quarta-feira, 18 de maio de 2016

CLAUDIO WILLER | A segunda vanguarda


No importante ensaio de Maria Lúcia Dal Farra sobre Herberto Helder, A Alquimia da Linguagem (Moraes Editora, Lisboa), encontrei, entre outras informações relevantes, a expressão segunda vanguarda. Cito o trecho: …o surrealismo começa por cavar espaço à "segunda vanguarda" que ele traz no seu bojo.
Consultada, esclareceu-me a poeta e ensaísta: No contexto português, chama-se Primeira Vanguarda ao Orpheu e "segunda" ao Surrealismo Português daí porque use entre aspas a expressão, que é da própria nomenclatura dos surrealistas portugueses.
Em outras palavras: o surrealismo português - assim como poetas que mais ou menos declaradamente tiveram relações com os grupos encabeçados por Cesariny e contemporâneos, inclusive Herberto Helder - estaria para Orfeu (entenda-se: para a geração de Pessoa, Sá Carneiro, Almada Negreiros, Montalvor) assim como a segunda vanguarda para a primeira vanguarda.
Até aí, temos algo que se assemelha a uma proporção, uma regra de três da aritmética. Interessa extrapolar e projetar essa noção, passando a aplicá-la de um modo não mais restrito apenas aos movimentos portugueses e explorando suas consequências. Imediatamente se perceberá que houve segundas vanguardas no mundo todo. É possível demonstrar que, da geração beat, passando por um sem-número de movimentos latino-americanos e europeus, até, é claro, os surrealistas portugueses, pode-se falar em segunda vanguarda. E que esta segunda vanguarda foi, ou é, sob vários aspectos, mais consistente que a primeira.
Semelhante perspectiva - enxergando dois ciclos vanguardistas, um deles entre 1907 e 1924, outro entre 1945 e alguma data na década de 1960 - corrige um vezo reacionário, disseminado na crítica. Consiste em rotular manifestações - surrealismos mais recentes; geração beat; e também Willer & friends, é claro - como coisa de vanguarda; e assim descartá-los como algo antigo, ultrapassado. Têm o mesmo sentido rótulos como vanguarda tardia, tardo-surrealismo, etc. Os que buscam ou representam o novo são, assim, desqualificados como sendo a retomada de algo velho, datado. Dupla desqualificação, ao se pensar em todas as teses condenando os vanguardismos: aquela de Ehnzensberger sobre aporias da vanguarda (aporia é um erro lógico, e a crítica de Ehnzensberger é puramente formal, restrita ao sentido do termo vanguarda, e não ao que aconteceu, ao que vanguardistas de fato fizeram), mais tudo o que já foi escrito sobre irracionalismo entendido como inconsequência no âmbito de movimentos vanguardistas.
Em outras palavras, a beat não foi um vanguardismo tardio, como a caraterizam muitos de seus comentaristas, mas um movimento típico de segunda vanguarda. Representou o novo e foi inovadora naquele contexto, do mesmo modo como futurismo, dada e surrealismo representaram o novo, de diferentes modos, em outro momento.
As vanguardas do início do século XX não foram superadas pelas reações, as contrarreformas literárias da década de 30 em diante: a Geração de 45, brasileira, os formalismos anglo-americanos mais tradicionalistas, caudatários do T. S. Eliot de segunda fase, de Quarta-feira de Cinzas, a reversão de Aragon, Eluard e outros em favor do academicismo e do realismo socialista na França, etc. Foram, isso sim, incorporadas, assimiladas e revitalizadas pelos movimentos do pós-Segunda Guerra, da segunda metade do século XX. Responderam à reação conservadora das décadas de 1930 e 1940, composta pelos assim chamados pós-modernismos que vieram à tona durante um período de horrores na história da civilização ocidental.
Não sou um entusiasta da diacronia. Objetei, em várias ocasiões, à descrição da história da literatura e das artes como série temporal, sucessão de movimentos e tendências: romantismo, simbolismo, cubismo, futurismo, etc. Prefiro sincronias. Entre outros lugares, em meu prefácio à obra completa de Lautréamont (Iluminuras, agora em segunda edição) argumentei que tudo aquilo de transgressão, experimentação radical e desvario que se pudesse atribuir ao surrealismo já estava lá durante o período simbolista, na belle époque, em Lautréamont, Rimbaud, Corbière, Germain Nouveau, Charles Cros, Jarry. Quem vê o surrealismo exclusivamente como apologia do delírio, criticando-o pelo irracionalismo, comete um equívoco. Deixa de compará-lo ao caráter frenético do período que o precedeu, entre a vigência do simbolismo e o despontar das vanguardas, e que, mais apropriadamente, pode ser visto como exacerbação do romantismo e da influência baudelairiana, por sua negatividade extrema e radicalidade na experimentação. A loucura havia campeado nas décadas precedentes. Surrealistas lhe deram continuidade; mas tentaram atualizá-la com o acréscimo da contribuição psicanalítica, do pensamento marxista e de avanços científicos que alteraram a própria imagem de mundo.
Também já citei e retomei a argumentação de Octavio Paz, Edmund Wilson e outros, de que o simbolismo foi um verdadeiro romantismo, e de que movimentos de vanguarda deram prosseguimento ao simbolismo, em lugar de negá-lo. Essa continuidade foi reconhecida por Breton, levando-o a afirmar, em Entrétiens, sua coletânea de entrevistas, que …a crítica atual é injusta com o simbolismo. Você diz que o surrealismo não procurou valorizá-lo: historicamente resultava inevitável que se opusesse a ele, porém a crítica não tinha porque fazer-lhe restrições. Era quem devia encontrar de novo, e pôr em seu lugar a correia de transmissão.
A mesma correia de transmissão funcionou ativamente em países hispano-americanos, e na própria Espanha: um modernismo trazido principalmente por Rubén Darío, saído do simbolismo francês, precedeu os movimentos propriamente vanguardistas. Mas não no Brasil: nossos modernistas de 22 deram as costas ao simbolismo.
Em resumo: ao longo de dois séculos e meio, desde William Blake e da primeira geração romântica até hoje, tivemos modos da revolução romântica, manifestação da tradição da ruptura, marcada pela crítica, contraposta ao classicismo (usando termos e categorias de Octavio Paz em Os Filhos do Barro).
Pelos mesmos motivos, já coloquei sob suspeita a classificação do surrealismo como vanguarda, por sua duração e seu alcance. Sob a ótica surrealista, as demais vanguardas teriam apresentado e discutido questões formais, do campo da estética, ligadas apenas à expressão artística e literária. Já o surrealismo estaria voltado para a vida, o homem em sua totalidade e a transformação do mundo. A produção artística e literária foi o modo de expressar e realizar esse ímpeto transformador. Além disso, cronologicamente ultrapassou o período tipicamente vanguardista que antecedeu ou sucedeu imediatamente a Primeira Guerra Mundial. Formado em 1919 (adotando como marco inicial a criação da revista Littérature, coincidindo com a descoberta e primeiras experiências de escrita automática), continuou a existir como movimento organizado, ao qual podem ser associadas manifestações importantes e obras de qualidade, até a década de 1960. E, em certa medida, até hoje, pois há, em diversas partes do mundo, no Brasil inclusive, autores, manifestações, grupos e publicações que se apresentam como surrealistas. Nas décadas de 1940 e 50, questionou e buscou ultrapassar a dicotomia imposta pela Guerra Fria, a opção entre estalinismo e macarthismo, regime soviético ou sociedade capitalista. Ou seja: em suas manifestações posteriores à Segunda Guerra Mundial, o surrealismo francês, bretoniano, e movimentos com maior ou menor ligação direta com esse núcleo francês já se voltaram para temas e discussões típicas de segunda vanguarda.
Por isso, no tocante ao ciclo propriamente vanguardista das primeiras décadas do século XX, em vez de uma sucessão de movimentos, pode ser mais esclarecedor enxergar duas grandes colunas, ou vigas mestras: uma delas, imagético-surreal; outra, formalista-construtivista. Algo como André Breton mais García Lorca versus Ezra Pound mais T. S. Eliot. Espontaneidade, paixão, culto à imaginação criadora, fusão ou confusão de poesia e vida, a criação como possessão (pelo inconsciente em Breton, pelo daimon ou duende em Lorca), de um lado; criação como resultado de uma reflexão racional, mediação cerebral, separação entre a esfera simbólica, autônoma, e a vida, primado da experimentação e da pesquisa, de outro.
É uma polaridade que apresenta semelhanças com outras, anteriores, pelo contraste entre duas visões do processo de criação e da relação entre linguagem e mundo, a esfera simbólica e aquela da vida: simbolismo e parnasianismo na segunda metade do século XIX (por mais que ambos, formalismos modernos e surrealismo, houvessem nascido no mesmo solo simbolista); românticos e clássicos no início daquele século; e talvez os barrocos e clássicos nos dois séculos anteriores. Muito aproximativamente, seriam variantes do apolíneo e dionisíaco, ou de racionalismo e misticismo. Ou não tão aproximativamente, se pensarmos na identificação, segundo Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça, em seu posfácio a Iluminuras - Gravuras Campestres de Rimbaud (editado pela Iluminuras) de Mallarmé a um pólo apolíneo, cerebral, e do desregramento de Rimbaud a um pólo dionisíaco, dentro da constelação simbolista.
No entanto, todas essas restrições à noção de vanguarda, focalizando sincronias em momentos distintos da história, não impedem que se faça um mapeamento das segundas vanguardas. Será o exame do que já se conhece - mas com uma percepção mais clara de como ocorreu a retomada do novo, e não apenas a repetição do que houve antes. Se vanguardas foram uma crítica aos cânones vigentes e à ordem estabelecida, as segundas vanguardas podem ter sido uma metacrítica.
O que vem a seguir é sobre literatura; e sobre poesia em primeira instância. Artes plásticas são mencionadas de modo lateral, apesar da expressão visual ter sido decisiva em todos esses momentos. Apollinaire, ideólogo da modernidade por excelência, pensou o novo a partir da contribuição de Picasso; formulou um modernismo refletindo sobre o cubismo. No segundo ciclo das vanguardas, arte pop sem dúvida é um componente especialmente importante. Mas prefiro restringir meu escopo, assim evitando a multiplicação de casos e de exemplos, além de fugir do diletantismo - de poesia sei alguma coisa; de artes plásticas também, mas não sou historiador da arte ou crítico de artes visuais. Além disso, em artes plásticas a relação com um mercado em expansão provocou uma espécie de fragmentação, tornando mais difícil a distinção entre movimento e modismo.
O mesmo com relação à música. Mas, desde já, é possível observar que o ciclo da segunda vanguarda é mais inclusivo, em matéria de sistemas de signos. Ou (usando o jargão consagrado e um tanto gasto), é mais característica a intersemiose, a expressão por multimeios, por mais que já houvesse sido antecipada pelas primeiras vanguardas, que criaram novos meios, modos de expressão e suportes, como a colagem e o objeto, além de se associarem ao nascente cinema.
Exemplos da nova intersemiose: a relação íntima entre a beat e o jazz bop, modelo do processo criativo pela espontaneidade para Kerouac e Ginsberg. Ou então, os surrealistas de Chicago, do grupo liderado por Franklin e Penélope Rosemont, sustentando que o blues é uma modalidade musical essencialmente surrealista, nisso distanciando-se da surdez musical de Breton.
Os beat foram especialmente musicais. Basta lembrar as apresentações e gravações de Ginsberg com seu próprio conjunto, com Bob Dylan, the Fudges e Clash (mais a respeito em minha coletânea de Ginsberg, Uivo, Kaddish e outros poemas, na edição de 1999 da L&PM); de William Burroughs com Patty Smith, Laurie Anderson, Tom Waits e outros; e a trajetória especificamente musical de Michael McClure, com Bob Dylan, The Band, e seu próprio Freewheling’ McClure Montana (conforme a recente edição brasileira de McClure, A nova visão: de Blake aos beats, Azougue editorial).
A expressão multimeios ou multimídia, além de batida, é insuficiente. No âmbito da beat e de outros autores e movimentos da segunda vanguarda, a intersemiose tem o sentido de uma busca da linguagem total, não só incorporando distintos sistemas de signos, mas procurando transcendê-los. Aspiravam à palavra plena, mágica, equivalente ao logos criador. Seus resultados são, não apenas a associação com músicos, artistas visuais, e com cineastas e mais tarde com videomakers, além de, no final, avançarem sobre a internet, porém a maior importância e valorização da intervenção, da performance, do happening, a partir da década de 1960. As idéias e atuação de Antonin Artaud foram decisivas para essa ampliação, não só do repertório, mas dos propósitos e alcance de sua expressão. Cabe lembrar que um dos primeiros volumes da Pocket Poet Series da City Lights Books de Lawrence Ferlinghetti foi uma coletânea de Artaud; e que, quando Ginsberg conheceu Carl Solomon em um hospício em 1949, este havia acabado de voltar da França, onde assistira a uma derradeira apresentação pública de Artaud. Outro autor referencial, nessa tentativa de ampliação do alcance do signo: Henry Michaux, com sua criação textual e visual alucinatória e alucinógena, e que partilhou com Artaud a escrita por glossolalias, fonemas não-semantizados.
Quem mais, além da beat e dos já mencionados surrealistas portugueses, comporia o ciclo das segundas vanguardas? Assim como nas primeiras vanguardas, pode-se identificar um pólo formalista e outro surrealista. Quanto ao pólo formalista, sua principal expressão é a poesia concreta, o concretismo brasileiro. São corretas - sob o ponto de vista estritamente formalista, note-se - as afirmações, em tom eufórico (e a meu ver abusando um bocado do pensamento analógico e da generalização), de Haroldo de Campos sobre uma poesia de exportação brasileira, entre outros lugares em um de seus ensaios publicado na revista portuguesa Colóquio Letras. Poesia dele, entenda-se, e dos demais autores ligados ao concretismo. A análise mais sociológica, de como foi possível o Brasil destacar-se na produção de algo com essas características, e a discussão de se isso não é um prolongamento, elaborado e academicamente avalizado, do tradicional beletrismo das nossas elites, será feita em outra ocasião. Reconhecendo tudo o que a contribuição concreta tem de substancioso e instigante (inclusive naquilo de que se diverge, mas que suscita debate), nosso pólo formalista-construtivista acabou por constituir-se também em um pólo da boa conduta pessoal - a não ser em polêmicas estritamente literárias - e da pesquisa regrada, semelhante à produção de teses universitárias.
Entre os movimentos tocados pela poesia concreta, sem dúvida os italianos do Carta 60, de Lello Voce. E um poeta português como Ernesto Mello e Castro. Aliás, em Portugal os imagéticos e os experimentalistas se entenderam melhor que aqui, como já observei ao comentar surrealismo português. Há mais; muito mais. E o formalismo brasileiro, por sua vez, não se esgota na poesia concreta. Compuseram-no também a Poesia Práxis de Mário Chamie; o grupo mineiro Tendência - Fábio Lucas, Afonso Ávila e Affonso Romano de Sant’Anna, e outras variantes menores do construtivismo e experimentalismo das décadas de 1950 e 1960. A versão mais cientificista, o poema-processo de Wladimir Dias-Pino. Houve neoconcretismo, do qual Ferreira Gullar chegou a fazer parte. E o suplemento Poesia-Experiência do Jornal do Brasil, dirigido por Mário Faustino foi, todo ele, uma expressão segundo-vanguardista.
No pólo imagético-surreal há muitas manifestações. Provavelmente, a mais importante foi o surrealismo português, pela obra e conduta de seus integrantes - conforme já comentei aqui, em A permanência da anarquia: a propósito de uma antologia do surrealismo português, em Agulha Revista de Cultura # 10 - e por suas consequências, pelo que teve de estimulante para a importante poesia contemporânea portuguesa.
Como já observei, as segundas vanguardas floresceram em solo americano. Nos Estados Unidos, além de pelo menos dois movimentos surrealistas, o de Chicago, liderado por Franklin e Penélope Rosemont, que publica a revista Race Traitor e que teve a participação de um poeta especialmente importante, Philip Lamantia (que também esteve no alvorecer da beat, na leitura da Six Gallery), e o Group Surrealist e Hydra de Allan Graubard (mais a respeito na entrevista de Graubard a Floriano Martins, nesta edição de Agulha Revista de Cultura), há a The last avant-garde, nome que ganhou o grupo de Nova York da década de 1950 integrado por dois poetas notáveis, John Ashberry e Frank O’Hara.
Hibridismo, aí está algo que se pode observar nos segundo-vanguardismos norte-americanos. Beat foi, entre outras coisas, um encontro das duas vertentes, do formalismo e do surrealismo. Ginsberg mostrou, em ensaios e conferências, como foi um leitor de Pound, como absorveu sua prosódia. A principal matriz de sua criação foi o objetivismo de William Carlos Williams (principal representante de um primeiro ciclo vanguardista especificamente norte-americano), por sua vez inspirado no imagismo de Pound. Objetivismo, porém, em um paradoxo apenas aparente, em sua versão mais mística, alucinatória e delirante. Ligados à beat, os poundianos do Black Mountain College: Charles Olson, Robert Creeley, Robert Duncan. Ao mesmo tempo, Lawrence Ferlinghetti promovia o trânsito, inclusive pessoalmente, com seus estágios na França, do surrealismo para os Estados Unidos. Outro dos primeiros volumes da sua City Lights foi Jacques Prévert, Paroles. Ginsberg e Solomon, do hospício onde estavam internados, escreviam para Malcolm de Chazal, o surrealista que acabava de publicar Sens-plastique. Burroughs, junto com Brion Gyzim, reinventava a colagem surrealista, na forma de cut-up. Corso reinventava a imagética surrealista. Em Ashberry e O’Hara também já foi observada a afinidade com surrealismo.
Hibridismo e sincretismo também são característicos de Roberto Piva, o poeta brasileiro que se posicionou em um pólo oposto, no Brasil, aos formalismos, ao aderir ao desregramento rimbaudiano e perseguir a síntese de poesia e vida. Conforme já observei em outras ocasiões (inclusive no posfácio a Um Estrangeiro na Legião, ed. Globo, volume I das poesias reunidas de Piva), tanto em Paranóia quanto em Coxas ele nos oferece releituras surreais do nosso modernismo de 22, de Mário e Oswald, e, ao mesmo tempo, da beat.
O levantamento de movimentos literários dos continentes americanos que, nesse enfoque aqui proposto, corresponderiam às segundas vanguardas, é um empreendimento que está sendo realizado por Floriano Martins. Em um primeiro momento, examinando os latino-americanos afins ou ligados ao surrealismo, em O Começo da Busca (Escrituras, 2001), mas sem preocupar-se com um recorte separando autores e movimentos mais característicos da primeira e segunda geração vanguardista (inclusive para respeitar continuidades entre uns e outros, no âmbito do surrealismo). Em um segundo momento - Un nuevo Continente (Andrómeda, 2004) -, abrangendo, além de caribenhos, os canadenses e estadunidenses. Em um terceiro, em preparação, examinando movimentos, grupos e publicações características da década de 1960. Limito-me a mencionar aqueles movimentos e publicações da década de 1960 com os quais tive contato direto: El Corno Emplumado do México, de Sergio Mondragón e Margareth Randall; El Techo de la Ballena venezuelano, do qual fez parte Juan Calzadilla, que interagiu com o surrealismo francês; Eco Contemporáneo de Miguel Grimberg e seu équipo mufado, antecipador da contracultura e das grandes mobilizações daquela década; o Manifiesto Tzántico equatoriano, com Ulises Estrella. Para a década de 1960 latino-americana, além dos trabalhos em andamento de Floriano Martins, é uma referência bibliográfica recomendável - e já examinada aqui, em Agulha Revista de Cultura - Los años de la fiebre de Ulises Estrella (Ed. Libresa, Quito).
Haveria mais? Sim, e muito. É segunda vanguarda o exacerbado experimentalismo doOuLiPo francês. E a entrada em cena de um personagem como Boris Vian, por sua vez ligado ao Colégio de Patafísica, dos continuadores de Alfred Jarry. Isso, apenas para mostrar aonde pode levar esse tipo de prospecção.
Interessa, mais que o mapeamento detalhado do ciclo segundo-vanguardista, mostrar o que mudou, o que foi acrescentado à geração anterior. De hibridismo e intersemiose, já falei. Há que comentar, ainda, a dimensão política e aquela místico-religiosa da segunda vanguarda.
Quanto à política, dessa vez não ocorreu nada semelhante à adesão de Marinetti e outros futuristas italianos ao fascismo de Mussolini. E algo como autores batendo à porta do PC ortodoxo, de orientação soviética, foi exceção. Antes, é mais representativo da postura política no âmbito desse ciclo o modo como a beat foi execrada, simultaneamente, pela esquerda ortodoxa norte-americana e pelo establishment conservador. Exemplar, sob esse aspecto, é Ginsberg, ao mesmo tempo em que era expulso de Cuba e da Tchecoslováquia, ser fichado e vigiado pelo FBI. Vale como exemplo, também, a resistência anti-salazarista do surrealismo português e, ao mesmo tempo, seu confronto com o neo-realismo da esquerda tradicional.
Mais importante, o modo como movimentos literários e artísticos se projetaram no político e no social, assim buscando a superação da dicotomia entre poesia e vida. Novamente, o melhor exemplo vem da raiz beat da contracultura e, por extensão, das rebeliões juvenis da década de 1960; e, em consequência, de uma abertura real, a meu ver, no âmbito da sociedade burguesa. Houve, ainda, um complexo tecido de relações entre os movimentos latino-americanos aqui citados e as revoltas, rebeliões e convulsões políticas em seus países.
Quanto à dimensão místico-religiosa, sabe-se que, desde a primeira geração romântica, o repúdio à religião oficial e a proclamação da morte de Deus foram uma crítica religiosa, à dessacralização do mundo. Tem o mesmo sentido a influência da tradição místico-esotérica ocidental e do ocultismo em simbolistas e no surrealismo. Já na segunda vanguarda, há mais autores e movimentos que, universalistas, vão beber diretamente na fonte oriental, a exemplo do budismo tibetano praticado por Ginsberg, ou do budismo de Sergio Mondragón. E no xamanismo de culturas arcaicas e de povos pré-colombianos, como se observa no Roberto Piva de Ciclones; ou em ambos, Oriente e povos indígenas, como em Gary Snyder, com relação a índios norte-americanos, ou Ginsberg, que morou na Índia e bebeu o daime ou ayahuasca no Peru.
Temos aqui o início, apenas, de uma prospecção e de uma possível discussão. Interessa, penso, entender, nesse contexto, a questão do novo. Pode-se fazê-lo citando Baudelaire nos quartetos finais de A Viagem, o poema que encerra As Flores do Mal [na tradução de Ivan Junqueira]:

     Ó Morte, velho capitão, é tempo! Às velas!
     Este país enfara, ó Morte! Para frente!
     Se o mar e o céu recobre o luto das procelas,
     Em nossos corações brilha uma chama ardente!
     Verte-nos teu veneno, ele é que nos conforta!
     Queremos, tanto o cérebro nos arde em fogo,
     Ir ao fundo do abismo, Inferno ou Céu, que importa?
     Para encontrar no Ignoto o que ele tem de novo!

Nesse poema, o próprio Baudelaire grifou o vocábulo novo. Leitor de Hegel, o poeta de As Flores do Mal, tanto ali quanto em suas observações sobre a modernidade entendia o novo como negação do que está aí, de um mundo e uma sociedade a serem questionados e combatidos. Esse questionamento, dando prosseguimento à rebelião individual, foi ampliado e revitalizado no âmbito das segundas vanguardas. E também em manifestações mais recentes, fazendo, pelo menos, que a paisagem oferecida pela contemporaneidade não se limite ao paredão cinzento do conformismo. 



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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado: Jorge de Lima
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA

Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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