procura a sua metade. [16] A figura não deixou de ser
considerada, nos meios socráticos e platónicos, como um produto da exaltada
imaginação do comediógrafo que foi Aristófanes. Para A. M. Lisboa, um homem é um sinal do Oriente e uma mulher
a mais brilhante estrela do firmamento. [17] O poeta distingue, mas na junção pretende visionar uma integração dos opostos na realidade num
ser mais rico. [18]
Que
dizer de SAGIR? Antevisão hierofânica, apofática, em que, transpostas as
hipóstases da antiga gnose (esoterismo, hibridismo, naturalismo, panteísmo …)
ao poeta é consentida uma nova hierofania, uma, como vem no Salmista (Sl. 134,
9) entre tantos “sinais e prodígios”, cuja anunciação só é imaginável
recorrendo ao antropomorfismo. Algo ocorre como anamnese do mito em que a
teofania narra a criação do homem e logo, ex-homo, da mulher, assim
gerada da matéria adâmica. Cremos que a leitura mais pura e sublime não passará
do real: homem e mulher geram-se um ao outro. Para a mulher, se nascer
afastada, o primeiro homem pode não ser o Pai, mas para o homem a primeira
mulher é sempre a Mãe. Com ela somos sepultados quando nos morre. Tenho saudades dum túmulo verde cravejado de
lágrimas onde vivi – eu e Sagir. Terminou. [19] Sagir, mãe e esposa. Em busca da sagesse, do devir sage, cujo nome, feminino, é Sabedoria?
Uma
Antropologia que mereça o nome deve incluir tanto o conhecimento do homem em si
mesmo, como nas relações com o outro, a começar pelos semelhantes, relações
essas que se estudam na Ética, que abrange a Moral e a Política, a Arte ficando
coutada para a Estética. O entendimento do Surrealismo por A.M. Lisboa envolve
tais vectores, com tónica ética, por esta incluir a liberdade absoluta do Poeta
em face dos Partidos ideológico-políticos, e por reconhecer o requisito de
transformação social em vista da elevação da dignidade humana.
O
homem só se apresenta válido socialmente quando se afirma em combate a outro …
Trata-se na verdade, da negação do que nos vem com a vida do homem civilizado,
quer no plano moral, quer no total da vida, sabendo, de antemão, que não nos é
dada outra forma de viver para além da que foi por nós conquistada: da que se
vai encontrando e transformando.
[20]
O
nosso autor pensou e criou num tempo de, por um lado, uma ditadura política e,
de outro, uma ditadura cultural, de tónica literária. As corporações apostadas
na conquista do poder político, não dispondo, nem de liberdade jurídica, nem de
potencialidade armada para essa conquista, acarinharam e promoveram as artes
cuja natureza pudesse transmitir contestação, gerar e madurar oposição,
orientar a sociedade para os objetivos das aludidas corporações, de tal forma
que a cultura oficial era menosprezada, enquanto a que marcava um sinal de
oposição era olhada com apreço e, até, com idolatria. A literatura foi veículo
preferencial. O neo-realismo (e a sua faceta mais radical, o realismo
socialista) constituíram-se como que num hegemonismo que passou vitorioso
através do Estado Novo, sendo albergado até nas publicações mais próximas do
regime, e persistiu, e ainda persiste, pois a nossa literatura, nos seus mais
premiados escritores, quase não vai além dos tópicos e dos tropos
neo-realistas. O Poeta parece ter havido consciência de como nos formulários em
confronto acabavam por ser cerceados os direitos individuais a favor dos
projectos colectivos, ou massivos. Pressente que a nova variante, o
surrealismo, era visada como eventual vítima a imolar à cracia neo-realista, e
clama: Retirem da minha frente os que jogam com o Povo e o Homem da Rua. [21]
Quem não vislumbra, aqui, os novelistas do neo-realismo? A. M. Lisboa teme o
pior: O homem político apenas pode formar
uma sociedade pobre e escrava. [22]
Ao apresentar como “grande desígnio” a
conquista da Liberdade, o sonho de “viver livre”, afirma, com afoiteza: A conquista da Liberdade e do amor são (sic) […] conquistas individuais e só com indivíduos as podemos fazer … A
liberdade do Espírito é incompatível com o seu aprisionamento. [23] Esclarece: Não somos assim contra a ordem, o trabalho, o progresso, a família, a
pátria, o conhecimento estabelecido (religioso, filosófico, científico) mas na
e pela Liberdade, Amor e Conhecimento que lhes preside, preferimos estes, [24] mas o mundo social, tal como está
organizado, é um obstáculo à felicidade. Aí o Poeta encontra-se com outro mundo que sendo também do homem não é o do homem, [25] por isso
que o destino da sociedade jamais coincide com o do poeta. E deste modo
atingimos o patamar superior da Ética (transcendental), a Escatologia.
O
Mal existe. Para devir inexistente é necessário anulá-lo, extingui-lo. Tomamos
a liberdade de utilizar nomes teológicos para melhor compreendermos. Se Deus é
o nome de Bem e Diabo o nome do Mal, duas ideias de tal modo contraditórias e
contrárias, (que não é possível conjugá-los em ôntica unidade, nem lógica), só
a anulação de um deles ou a solução num só parece solver o grave problema da
realidade em presença – realidade do mal, do defeito, do erro, de tudo quanto
causa dor, sofrimento, remorso e morte. Estamos no domínio da Moral, em que Bem
e Mal são conjugados, cada um deles como acto moral que, segundo uns é
consequência, e, segundo outros, precedência, e vice-versa. No ver de A. M.
Lisboa, o acto moral é consequência, não precedência: é efeito de um acto, ou
de uma ação, não se encontra pré-determinado como necessidade, ocorrendo nos
limites da liberdade. [26]
Pensador
marginalizado e também por seus insólitos costumes homiziado, Raúl Leal
(Henoch) achou acolhimento entre os Surrealistas. Ele de algum modo os
antecedeu, no visionarismo, no libertinismo e no profetismo vertiginoso,
patente no poema sagrado, em língua francesa, Antéchrist et la Gloire du Saint-Esprit
(1920) em que celebra a ansiada idade paraclética e preconiza a
dissolução do príncipe do Mal, Satã. Anunciou o Paracletianismo sob o qual
todas as culturas e religiões convergiriam, e onde todos os contrários seriam
anulados. Em boa verdade, talvez sem o saber, Raul Leal levou bem mais longe
uma heterodoxia chamada apocatástase, de Orígenes, do século III. Este
propôs que o Demónio, criado Lucifer, Anjo da Luz, errou, tornando-se Príncipe
do Mal, sendo castigado e afastado da corte celestial. Orígenes admitiu que
este castigo não seria eterno, mas temporário, e que, um dia, no fim dos
tempos, ele seria reintegrado na condição perdida, e perdoado por virtude da
misericórdia de quem o criara. De algum modo Orígenes terá aplicado aqui a
parábola do Filho Pródigo (Lc.,15, 11-32) que se afastou do pai e do irmão,
para viver no mundo uma vida dissoluta e, alfim, repeso, voltou e o pai
acolheu-o no abraço da misericórdia. Assim, o Criador perante o Anjo Caído. O
teologuema de Orígenes não foi aceite pela Teologia Moral seguida pelos
cristãos, mas Giovani Papini retomou o enigma na obra Il Diavolo (1935)
cujo tema é a redenção de Lucifer e, pois, o fim do Mal. Ora, Raul Leal levou
isto a um ponto em que Satã se funde com o Paráclito, [27] defendendo a fusão dos contrários, muito para além da figura escolástica que se nomina no termo coincidentia
oppositorum. Idêntica visão nos oferece A. M. Lisboa quando
apresenta a surrealidade como sendo para além das causas deficientes e
requerendo a transcensão dos arquétipos (divino e diabólico) fundidos pelo desejo e vontade de amar e
odiar. [28]
De
modo análogo ao que sucede em outros pensadores, talvez Bem e Mal sejam
entendidos como substâncias, espécies de deuses remodeláveis e
convertíveis, mas a lógica gramatical e fenomenológica aduz que bem e mal são
advérbios que qualificam verbos, constituindo acidentes da ação. Por isso se
diz, no prolóquio popular, “não há bem que sempre dure, nem mal que ature” e da
mais antiga ética aprendemos que algo pode saber bem fazendo mal, ou
que algo sabendo mal pode fazer bem, ou que, em síntese, nos leva a
fixar que os acidentes não são absolutos, mas relativos, e que só têm a duração
do acto verbal, embora sejam infinitamente repetíveis enquanto causas
deficientes (ausência do bem), ou eficientes (ausência do mal).
A
morte não é omissa. No caso da visão do poeta a morte não existe como absoluto,
é também uma causa ou consequência de vida. Ela é sempre vida, mesmo a morte humana, sendo que a nossa Morte é anterior ao nascimento e na vida, aqui, enriquece-se a experiência da morte. [29] Tal experiência conduz a um saber
escatológico, mediante a análise do mito, que gera novos mitos, incluindo o do
“utopismo idealista”.
Não
consente, este, outro acto perpétuo que não derive do amor. É este o cerne da
Idade de Ouro, equivalente da paraclética insinuada por Raul Leal e pelo
futurismo transcendental: Para nós
(surrealistas) a Idade de Ouro é de todos os tempos e nasce da multiplicação da
vida de todos os Poetas, pois todos os Poetas a possuem, independentemente do
ouro-moeda, eles são Magos! E a Idade de Ouro futura não é mais do que a
ressurreição poética de todos os Homens. [30] Usando a terminologia creencial muitas vezes ignorada pelos
nossos escritores e letrados: ressurreição e vida eterna. Com uma diferença,
talvez – a ressurreição ocorre a cada instante da vida – morremos e
ressuscitamos. A Idade de Ouro acontece sempre que por lei do amor e da
liberdade, produzimos comunhão universal.
NOTAS
1. Carta
(9-5-1951) para Mário Cesariny, Cf. M. Cesariny, Poesia de A. M.
Lisboa, Lisboa, Assírio & Alvim, 1977, p.292.
2. A. M.
Lisboa, Erro Próprio seguido de Operação do Sol e de Alguns
Personagens, pref. M. Cesariny, Guimarães Ed., Lisboa, 1962, p. 18.
3. J. Marinho, Significado e Valor
da Metafísica, Lisboa, INCM, 1996, p. 408.
4. A. M.
Lisboa, Erro Próprio, p. 19. Consideramos primacial analisar os escritos
do Autor a partir de dentro, metendo as influências francesas em suspenso.
5. A.
M. Lisboa, Isso, Ontem Único, Coimbra, 1953, p.26.
6. Id. ib., p.12.
7. Id. ib., p.20.
8. P.
Gomes, Dicionário de Filosofia Portuguesa, Lisboa, 2ª edição, D. Quixote,
2004, pp. 216-220.
9. Cf. P. Gomes, “Gnose e Liberdade
(sobre Figanière)”, in Pensamento Português, 4º série, Lisboa, Ed. do
Templo, 1979, pp. 119-172. A obra do Visconde intitula-se Estudos
Esotéricos. Submundo, Mundo e Supramundo, Porto, Chardron, 1889.
Confirma-se a equivalência com os conceitos do existencialismo germânico – untergrund,
grund, übergrund.
10. Aristóteles, Tópicos, 164 b.
11. A.
M. Lisboa, Erro Próprio, ed. cit., p. 23.
12. Id. ib., p. 28.
13. Id. ib., p. 28.
14. A. M. Lisboa, Isso Ontem Único,
Lisboa, Tip Ideal, s.d., (1953), pp. 3 e 4.
15. Id.,
Erro Próprio, ed. cit., p. 20.
16. Platão, O Simpósio, 189 c –
193 e.
17. Carta de 9-5-1951 para Cesariny,
cf. A. M. Lisboa, Poesia, sel. de M. Cesariny, 1977, p. 287.
18. A. M. Lisboa, Isso ontem Único,
ed. cit., p.27.
19. A. M. Lisboa, Erro Próprio,
ed. cit., p.20.
20. Id., ob.
cit., p. 41.
21. Id., Erro
Próprio, ed. cit., p. 25.
22. Id., id., p. 28.
23. Id., id., p. 25.
24. A.
M. Lisboa “Aviso a Tempo por Causa do Tempo”, cit. apud Carlos F. Moisés,
Poesia de A. M. L., ed. Cesariny, 1977, p. 380.
25. A.
M. Lisboa, Erro Próprio, ed. cit., p. 86.
26. A. M. Lisboa, Isso Ontem Único,
ed. cit., p. 14.
27. P.
Gomes, “Raul Leal: A Vertigem da Utopia Absoluta”, in Calafate (dir.) Pedro, História
do Pensamento Filosófico, vol. V/1, Lisboa, Ed. Caminho, 2000, pp.
263-272.
28. A. M. Lisboa, Erro Próprio,
ed. cit., p. 49.
29. A. M. Lisboa, Isso Ontem Único,
ed. cit., p. 11.
30. Id.,
Erro Próprio, ed. cit., p. 49.
*****
Texto
originalmente publicado em A ideia -
Revista de cultura libertária – II série – vol. 16 – n.º 71-72 – Outono de
2013, aqui reproduzido graças à autorização de seu diretor, António Cândido
Franco. Página ilustrada com obras de Nelson de Paula (Brasil).
Organização a
cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista
convidado: Nelson de Paula
Agradecimentos
a António Cândido Franco, Maria Estela Guedes, Carlos Felipe Moisés e Nicolau
Saião
Imagens ©
Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o
projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha
Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e
Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio
2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de
Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde
2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de
Floriano Martins e Márcio Simões.
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