RG | Belchior, quais seriam as ideias que norteiam o seu pensamento
enquanto autor de música e de letra?
B | Fundamentalmente o meu trabalho é norteado por duas grandes
matrizes que são as seguintes: o desejo de apresentar uma música nordestina contemporânea
e o desejo de mostrar a viabilidade de um projeto de afirmação de ideias e de sentimentos
ao nível de trabalho. É uma música que se pretende autobiográfica, em determinado
nível, contemporânea e nordestina.
RG | Na música “Na Hora do Almoço”, por exemplo, você tem do
ponto de vista biográfico, na mente, gravada como uma memória emotiva, essa cena
doméstica, da família em volta da mesa?
B | Essa é a minha primeira música gravada, a música com a
qual eu participei do Festival Universitário de Música Popular Brasileira em 71
e uma música que eu julgo muito importante pra mim como artista e também para a
nova Música Popular Brasileira vinda do Nordeste. Foi essa música que através daquele
Festival mostrou, de certa forma, a viabilidade de uma nova música vinda do Nordeste,
especialmente do Ceará. Naturalmente ela tem uma letra vinculada à vida tradicional
duma família nordestina, uma família cearense, uma família convencional como a minha
e alia a tudo isso a tendência de uma forma poética mais nova. O mais importante,
do ponto de vista histórico, é que essa música foi o primeiro momento da nova música
popular brasileira vinda do Ceará. Eu creio que essa cena familiar de membros reunidos
em torno da mesa na hora do almoço, cercados - vamos dizer assim - pela autoridade
do pai, pela figura da mãe, pela figura do avô ou da avó, mostra toda uma ascendência
familiar, cultural, repressiva e também [não é?] como eram as famílias antigas do
Nordeste, como são algumas famílias que ainda não acompanharam o fluxo da história.
É naturalmente uma memória minha, como é a memória de muitos artistas do Nordeste,
muitos artistas da palavra e da pintura também. É uma cena muito viva, uma cena
muito presente e uma cena deflagradora de nordestinidade e de tensão humana.
RG | Fazer música - sobretudo músicas que removem alguns espectros,
alguns ícones, algumas imagens duma biografia que é comum a todos do Nordeste, tem
pra você uma função catártica?
B | Tem também um pouco. Do ponto de vista meramente individual,
pessoal, eu acho. Porque do ponto de vista da cultura essa expressividade não me
interessa tanto; me interessa mais o que a música pode dizer por si mesma e não
o que ela pode causar como emoção no ouvinte. Quer dizer, é aquilo que os poetas
psicológicos dizem: “quando eu sinto, minto”. Eu só posso sentir quando não estou
sentindo. Então o que me interessa na música não é exatamente essa catarse, essa
possibilidade de emocionar, seja o autor, seja o ouvinte, mas é capacidade de exprimir,
de dizer uma coisa, de mostrar a arte como uma forma de conhecimento do real, como
uma forma de ataque ao real. Então esse é o ponto de vista que acompanha cada momento
da minha criação.
RG | E em relação à música "Mote e Glosa" , qual a
sua análise?
B | "Mote e Glosa" tem esse título bem convencional,
um título que vem da tradição da cantoria, do repente do Nordeste. Ela tenta apresentar
uma forma verbal e visual também nova. Com certeza é uma das primeiras músicas com
uma formulação visual do repertório mais recente da música popular. Tem nítida influência
concretista, vamos dizer assim, apoiada e vinculada à tradição da música popular
nordestina.
RG | O Movimento Concretista é essencialmente de uma poesia
visual. Como transportar essa ideia da materialização visual do poema concreto para
uma obra que é especificamente sonora, auditiva?
B | Fundamentalmente o Concretismo é mais a poética da invenção
do que uma coisa meramente visual. Quer dizer, o visual parece ser radicalidade,
o extremo, vamos dizer, da coisa da palavra, do verbal. No caso da música "Mote
e Glosa", simplesmente eu assumi, adotei algumas formulações da poesia concreta,
adotei alguns critérios, alguns modos de fazer do Concretismo e misturei tudo isso
à tradição convencional e, vamos dizer assim, antiga do Nordeste, apresentando um
objeto, um artefato estético muito híbrido, que é justamente uma das coisas que
me interessam mais, longe dos objetos puros, dos objetos que precisam ser salvaguardados
e protegidos pelo artista e pelo povo.
RG | É esse o novo que a letra da música apregoa ao repetir
“É o novo, é novo, é o novo”?
B | É. Naturalmente sob essa capa de ironia, de sátira e de
humor, a música tenta especular esse novo, especular nos dois sentidos, de espelhar
também.
RG | A ideia do novo, do rejuvenescimento, da juventude, é uma
ideia que permeia toda a sua obra. Em todas as suas letras há a predominância de
algum termo análogo a uma juventude, a um rejuvenescimento, inclusive em "A
Palo Seco". Eu gostaria que você esclarecesse o porquê dessa insistência em
relação ao novo, à juventude.
Essa insistência com o novo, com a juventude, não é naturalmente
uma coisa biográfica nem é uma coisa que diga respeito à faixa etária ou a conflito
de gerações como a crítica mais superficial quis ver; é porque meu trabalho tende,
ele gostaria de ser, ele quer ser um objeto poético transformador, um objeto poético
que tenda para os interesses da História do Homem, um objeto útil, enfim, uma arte
que sirva, uma arte que não seja ornamental, mas uma arte que seja uma arma na mão
do Homem para a conquista de si mesmo, para a conquista do universo, para a conquista
dos espaços conhecidos. Naturalmente que essa utopia toda aparece como um universo
novo, como um universo jovem e como universo cujo conhecimento só pode ser expresso
em palavras novas. Portanto, é uma utopia paradisíaca, uma utopia órfica, uma utopia
de transformação pelo que é edênico, pelo que é primitivo no Homem. Não tem nada
a ver com uma coisa mais superficial de achar que as pessoas mais jovens estão com
tudo e as pessoas maduras estão com nada e que o mundo é feito pela juventude e
que as pessoas maduras já perderam o seu lugar ou seu vigor nas coisas, no meio
do mundo.
RG | Nada de não confiar em quem tem mais de trinta anos...
B | Claro, não tem nada a ver com essa frase. Tem a ver com
uma coisa muito mais profunda, tem a ver com respeito a toda uma filosofia de texto
e a toda uma filosofia de pretensão de um universo transformado, de um universo
tendente para aquilo que o Homem pretende com a sua profundidade, com a sua alma,
com o seu espaço espiritual.
RG | Em determinado trecho da letra de "A Palo Seco"
você diz : "Tenho vinte e cinco anos / De sonho e de sangue / E de América
do Sul". E em "Apenas um Rapaz Latino-Americano", você se define
como um latino-americano e não especificamente como um brasileiro. Esta presença
da América Latina em suas letras, o que seria, o que identificaria? Qual a empatia
que um rapaz de Sobral, como você, teria com um rapaz que, por exemplo, fosse de
Lima?
B | O fundamental nessa música é justamente essa frase: "Eu
sou apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes,
e vindo do interior." Essa afirmação enfática de ser um latino-americano, portanto
uma pessoa na esquina do mundo, uma pessoa do terceiro mundo, uma pessoa na expectativa,
uma pessoa, assim, dependente economicamente do resto do mundo, mas com uma capacidade
enorme de desdobramento vital, de resistência, de rebeldia, de espírito, de novidade,
de transformação, de poder novo, enfim. Então assumir o fato de sermos latino-americanos,
sendo brasileiros, sendo cearenses, sendo de Sobral, é justamente você participar
da fraternidade latino-americana e isso diz muito de perto, diz respeito ao que
eu falo em muitas outras músicas: esse sentido de desinsular a cultura, de fazer
com que a cultura seja penetrante, troque energias com todos os espaços. O Brasil
é também um país que está isolado culturalmente da grande tradição latino-americana,
da grande tradição irmã latino-americana. Então essa música dá continuidade a outras
músicas de outros autores como Milton Nascimento e Rui Guerra que já haviam levantado
de alguma forma esse problema da latinidade. Esse tema já era uma constante na literatura
e na poesia, sobretudo. Então essa música dá continuidade a essa tradição iniciada
naquele momento. Claro que ela também é uma música irônica, satírica, de humor,
de um humor branco, negro, amarelo e vermelho, sobre a situação das pessoas em Latino-América.
RG | Belchior, você acha que a cearensidade de certo sarcasmo,
desse humor do Ceará Moleque, está presente na sua música? De que forma?
B | Eu acho que está muito presente o humor cearense na minha
música, certa ironia característica da nossa cultura e também certa graça. Naturalmente
eu não quero dizer que a minha música contenha o humor, assim, dum modo mais explícito
(né?), ou a piada, ou nada disso, e nem eu faço uma música satírica do ponto de
vista convencional. Todos esses dados aparecem diluídos no meu trabalho de um modo
muito fino, de um modo muito sutil, e eu acho que esse modo de sutileza e de finesse,
aumenta ainda, aumenta cada vez mais o teor e a qualidade da ironia. Isso é um dado
muito característico da cultura cearense e que no meu trabalho aparece com muita
evidência, mas dum modo transformado, quer dizer, dentro das palavras mais novas,
dentro de um contexto não folclórico, dentro de um contexto não provinciano, quer
dizer, no tratamento geral das ideias. E eu creio que isso aparece muito no trabalho
dos compositores do Nordeste da minha geração, porque é um dado característico,
é um dado muito específico da cultura cearense.
RG | Numa de suas letras você diz, de forma explícita, que o
que era jovem e novo hoje é antigo. Em relação ao disco "Alucinação",
a Crítica detectou uma, digamos, reação do poeta Belchior ao movimento tropicalista
ou a certa alienação do chamado Tropicalismo. É pertinente essa observação da Crítica?
B | Não. Eu acho que essa crítica é muito superficial e o meu
trabalho, o disco "Alucinação", não pretende ser em nenhum momento uma
crítica à Tropicália. É muito mais uma autocrítica de geração e uma autocrítica
feita com muito sucesso, daí, por exemplo, os descaminhos todos da crítica desse
disco. Daí também, vamos dizer assim, a dificuldade de tratá-lo como um objeto muito
especial, pois ele invadiu as nossas casas, invadiu a televisão, o rádio, o jornal,
mas em nenhum momento ele pretende ser a crítica da “alienação” da Tropicália.
RG | Mas em algumas letras você faz referências à Tropicália.
B | Claro, porque antes de tudo eu não acredito nessa frase:
“a alienação da Tropicália”. Eu acho que a Tropicália foi um movimento importantíssimo
dentro da Música Popular Brasileira no sentido da modernização do modo de fazer
música, no modo de pensar música, no modo de participação dos compositores no movimento
novo da música popular.
RG | Por que, então, algumas referências ao Caetano Veloso e
ao Gilberto Gil quando você diz "Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem
do norte e vai viver na rua” ou “Trago de cabeça uma canção do rádio em que um antigo
compositor baiano" etc. A palavra antigo significa aí defasado?
B | Eu sou um antigo compositor da música cearense. Eu sou
da geração...
RG | Seria mordacidade da sua parte o emprego da palavra antigo?
Ou é simplesmente uma adjetivação cronológica?
B | Eu acho que a palavra antigo tem todas as conotações que o ouvinte quiser nesse sentido que
ela é ali uma palavra aberta, no sentido poético; ela tem todas as intenções que
puderem ser descobertas. Naturalmente que o antigo tem o sentido de Antigo Testamento,
de vinho antigo e de como quem diz também “o meu irmão mais velho”. Não se trata
de desrespeito; trata de reconhecimento da coisa, assim, fraterna. Mas o fundamental
não é realmente isso, não é esse leve toque. O fundamental desse disco é que ele
é o primeiro momento de uma tentativa crítica de geração feita com percuciência,
com agudeza, feita com sinceridade, com crueza, até com certa violência e certa
dor da minha parte de compositor e com toda certeza da parte de muitos ouvintes.
É o primeiro momento em que alguém no próprio trabalho observa o próprio dilaceramento
da linguagem, o dilaceramento do sonho bloqueado, o bloqueio todo que a juventude
teve da sua utopia inicial, da utopia da sua palavra, da sua liberdade total, do
sonho, de todas aquelas coisas que foram durante muito tempo o alimento espiritual
de toda uma larga faixa da juventude brasileira. Então esse disco foi o primeiro
momento de autocrítica de tudo isso. Foi o primeiro momento de observação do sonho
e foi uma primeira chamada ao despertar, à lucidez completa, ao desespero que tem
na luminosidade excessiva.
RG | Corresponderia, então, esse seu disco “Alucinação” à frase
"O sonho acabou"?
B | Eu acho que todo o disco é “o sonho acabou” e a proposta
utópica é: temos que inventar o novo sonho. Então aquele sonho acabou. Qual será
o próximo sonho?
RG | Mas aquele sonho a que você se refere é o sonho alimentado,
disseminado pelo movimento baiano?
B | Não. É o sonho geral da juventude do mundo inteiro.
RG | Sonho geral que o movimento baiano ratificou.
B | O movimento baiano participou disso, com uma visão brasileira,
uma visão, assim, tropical daquilo que estava acontecendo com Beatles, Rolling Stones,
com a música americana, com a música inglesa, com a música europeia de um modo geral.
E "Alucinação", que é praticamente o meu primeiro trabalho conhecido,
foi o momento de definição de uma série de colocações, assim, intelectuais, sentimentais,
emocionais, de uma larga faixa da juventude brasileira naquele momento, daí toda
a, - vamos dizer assim - dolência desse disco, toda a violência desse disco, todo
o desespero e também a adoção de uma postura muito forte, muito sincera e muito
de quem está olhando face a face. Então todo o vigor desse trabalho vem da palavra
direta. E formalmente esse disco inaugura uma linguagem muito nova na Música Popular
Brasileira naquele momento. Não devemos esquecer que até ali a Música Popular Brasileira,
mesmo a mais bem feita, mesmo a melhor Música Popular Brasileira estava sendo feita
com muita metáfora, estava necessitando continuamente de exegeses. Ela trazia, assim,
exemplos metafóricos de coisas que se sugeriam, que simplesmente queriam que fossem
ditas e não que eram ditas, e não eram ditas com clareza. Então esse trabalho foi
o primeiro momento de uma dicção nova na Música Popular Brasileira, no sentido de
uma dicção clara, compreensível, direta, crua, sem intermediários.
RG | Não metafórica.
B | E não metafórica. Eu não estou dizendo antimetafórica;
estou dizendo não metafórica. Era o momento primeiro da adoção de uma linguagem
direta, expressiva e que...
RG | Quase um discurso falado, a meu ver.
B | Era. Naturalmente a letra tinha essa qualidade de discurso
pela complexidade das coisas todas que queria dizer, que queria falar. E também
nisso, se diz que é inaugural no sentido de apresentar uma forma muito livre de
contar uma história, por mais trágica e por mais difícil que ela pudesse ser.
RG | E ainda do disco "Alucinação", tomemos para análise
a música “Como Nossos Pais".
B | "Como Nossos Pais", uma música que estava feita
há praticamente um ano, esperando a gravação de um intérprete competente, foi assim
a música que mais marcou a minha vida de cidadão comum e de artista naquele momento.
Porque foi a música que mais simbolizou todo o movimento espiritual e todo o momento
da juventude brasileira naquela circunstância e que também teve a sorte, a felicidade
de ser interpretada por Elis, acrescentando ao material já de si mesmo rico e complexo,
o poder de sugestão da sua voz, o poder de invenção da voz de Elis. Foi um momento
importante para o show de Elis que estava acontecendo naquele momento, "Falso
Brilhante", e também para o início da minha carreira. Foi praticamente a música
que abriu o espaço popular para o meu trabalho, que abriu a comunicação brasileira
para o meu trabalho e que facilitou a minha chegada, até mesmo essa coisa rotineira
da gravação numa gravadora convencional.
RG | A música "Como Nossos Pais" faz uma revisão crítica,
mais uma vez, da sua geração, em relação à geração anterior.
B | Eu creio que essa música, também ela, não pode ser interpretada
fora do contexto todo do LP "Alucinação". Ela é um momento do LP "Alucinação"
e não pode ser desvinculada da música "Como o Diabo Gosta" ou "Fotografia
3x4" ou "Velha Roupa Colorida" ou "A Palo Seco". “Como
Nossos Pais” é, por exemplo, uma nova versão de "A Palo Seco", num contexto
muito mais complexo, num contexto humano muito mais rico e também muito mais épico,
mais trágico até.
RG | Nessa música você afirma que nós estamos ou que sua geração
está em um compasso de espera, ainda vivendo como nossos pais, a repetir os mesmos
rituais, os mesmos valores. Por outro ângulo da questão, você, aqui, agora, no decorrer
dessa nossa conversa, fala na invenção de um novo sonho. Hoje, a sua geração ou
a nova geração já encontrou esse novo sonho? Ou continuamos repetindo os mesmos
parâmetros e paradigmas da geração anterior?
B | Não, eu creio que nós já estamos tentando descobrir o novo
sonho.
RG | Em outras palavras, você hoje faria de novo essa música?
B | Veja, eu acho que essa música já ocupou o espaço espiritual
e cultural que o momento pedia e requeria. Hoje eu faria outra música para dizer
as coisas que estão acontecendo agora.
B | Uma letra que se referisse, por exemplo, a muitos temas
dessa nossa conversa, sobretudo à tentativa de inventar o sonho novo. E essa palavra
sonho pra mim é uma palavra muito significativa. Ela diz respeito à utopia provável,
utopia que pode ser alcançada e não a utopia pura e simples. O sonho é aquilo que
você pretende como acréscimo à sua humanidade e que pode ser alcançado se você usar
novas táticas, novos elementos, novas estratégias, novas formas de humanidade.
RG | É o estabelecimento de metas.
B | Sim. O sonho pra mim não é uma coisa alienante, não é uma
coisa que lhe leva para a apatia ou para uma região sombria onde não acontece nada.
O sonho é uma esperança, o sonho é, enfim, uma visão dialética, uma visão crítica,
uma visão pertinente à realidade concreta. Sonhar é ver antes. É prever.
RG | É pressupor, é pressentir.
B | Claro.
RG | E quais seriam as premissas desse novo sonho?
B | Olha, todo o meu trabalho pretende especular isso. Tudo
que eu venho fazendo tenta oferecer elementos de reconhecimento desse novo espaço.
Naturalmente que eu não sei qual é esse espaço. Eu só tenho certeza absoluta de
que ele deverá se compor com os dados mais profundos daquilo que a gente identifica
como as coisas mais desejáveis da humanidade: a liberdade total, o verbo, a palavra
desimpedida, as possibilidades de conquista das qualidades civis do cidadão, das
qualidades espirituais de um Homem mais completo, perfeito, acontecendo na história,
acontecendo na sociedade, acontecendo - como se diz - na cidade do Homem e não na
antiga cidade de Deus. Então essa coisa toda que é o sonho está como objeto do meu
trabalho em todas as músicas.
RG | Se você entende o sonho, não como alienação, mas como uma
projeção de algo passível de ocorrer, a palavra alucinação tem pra você também esse
sentido.
B | Tem, claro. E essa palavra está definida dentro do disco:
Minha alucinação é suportar o dia a dia e o meu delírio é a experiência com coisas
reais.
RG | E pra concluir essa nossa conversa, o que você diria, Belchior,
sobre o momento que se está vivendo hoje, nesse momento da sua música no cenário
atual da Música Popular Brasileira?
B | É um trabalho que tem continuidade. A cada disco eu vou
tentando completar aquilo que está cantado anteriormente. Naturalmente que tudo
isso é acrescido de comportamentos criativos novos, da tentativa de descobrir novas
fórmulas de cantar, de dizer, de pensar o ato de fazer música, de apresentar essa
nordestinidade nova, essa cearensidade assim aberta para o mundo. O meu trabalho
todo mais recente vem tentando isso de um modo amplo, no sentido de abrir essa perspectiva
para o mundo todo mesmo, de tal forma que o meu trabalho possa ser ouvido, possa
ser interpretado como um trabalho de plena contemporaneidade. Terminando, eu quero
agradecer a oportunidade boa, sincera, amiga, de conversarmos todas essas coisas,
de completar com a palavra quente, presente, tudo aquilo que está dito e cantado
nos discos e que por si só valeria minha presença no coração e na cabeça de vocês.
RICARDO GUILHERME (Brasil) é autor, ator e
diretor teatral. A presente entrevista, gentilmente cedida por ele, foi realizada
com Belchior em março de 1983, para o programa “Caminhos da Cultura”, da Rádio Universitária
(Ceará). Página ilustrada com obras de Francisco Baratti (Brasil), artista convidado
desta edição de ARC.
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