No importante ensaio de Maria Lúcia Dal Farra sobre Herberto
Helder, A Alquimia da Linguagem (Moraes Editora, Lisboa),
encontrei, entre outras informações relevantes, a expressão segunda
vanguarda. Cito o trecho: …o surrealismo começa por cavar espaço à
"segunda vanguarda" que ele traz no seu bojo.
Consultada, esclareceu-me a poeta e ensaísta: No contexto
português, chama-se Primeira Vanguarda ao Orpheu e "segunda" ao
Surrealismo Português - daí porque use entre aspas a
expressão, que é da própria nomenclatura dos surrealistas portugueses.
Em outras palavras: o surrealismo português - assim como poetas que mais
ou menos declaradamente tiveram relações com os grupos encabeçados por Cesariny
e contemporâneos, inclusive Herberto Helder - estaria para Orfeu (entenda-se:
para a geração de Pessoa, Sá Carneiro, Almada Negreiros, Montalvor) assim como
a segunda vanguarda para a primeira vanguarda.
Até aí, temos algo que se assemelha a uma proporção, uma regra de três
da aritmética. Interessa extrapolar e projetar essa noção, passando a aplicá-la
de um modo não mais restrito apenas aos movimentos portugueses e explorando
suas consequências. Imediatamente se perceberá que houve segundas vanguardas no
mundo todo. É possível demonstrar que, da geração beat, passando
por um sem-número de movimentos latino-americanos e europeus, até, é claro, os
surrealistas portugueses, pode-se falar em segunda vanguarda. E que
esta segunda vanguarda foi, ou é, sob vários aspectos, mais consistente que a
primeira.
Semelhante perspectiva - enxergando dois ciclos vanguardistas, um deles
entre 1907 e 1924, outro entre 1945 e alguma data na década de 1960 - corrige
um vezo reacionário, disseminado na crítica. Consiste em rotular manifestações
- surrealismos mais recentes; geração beat; e também Willer &
friends, é claro - como coisa de vanguarda; e assim descartá-los como algo
antigo, ultrapassado. Têm o mesmo sentido rótulos como vanguarda tardia,
tardo-surrealismo, etc. Os que buscam ou representam o novo são, assim,
desqualificados como sendo a retomada de algo velho, datado. Dupla
desqualificação, ao se pensar em todas as teses condenando os vanguardismos:
aquela de Ehnzensberger sobre aporias da vanguarda (aporia é um erro lógico, e
a crítica de Ehnzensberger é puramente formal, restrita ao sentido do termo
vanguarda, e não ao que aconteceu, ao que vanguardistas de fato fizeram), mais
tudo o que já foi escrito sobre irracionalismo entendido como inconsequência no
âmbito de movimentos vanguardistas.
Em outras palavras, a beat não foi um vanguardismo
tardio, como a caraterizam muitos de seus comentaristas, mas um movimento
típico de segunda vanguarda. Representou o novo e foi inovadora naquele
contexto, do mesmo modo como futurismo, dada e surrealismo representaram o
novo, de diferentes modos, em outro momento.
As vanguardas do início do século XX não foram superadas pelas reações,
as contrarreformas literárias da década de 30 em diante: a Geração de 45,
brasileira, os formalismos anglo-americanos mais tradicionalistas, caudatários
do T. S. Eliot de segunda fase, de Quarta-feira de Cinzas, a
reversão de Aragon, Eluard e outros em favor do academicismo e do realismo
socialista na França, etc. Foram, isso sim, incorporadas, assimiladas e
revitalizadas pelos movimentos do pós-Segunda Guerra, da segunda metade do
século XX. Responderam à reação conservadora das décadas de 1930 e 1940,
composta pelos assim chamados pós-modernismos que vieram à tona durante um
período de horrores na história da civilização ocidental.
Não sou um entusiasta da diacronia. Objetei, em várias ocasiões, à
descrição da história da literatura e das artes como série temporal, sucessão
de movimentos e tendências: romantismo, simbolismo, cubismo, futurismo, etc.
Prefiro sincronias. Entre outros lugares, em meu prefácio à obra completa de
Lautréamont (Iluminuras, agora em segunda edição) argumentei que tudo aquilo de
transgressão, experimentação radical e desvario que se pudesse atribuir ao
surrealismo já estava lá durante o período simbolista, na belle époque,
em Lautréamont, Rimbaud, Corbière, Germain Nouveau, Charles Cros, Jarry. Quem
vê o surrealismo exclusivamente como apologia do delírio, criticando-o pelo
irracionalismo, comete um equívoco. Deixa de compará-lo ao caráter frenético do
período que o precedeu, entre a vigência do simbolismo e o despontar das
vanguardas, e que, mais apropriadamente, pode ser visto como exacerbação do
romantismo e da influência baudelairiana, por sua negatividade extrema e
radicalidade na experimentação. A loucura havia campeado nas décadas
precedentes. Surrealistas lhe deram continuidade; mas tentaram atualizá-la com
o acréscimo da contribuição psicanalítica, do pensamento marxista e de avanços
científicos que alteraram a própria imagem de mundo.
Também já citei e retomei a argumentação de Octavio Paz, Edmund Wilson e
outros, de que o simbolismo foi um verdadeiro romantismo, e de que movimentos
de vanguarda deram prosseguimento ao simbolismo, em lugar de negá-lo. Essa
continuidade foi reconhecida por Breton, levando-o a afirmar, em Entrétiens,
sua coletânea de entrevistas, que …a crítica atual é injusta com o
simbolismo. Você diz que o surrealismo não procurou valorizá-lo: historicamente
resultava inevitável que se opusesse a ele, porém a crítica não tinha porque
fazer-lhe restrições. Era quem devia encontrar de novo, e pôr em seu lugar a
correia de transmissão.
A mesma correia de transmissão funcionou ativamente em países
hispano-americanos, e na própria Espanha: um modernismo trazido principalmente
por Rubén Darío, saído do simbolismo francês, precedeu os movimentos
propriamente vanguardistas. Mas não no Brasil: nossos modernistas de 22 deram
as costas ao simbolismo.
Em resumo: ao longo de dois séculos e meio, desde William Blake e da
primeira geração romântica até hoje, tivemos modos da revolução
romântica, manifestação da tradição da ruptura, marcada pela crítica,
contraposta ao classicismo (usando termos e categorias de Octavio Paz em Os
Filhos do Barro).
Pelos mesmos motivos, já coloquei sob suspeita a classificação do
surrealismo como vanguarda, por sua duração e seu alcance. Sob a ótica
surrealista, as demais vanguardas teriam apresentado e discutido questões
formais, do campo da estética, ligadas apenas à expressão artística e
literária. Já o surrealismo estaria voltado para a vida, o homem em sua
totalidade e a transformação do mundo. A produção artística e literária foi o
modo de expressar e realizar esse ímpeto transformador. Além disso, cronologicamente
ultrapassou o período tipicamente vanguardista que antecedeu ou sucedeu
imediatamente a Primeira Guerra Mundial. Formado em 1919 (adotando como marco
inicial a criação da revista Littérature, coincidindo com a
descoberta e primeiras experiências de escrita automática), continuou a existir
como movimento organizado, ao qual podem ser associadas manifestações
importantes e obras de qualidade, até a década de 1960. E, em certa medida, até
hoje, pois há, em diversas partes do mundo, no Brasil inclusive, autores,
manifestações, grupos e publicações que se apresentam como surrealistas. Nas
décadas de 1940 e 50, questionou e buscou ultrapassar a dicotomia imposta pela
Guerra Fria, a opção entre estalinismo e macarthismo, regime soviético ou
sociedade capitalista. Ou seja: em suas manifestações posteriores à Segunda
Guerra Mundial, o surrealismo francês, bretoniano, e movimentos com maior ou
menor ligação direta com esse núcleo francês já se voltaram para temas e
discussões típicas de segunda vanguarda.
Por isso, no tocante ao ciclo propriamente vanguardista das primeiras
décadas do século XX, em vez de uma sucessão de movimentos, pode ser mais
esclarecedor enxergar duas grandes colunas, ou vigas mestras: uma delas,
imagético-surreal; outra, formalista-construtivista. Algo como André Breton
mais García Lorca versus Ezra Pound mais T. S. Eliot.
Espontaneidade, paixão, culto à imaginação criadora, fusão ou confusão de
poesia e vida, a criação como possessão (pelo inconsciente em Breton,
pelo daimon ou duende em Lorca), de um lado;
criação como resultado de uma reflexão racional, mediação cerebral, separação
entre a esfera simbólica, autônoma, e a vida, primado da experimentação e da
pesquisa, de outro.
É uma polaridade que apresenta semelhanças com outras, anteriores, pelo
contraste entre duas visões do processo de criação e da relação entre linguagem
e mundo, a esfera simbólica e aquela da vida: simbolismo e parnasianismo na
segunda metade do século XIX (por mais que ambos, formalismos modernos e
surrealismo, houvessem nascido no mesmo solo simbolista); românticos e
clássicos no início daquele século; e talvez os barrocos e clássicos nos dois
séculos anteriores. Muito aproximativamente, seriam variantes do apolíneo e
dionisíaco, ou de racionalismo e misticismo. Ou não tão aproximativamente, se
pensarmos na identificação, segundo Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda
Mendonça, em seu posfácio a Iluminuras - Gravuras Campestres de
Rimbaud (editado pela Iluminuras) de Mallarmé a um pólo apolíneo, cerebral, e
do desregramento de Rimbaud a um pólo dionisíaco, dentro da constelação
simbolista.
No entanto, todas essas restrições à noção de vanguarda, focalizando
sincronias em momentos distintos da história, não impedem que se faça um
mapeamento das segundas vanguardas. Será o exame do que já se conhece - mas com
uma percepção mais clara de como ocorreu a retomada do novo, e não apenas a
repetição do que houve antes. Se vanguardas foram uma crítica aos cânones
vigentes e à ordem estabelecida, as segundas vanguardas podem ter sido uma
metacrítica.
O que vem a seguir é sobre literatura; e sobre poesia em primeira
instância. Artes plásticas são mencionadas de modo lateral, apesar da expressão
visual ter sido decisiva em todos esses momentos. Apollinaire, ideólogo da
modernidade por excelência, pensou o novo a partir da contribuição de Picasso;
formulou um modernismo refletindo sobre o cubismo. No segundo ciclo das
vanguardas, arte pop sem dúvida é um componente especialmente
importante. Mas prefiro restringir meu escopo, assim evitando a multiplicação
de casos e de exemplos, além de fugir do diletantismo - de poesia sei alguma
coisa; de artes plásticas também, mas não sou historiador da arte ou crítico de
artes visuais. Além disso, em artes plásticas a relação com um mercado em expansão
provocou uma espécie de fragmentação, tornando mais difícil a distinção entre
movimento e modismo.
O mesmo com relação à música. Mas, desde já, é possível observar que o
ciclo da segunda vanguarda é mais inclusivo, em matéria de sistemas de signos. Ou
(usando o jargão consagrado e um tanto gasto), é mais característica a
intersemiose, a expressão por multimeios, por mais que já houvesse sido
antecipada pelas primeiras vanguardas, que criaram novos meios, modos de
expressão e suportes, como a colagem e o objeto, além de se associarem ao
nascente cinema.
Exemplos da nova intersemiose: a relação íntima entre a beat e
o jazz bop, modelo do processo criativo pela espontaneidade para
Kerouac e Ginsberg. Ou então, os surrealistas de Chicago, do grupo liderado por
Franklin e Penélope Rosemont, sustentando que o blues é uma
modalidade musical essencialmente surrealista, nisso distanciando-se da surdez
musical de Breton.
Os beat foram especialmente musicais. Basta lembrar as
apresentações e gravações de Ginsberg com seu próprio conjunto, com Bob Dylan,
the Fudges e Clash (mais a respeito em minha coletânea de Ginsberg, Uivo,
Kaddish e outros poemas, na edição de 1999 da L&PM); de William
Burroughs com Patty Smith, Laurie Anderson, Tom Waits e outros; e a trajetória
especificamente musical de Michael McClure, com Bob Dylan, The Band, e seu
próprio Freewheling’ McClure Montana (conforme a recente edição brasileira de
McClure, A nova visão: de Blake aos beats, Azougue editorial).
A expressão multimeios ou multimídia, além
de batida, é insuficiente. No âmbito da beat e de outros
autores e movimentos da segunda vanguarda, a intersemiose tem o sentido de uma
busca da linguagem total, não só incorporando distintos sistemas de signos, mas
procurando transcendê-los. Aspiravam à palavra plena, mágica, equivalente
ao logos criador. Seus resultados são, não apenas a associação
com músicos, artistas visuais, e com cineastas e mais tarde com videomakers,
além de, no final, avançarem sobre a internet, porém a maior importância e valorização
da intervenção, da performance, do happening, a partir da década de 1960. As
idéias e atuação de Antonin Artaud foram decisivas para essa ampliação, não só
do repertório, mas dos propósitos e alcance de sua expressão. Cabe lembrar que
um dos primeiros volumes da Pocket Poet Series da City Lights Books de Lawrence
Ferlinghetti foi uma coletânea de Artaud; e que, quando Ginsberg conheceu Carl
Solomon em um hospício em 1949, este havia acabado de voltar da França, onde
assistira a uma derradeira apresentação pública de Artaud. Outro autor
referencial, nessa tentativa de ampliação do alcance do signo: Henry Michaux,
com sua criação textual e visual alucinatória e alucinógena, e que partilhou
com Artaud a escrita por glossolalias, fonemas não-semantizados.
Quem mais, além da beat e dos já mencionados
surrealistas portugueses, comporia o ciclo das segundas vanguardas? Assim como
nas primeiras vanguardas, pode-se identificar um pólo formalista e outro
surrealista. Quanto ao pólo formalista, sua principal expressão é a poesia
concreta, o concretismo brasileiro. São corretas - sob o ponto de vista
estritamente formalista, note-se - as afirmações, em tom eufórico (e a meu ver
abusando um bocado do pensamento analógico e da generalização), de Haroldo de
Campos sobre uma poesia de exportação brasileira, entre outros
lugares em um de seus ensaios publicado na revista portuguesa Colóquio
Letras. Poesia dele, entenda-se, e dos demais autores ligados ao
concretismo. A análise mais sociológica, de como foi possível o Brasil
destacar-se na produção de algo com essas características, e a discussão de se
isso não é um prolongamento, elaborado e academicamente avalizado, do tradicional
beletrismo das nossas elites, será feita em outra ocasião. Reconhecendo tudo o
que a contribuição concreta tem de substancioso e instigante (inclusive naquilo
de que se diverge, mas que suscita debate), nosso pólo
formalista-construtivista acabou por constituir-se também em um pólo da boa
conduta pessoal - a não ser em polêmicas estritamente literárias - e da
pesquisa regrada, semelhante à produção de teses universitárias.
Entre os movimentos tocados pela poesia concreta, sem dúvida os
italianos do Carta 60, de Lello Voce. E um poeta português como Ernesto Mello e
Castro. Aliás, em Portugal os imagéticos e os experimentalistas se entenderam
melhor que aqui, como já observei ao comentar surrealismo português. Há mais;
muito mais. E o formalismo brasileiro, por sua vez, não se esgota na poesia
concreta. Compuseram-no também a Poesia Práxis de Mário Chamie; o
grupo mineiro Tendência - Fábio Lucas, Afonso Ávila e Affonso
Romano de Sant’Anna, e outras variantes menores do construtivismo e
experimentalismo das décadas de 1950 e 1960. A versão mais cientificista, o
poema-processo de Wladimir Dias-Pino. Houve neoconcretismo, do qual Ferreira
Gullar chegou a fazer parte. E o suplemento Poesia-Experiência do Jornal
do Brasil, dirigido por Mário Faustino foi, todo ele, uma expressão
segundo-vanguardista.
No pólo imagético-surreal há muitas manifestações. Provavelmente, a mais
importante foi o surrealismo português, pela obra e conduta de seus integrantes
- conforme já comentei aqui, em A permanência da anarquia: a propósito
de uma antologia do surrealismo português, em Agulha Revista de Cultura #
10 - e por suas consequências, pelo que teve de estimulante para a importante
poesia contemporânea portuguesa.
Como já observei, as segundas vanguardas floresceram em solo americano.
Nos Estados Unidos, além de pelo menos dois movimentos surrealistas, o de
Chicago, liderado por Franklin e Penélope Rosemont, que publica a revista Race
Traitor e que teve a participação de um poeta especialmente
importante, Philip Lamantia (que também esteve no alvorecer da beat,
na leitura da Six Gallery), e o Group Surrealist e Hydra de Allan Graubard
(mais a respeito na entrevista de Graubard a Floriano Martins, nesta edição
de Agulha Revista de Cultura), há a The last avant-garde,
nome que ganhou o grupo de Nova York da década de 1950 integrado por dois
poetas notáveis, John Ashberry e Frank O’Hara.
Hibridismo, aí está algo que se pode observar nos segundo-vanguardismos
norte-americanos. Beat foi, entre outras coisas, um encontro
das duas vertentes, do formalismo e do surrealismo. Ginsberg mostrou, em
ensaios e conferências, como foi um leitor de Pound, como absorveu sua
prosódia. A principal matriz de sua criação foi o objetivismo de William Carlos
Williams (principal representante de um primeiro ciclo vanguardista
especificamente norte-americano), por sua vez inspirado no imagismo de Pound.
Objetivismo, porém, em um paradoxo apenas aparente, em sua versão mais mística,
alucinatória e delirante. Ligados à beat, os poundianos do Black Mountain College:
Charles Olson, Robert Creeley, Robert Duncan. Ao mesmo tempo, Lawrence Ferlinghetti promovia o trânsito, inclusive
pessoalmente, com seus estágios na França, do surrealismo para os Estados
Unidos. Outro dos primeiros volumes da sua City Lights foi Jacques
Prévert, Paroles. Ginsberg e Solomon, do hospício onde estavam
internados, escreviam para Malcolm de Chazal, o surrealista que acabava de
publicar Sens-plastique. Burroughs, junto com Brion Gyzim,
reinventava a colagem surrealista, na forma de cut-up. Corso
reinventava a imagética surrealista. Em Ashberry e O’Hara também já foi
observada a afinidade com surrealismo.
Hibridismo e sincretismo também são característicos de Roberto Piva, o
poeta brasileiro que se posicionou em um pólo oposto, no Brasil, aos
formalismos, ao aderir ao desregramento rimbaudiano e perseguir a síntese de
poesia e vida. Conforme já observei em outras ocasiões (inclusive no posfácio
a Um Estrangeiro na Legião, ed. Globo, volume I das poesias
reunidas de Piva), tanto em Paranóia quanto em Coxas ele
nos oferece releituras surreais do nosso modernismo de 22, de Mário e Oswald,
e, ao mesmo tempo, da beat.
O levantamento de movimentos literários dos continentes americanos que,
nesse enfoque aqui proposto, corresponderiam às segundas vanguardas, é um
empreendimento que está sendo realizado por Floriano Martins. Em um primeiro
momento, examinando os latino-americanos afins ou ligados ao surrealismo,
em O Começo da Busca (Escrituras, 2001), mas sem preocupar-se
com um recorte separando autores e movimentos mais característicos da primeira
e segunda geração vanguardista (inclusive para respeitar continuidades entre
uns e outros, no âmbito do surrealismo). Em um segundo momento - Un
nuevo Continente (Andrómeda, 2004) -, abrangendo, além de caribenhos,
os canadenses e estadunidenses. Em um terceiro, em preparação, examinando
movimentos, grupos e publicações características da década de 1960. Limito-me a
mencionar aqueles movimentos e publicações da década de 1960 com os quais tive
contato direto: El Corno Emplumado do México, de Sergio
Mondragón e Margareth Randall; El Techo de la Ballena venezuelano,
do qual fez parte Juan Calzadilla, que interagiu com o surrealismo
francês; Eco Contemporáneo de Miguel Grimberg e seu équipo
mufado, antecipador da contracultura e das grandes mobilizações daquela
década; o Manifiesto Tzántico equatoriano, com Ulises
Estrella. Para a década de 1960 latino-americana, além dos trabalhos em
andamento de Floriano Martins, é uma referência bibliográfica recomendável - e
já examinada aqui, em Agulha Revista de Cultura - Los
años de la fiebre de Ulises Estrella (Ed. Libresa, Quito).
Haveria mais? Sim, e muito. É segunda vanguarda o exacerbado
experimentalismo doOuLiPo francês. E a entrada em cena de um personagem como
Boris Vian, por sua vez ligado ao Colégio de Patafísica, dos continuadores de
Alfred Jarry. Isso, apenas para mostrar aonde pode levar esse tipo de
prospecção.
Interessa, mais que o mapeamento detalhado do ciclo
segundo-vanguardista, mostrar o que mudou, o que foi acrescentado à geração
anterior. De hibridismo e intersemiose, já falei. Há que comentar, ainda, a
dimensão política e aquela místico-religiosa da segunda vanguarda.
Quanto à política, dessa vez não ocorreu nada semelhante à adesão de
Marinetti e outros futuristas italianos ao fascismo de Mussolini. E algo como
autores batendo à porta do PC ortodoxo, de orientação soviética, foi exceção.
Antes, é mais representativo da postura política no âmbito desse ciclo o modo
como a beat foi execrada, simultaneamente, pela esquerda
ortodoxa norte-americana e pelo establishment conservador.
Exemplar, sob esse aspecto, é Ginsberg, ao mesmo tempo em que era expulso de
Cuba e da Tchecoslováquia, ser fichado e vigiado pelo FBI. Vale como exemplo,
também, a resistência anti-salazarista do surrealismo português e, ao mesmo
tempo, seu confronto com o neo-realismo da esquerda tradicional.
Mais importante, o modo como movimentos literários e artísticos se projetaram no
político e no social, assim buscando a superação da dicotomia entre poesia e
vida. Novamente, o melhor exemplo vem da raiz beat da
contracultura e, por extensão, das rebeliões juvenis da década de 1960; e, em
consequência, de uma abertura real, a meu ver, no âmbito da sociedade burguesa.
Houve, ainda, um complexo tecido de relações entre os movimentos
latino-americanos aqui citados e as revoltas, rebeliões e convulsões políticas
em seus países.
Quanto à dimensão místico-religiosa, sabe-se que, desde a primeira
geração romântica, o repúdio à religião oficial e a proclamação da morte de
Deus foram uma crítica religiosa, à dessacralização do mundo. Tem o mesmo
sentido a influência da tradição místico-esotérica ocidental e do ocultismo em
simbolistas e no surrealismo. Já na segunda vanguarda, há mais autores e
movimentos que, universalistas, vão beber diretamente na fonte oriental, a
exemplo do budismo tibetano praticado por Ginsberg, ou do budismo de Sergio
Mondragón. E no xamanismo de culturas arcaicas e de povos pré-colombianos, como
se observa no Roberto Piva de Ciclones; ou em ambos, Oriente e
povos indígenas, como em Gary Snyder, com relação a índios norte-americanos, ou
Ginsberg, que morou na Índia e bebeu o daime ou ayahuasca no Peru.
Temos aqui o início, apenas, de uma prospecção e de uma possível
discussão. Interessa, penso, entender, nesse contexto, a questão do novo.
Pode-se fazê-lo citando Baudelaire nos quartetos finais de A
Viagem, o poema que encerra As Flores do Mal [na tradução
de Ivan Junqueira]:
Ó Morte, velho capitão, é tempo! Às velas!
Este país enfara, ó Morte! Para frente!
Se o mar e o céu recobre o luto das procelas,
Em nossos corações brilha uma chama ardente!
Verte-nos teu veneno, ele é que nos conforta!
Queremos, tanto o cérebro nos arde em fogo,
Ir ao fundo do abismo, Inferno ou Céu, que importa?
Para encontrar no Ignoto o que ele tem de novo!
Nesse poema, o próprio Baudelaire grifou o vocábulo novo.
Leitor de Hegel, o poeta de As Flores do Mal, tanto ali quanto em
suas observações sobre a modernidade entendia o novo como negação do que está
aí, de um mundo e uma sociedade a serem questionados e combatidos. Esse
questionamento, dando prosseguimento à rebelião individual, foi ampliado e
revitalizado no âmbito das segundas vanguardas. E também em manifestações mais
recentes, fazendo, pelo menos, que a paisagem oferecida pela contemporaneidade
não se limite ao paredão cinzento do conformismo.
Organização
a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista
convidado: Jorge de Lima
Imagens ©
Acervo Resto do Mundo
Esta
edição integra o projeto de séries especiais da Agulha
Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha
Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial
de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de
Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua
espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas
de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a
coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.
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