O
PRÉDIO | Não há outro ponto na cidade de São Francisco,
Califórnia, que incorpore melhor a historia da geração dos poetas Beatniks (ou a
“Beat Generation”). O melhor de tudo,
ainda por cima, é que a livraria continua firme e forte há cinquenta anos no mesmo
endereço. A City Lights Books, na 261 Columbus Avenue, mora no coração do bairro
boêmio de “North Beach”. E numa das suas avenidas principais.
Fundada em 1953, foi a primeira livraria
norte-americana do tipo “all-paperback”
ou de “pocket books”, ou melhor dizendo, os famosos livros de bolso com capa de
papel. E, com um sofisticado estoque de títulos que iriam desde os clássicos aos
modernos de literature, passando pelos políticos progressistas. Nada de best-sellers
comerciais ou meras bobagens. Ou produtos baratos e fáceis, de bancas de jornal.
Apenas o fino biscoito da literatura de
primeira linha. E em formatos modernos. Isso incluiu obviamente, a poesia de boa
qualidade.
Em 1956, a City Lights ousou e publicou o poema "Howl" de Allen Ginsberg
em formato de bolso. E a partir daí tornou-se o famoso haste de luz para esta nova geração de poetas indomados: os Beatniks.
Na época, a rara combinação de livraria e editora foi mesmo o Fiat Lux para os escritores
independentes perdidos no escuro do ostracismo da grande máquina editorial. Hoje,
esta empresa pioneira e que deu voz aos rebeldes da América, é uma das poucas genuínas
que continua autossuficiente, independente de grandes corporações ou empréstimos
e sem uma cadeia de filiais agregadas. Alquimia rara encontrada entre empresários
americanos. Uma espécie de anti-cultura resistente, no país do marketing. Por quase
meio século, esta livraria alternativa (tornando-se mais tarde uma editora de excelentes
autores) faz a cabeça, o coração e permeia o discurso e a alma dos leitores e os
mais literatos de São Francisco. E consequentemente, dos visitantes de outras partes
do mundo ou do próprio país. O segredo? “Experts” de cada assunto selecionam e depuram
o estoque em afinada gama de: “os melhores livros”. Em cada campo, estilo e até
mesmo em cada tema e/ou categoria. Como costumam dizer no ditado popular sobre a
loja: “Wise Men Fish Here” – o homem sábio
pesca aqui.
Entre estas quatro paredes, há muita história
para se contar. Na verdade, entre três paredes, já que o prédio é triangular. Talvez
este seja um dos motivos do imbatível sucesso. Algo meio piramidal na horizontal,
se isso for possível(?). Com um Q de mítico, ou meio quase-mitológico, sei lá. Como
saber o intangível? O fato é que, muitos acontecimentos culturais de extrema importância
na história literária ocorreram neste espaço. Leituras de poesia, lançamentos de
livros, performances variadas, happenings,
manifestos políticos, artísticos e/ou libertários, pró-democracia, pró-homossexualismo
e todas as liberdades permeadas em seus gritos precedentes aos anos 70.
Os fundos do prédio encaram o bairro de
Chinatown, enquanto a Columbus Avenue tem o lado oriental oposto e com vista para
o lado ocidental da cidade: algo insólito para se questionar a tão cheia de si,
Western civilization. Seria como que um
local perfeito para acomodar as encruzilhadas da “culture”. Seja ela qual for. Da
onde for.
A Columbus Avenue era chamada originalmente,
no século dezenove, de Montgomery Avenue. Mas em 1906, um terremoto destruiu praticamente
quase tudo nesta parte da cidade, principalmente por conta do fogo que surgiu em
seguida. Não houve exceção para este prédio. Após a grande loucura da perda, os
donos reconstruíram tudo de novo, com o que sobrou dos tijolos ainda presentes nos
arcos do porão. A resistência sempre foi a marca do lugar. E assim o prédio da livraria
ressurgiu como Fênix, das cinzas. Mas foi somente em 1907, que Oliver Everett projetou
o novo prédio. Era no estilo de um revival clássico para os proprietários e irmãos
franceses, Emile e Jean Artigues. A livraria italiana Cavali logo mudou-se para
o local ficando com o principal espaço. Depois, a City Lights BookStore ocupou o
lado da esquina, para a viela Jack Kerouak. Aonde ali, antes havia uma floricultura.
Entre as flores e as letras, as raízes cresceram. Assim, eles começaram o negócio
dividindo o prédio e as despesas com a outra livraria. Isso durou um longo período
até que finalmente o faturamento pudesse pagar e cobrir todos os custos. E enfim,
eles conseguiram crescer e ampliar a loja para todo o prédio, no ano de 2000.
HISTORIA DA PARCERIA | Quando a floricultura fechou suas portas, Martin decidiu abrir uma livraria neste mesmo pequeno espaço da frente, a quina da esquina. Bem frente ao bar Vesuvio e suas janelas Art-Nouveau. Com isso, poderia sustentar sua ideia de publicar uma revista independente e ainda por cima pagar o aluguel. Lawrence Ferlinghetti lembra bem, "A ideia brilhante foi do Peter Martin. Inaugurar a primeira livraria de livros de bolso de qualidade do país. Ate então, não haviam lojas e lugares específicos somente para este tipo de produto." Antes disso, estes artigos eram vendidos em farmácias, quiosques de estações de ônibus e metrô, bancas de jornal. Até mesmo em supermercados, mas sem uma prévia seleção de autores e títulos de qualidade para facilitar o acesso do conteúdo ao leitor. Atendimento diferenciado, não existia. Eles não eram ainda considerados livros de verdade. Apenas alguns do selo editorial Penguins eram encontrados nas grandes livrarias. Na sua maioria, eles eram importados da Europa, geralmente da Inglaterra ou da França. Nesta época, poucos editores americanos arriscavam-se no mercado massivo de livros que não utilizassem a capa dura como encadernação. Os tais dos “paperbooks.”
E logo apos colocar o cartaz “Pocket Book Shop”, Martin viu Ferlinghetti
– subindo a rua a caminho de casa, vindo de seu studio de artes plásticas na Mission
Street – parar e se apresentar. Ele, logo reconheceu a tal figura que lhe enviou
de bom grado as traduções de Jacques Prévert. A partir desse momento, a parceria
literária se formou. Ferlinghetti amou de imediato a idéia de montar uma livraria.
Seu bom amigo de sempre, George Whitman em Paris, havia iniciado uma também, um
pouco antes. A tal da Librairie Mistral
(mais tarde renomeada Shakespeare & Co). O pequeno espaço de um só cômodo e,
com formato de um pedaço de torta, inaugurou em Junho de 1953. Foi assim que Martin
e Ferlinghetti começaram vendendo livros de bolso (ou os de “capa de papel”) de
boa qualidade literária, assim como também jornais e revistas alternativos. E com
isso, já se passaram 50 anos num piscar de olhos. Entre uma leitura e outra, ela
continua por ali, a sua missão de oferecer material de conteúdo consistente e ao
mesmo tempo alternativo, no mesmo prédio de sempre. Acolhendo artistas, autores
e poetas de todas as partes, em suas diferentes raças e gêneros. Seja qual for a
voz. Eles ainda montaram uma editora de livros e fizeram a tal da revista. Mas falaremos
sobre isso no próximo artigo, parte II. E também sobre os movimentos literários
que ali passaram ou germinaram, em especial, o dos Beatniks. A revolução não parou
no estilo do “paperback” e há ainda muito por fazer pela literatura e poesia, avisam
os parceiros.
LIBERDADE DE EXPRESSÃO | Se alguma cidade americana merece o titulo
de “parada dos Beats” esse lugar é a cidade de San Francisco. Podemos considerar
que aqui sim, foi o lugar e o “point” dessa geração de poetas e escritores anarquistas
e revolucionários nadando contra a corrente da cultura tipicamente comercial e esmagadora
de seu proprio pais. Nao podemos esquecer que New York pode se auto intitular como
o berço dos Beats, lugar aonde o movimento de fato nasceu. Porém, o grupo literário
chegou a sua maturidade e apogeu nacional quando articulado por aqui, na democrática
cidade banhada pela baía. Foi nela que ele se enraizou expandindo seus frutos literários
por todo o mundo.
Em 1950,
o magnético charme de San Francisco atraiu escritores inventivos, artistas das mais
variadas categorias e pensadores estudiosos e determinados contra o conservadorismo
dos anos consequentes ao pós-guerra. Além do bom clima da Califórnia, as universidades
e seus activistas políticos, o permitido espaço de liberdade sexual e individual
e o clima natureza, paz e amor. Todos mixados num milk shake de fortes possibilidades
para a literatura e suas narrativas.
Liberdade
intelectual essa vigente que aflorou ainda mais com a chegada da publicação de "Howl"
o livro de Allen Ginsberg lançado em 1956. A partir de então, San Francisco foi
literalmente o porto ancorador para esta nova geracão de radicais em busca de inovações
sociais. Tudo isso preparando o clima para a grande mudança comportamental que chegou
mais tarde nos anos 70. Nao podemos esquecer tambem que Henry Miller manteve sua
casa “além do paraíso” no Big Sur, que fica há duas horas da Bay Area. Mas isso
é assunto para um próximo artigo.
A City
Lights magazine foi publicada como uma irreverente revista apenas em cinco números.
Por uma razão de motivos, Martin (ver artigo anterior) decidiu retornar a Nova Iorque.
Com isso, Ferlinghetti comprou sua parte na sociedade por mil dólares em janeiro
de 1955 e resolveu trabalhar em suas próprias idéias para o negócio. Por conta de
sua formação acadêmica em Sorbonne – Paris, Ferlinghetti estava familiarizado com
a tradição dos livreiros atuarem também como editores em muitas circunstâncias,
inclusive para projetos especiais. Além disso ele desejava publicar pequenas edições
de poesia em formato de livros de bolso com capas de papel ao invés das capas duras,
mais caras e formais.
A primeira
publicação da City Lights foi a coleção de imagens do “The Gone World” em 1955 com
500 cópias impressas pela refinada gráfica de David Ruff. Este foi o best-seller
da época da série dos livros de bolso (Pocket Poets Series), inspirada por um similar
francês editado como série dos “Poetas de Hoje” (Poets of Today series).
A partir
disso com o sucesso do formato, publicaram o “Trinta Poemas de Amor em Espanhol”
(Thirty Spanish Poems of Love) e “Exílio”(Exile) traduzido por Kenneth Rexroth.
Em seguida vieram o “Poemas de Humor e Protesto” (Poems of Humor & Protest)
de Kenneth Patchen, o famoso “Howl e outros poemas” de Allen Ginsberg, o “True Minds”
de Marie Ponsot, e o “Here and Now” de Denise Levertov. Estes livros naturalmente
tornaram-se a “prata da casa” e são reeditados periodicamente como os clássicos
da City Lights, através de todos estes anos do seu fomento de poesia e arte independente.
ESPAÇO DA POESIA | Um dos últimos boêmios remanescentes
da época, o Henri Lenoir, fundou o bar Vesuvio, vizinho de porta da livraria. Ele
morava no segundo andar do prédio, literalmente em meio aos livros, numa das salas
destinadas para o espaço de leituras e encontros poéticos. Até hoje, o espação para
poesia continua o mesmo. E constitui-se em uma das maiores coleções e acervos de
poesia comparada a qualquer livraria dos Estados Unidos ou até mesmo do mundo. São
milhares de livros dos mais variados autores em diversas línguas. Desde Auden até
Zukofsky, sem contar as seções especializadas e destinadas para literatura Beat.
São poetas publicados pela City Lights, livros sobre crítica, antologias nacionais
e internacionais de poesia. Além disso, frequentemente realizam eventos de leituras,
festas do livro e noites de autógrafos. O calendário com as datas e horários fica
disponível no próprio mural da livraria além de outros lugares do bairro, também
descolados e “cults” de NorthBeach. E por último, encontramos uma pequena seleção
de livros usados. Um reflexo do eco do desejo de Ferlinghetti`s , já que sua idéia
original foi a de montar uma livraria desses livros de segunda mão, o nosso famoso
sebo, em português. Com isso, todo o espaço mantém uma atmosfera especialmente “vintage”,
como um relicário intacto pelo tempo. Fica claro o contraste entre o clima de antiquário
da City Light e as novas livrarias de cadeias corporativas, estas de espaço limpo,
super iluminado e com cores claras se opondo a madeira escura dessas prateleiras
que ainda sabem contar muita estória literária.
Ocupando todo o restante do segundo andar, funcionava o escritório da City Lights editorial enquanto a livraria funcionava logo abaixo. Em 1960 Ferlinghetti comecou a contratar assistentes por meio período, entre eles os nomes de Joanne Joseph, Stella Levy, Jan Herman and Gail Chiarrello.
Ocupando todo o restante do segundo andar, funcionava o escritório da City Lights editorial enquanto a livraria funcionava logo abaixo. Em 1960 Ferlinghetti comecou a contratar assistentes por meio período, entre eles os nomes de Joanne Joseph, Stella Levy, Jan Herman and Gail Chiarrello.
Em1971,
ele convenceu Nancy J. Peters – na Época funcionÁria da biblioteca do Congresso
– para trabalhar em um projeto especial. Impressionado com sua inteligência e seu
conhecimento literário acabou convidando-a para permanecer tempo integral no emprego.
Desde então, atuou como diretora da empresa ao lado de Ferlinghetti. Sendo assim,
ela passou a ser o coração e o espírito condutor do negócio. Ele ainda a considera
hoje, como uma das melhores editoras profissionais do país. Em seguida Bob Sharrard
começou a trabalhar como contador na loja em meados dos anos 70. Hoje, ele atua
como o editor sênior e gerente de direitos autorais subsidiados por fundações. Elaine
Katzenberger, que também começou seu trabalho na loja antes de entrar para a equipe
de editores, tornou-se posteriormente diretora associada da empresa.
Atualmente,
a City Lights publica não somente poesia e ficção – incluindo a grande parte de
traduções – mas também livros sobre assuntos políticos e sociais. São mais de 100
livros publicados – dentro de uma linha independente das grandes corporações distribuidoras
– e uma média de doze novos títulos a cada ano. As publicações assim como a loja,
são basicamente famosas e reconhecidas por seu profundo comprometimento com uma
democracia radical, além claro de uma política extremamente progressista. Como eles
colocam muito bem no website, "Sem a editora por detrás, a loja seria apenas
mais uma livraria independente perdida no meio de outras, mas trabalhando em conjunto,
ambas realizaram algo de positivo impacto na cultura americana."
Em 1984,
Ferlinghetti trouxe Peter como um novo sócio em um momento em que o negócio estava
passando por um sério stress financeiro. Com a equipe de Paul Yamazaki, Richard
Berman, Scott Davis, Gent Sturgeon, Andy Bellows, Lara Whitney, Jeff Battis, Janaki
Rampura, Karl Bauer, Don Campana, Esther Morales, Luke Carmody, Mitra Ganley, Matthew
Gleeson, Chanté Mouton e Tan Cao, a City Lights continuou sua trajetória e fama
de excelente combinação de livraria-editora independente. Nos últimos anos, o mesmo
Peter Maravelis – coordenador de eventos – organizou inúmeros e memoráveis encontros
de literatura; o assessor de impresa Stacey Lewis mantém City Lights nos noticiários
da mídia e o website criado por Eric Zassenhaus faz a convergência entre os importantes
aspectos da loja/editora: a história, o estoque de livros, o departamento de pedidos
por correio, eventos e divulgação de novidades em produtos e imprensa.
Finalmente
em julho de 2001, o Conselho Supervisor de San Francisco nominou com unanimidade
o prédio da City Lights Bookstore como o marco da cidade (Landmark) número 228.
Tudo isso em função de “seu papel fundamental em fomentar desenvolvimento cultural
e literário em San Francisco, atingindo toda a nação; e também por proteger e restaurar
a livraria City Lights (em especial após o terremoto) e por publicar e proporcionar
voz para escritores e artistas em todos os lugares.”
Agora,
após meio século apoiando o direito à leitura, ao pensamento livre de opressões
políticas, à escrita, ao debate e interlocução sobre controvérsias, City Lights
de fato virou um símbolo do espírito questionador e intelectual americano. Desde
Des Moines e Paris passando por Delhi e até mesmo Sidney na Austrália, as pessoas
que vieram visitar o reconhecido lugar da livraria – com sua fama internacional
– puderam conferir tudo com os próprios olhos e sem decepção. E ainda perceber claramente
que este é o lugar do bom “ponto” de encontro em literatura e poesia na cidade.
E como
Ferlinghetti costuma dizer, “Num tempo em que o consumo dominante de TV dirige a
cultura e a vida das pessoas para um resultado desastroso de estupidez (‘dumbing
down’) na América do Norte, City Lights ainda põe o dedo no buraco da ferida e provoca
um fluxo de pensamento e aprendizado instigante sobre o desconhecido.”
Por falar nisso,
a revista canadense "Adbusters" (subtítulo: Journal of the Mental Environment)
nesta edição de Maio/Junho toca exatamente neste assunto sem retoques. Aliás, eles
sempre estão na mira da mídia e suas ciladas de lavagem cerebral: políticas/conceituais/econômicas.
E não só nos paises de língua inglesa, mas também no mundo todo. O artigo "The
Media Carta Legal Battle: Back on Track" coloca exatamente a questão do direito
da liberdade de expressão e opinião através de qualquer mídia, principalmente a televisiva. O artigo está na home do
website e conta como a posicão anti-consumo da revista a impede de ter seu conteúdo
em um canal televisivo. Além disso, eles também trazem um anúncio-campanha de uma
página dizendo "TV turn off… scape the fantasy" (desligue a TV… escape
da fantasia). Quem quiser que confira, por sinal com um design muito bom, aplausos para eles.
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PAULA VALÉRIA ANDRADE nasceu carioca, viveu
em São Paulo e atua como poeta, escritora, cenógrafa e figurinista para teatro,
TV e cinema por 25 anos. Publicou IriS digiTaL
Poesy(a) (2005), seis livros infantis com prêmios Jabuti, APCA, FNLIJ, White
Ravens, A Arte em Todos os Sentidos (2000) e participou
de sete antologias internacionais. Residiu em San Francisco (Califórnia) por dez
anos trabalhando com teatro, poesia e a web TV. Página ilustrada por Francisco Baratti
(Brasil), artista convidado desta edição de ARC.
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