O Grupo de Bloomsbury, mesmo não podendo
se atrelar a qualquer definição rígida acerca de suas tramas e de nuances estético-conceituais,
constitui importante grupo artístico-filosófico que tomou corpo e influência ao
longo do século XX. Começou como uma reunião de amigos provenientes de Cambridge,
incluindo ainda algumas pessoas a eles relacionadas. A partir de 1905, quando a
primeira reunião das que vieram a ocorrer às noites de quinta-feira se deu, até
a década de 1950, muitos foram agregados, mudaram-se ou faleceram. Assim, durante
esses anos, a expressão “Grupo de Bloomsbury” adotou ampla variedade de sentidos,
de maneira que alguns, antes claramente membros, passaram a almejar a recusa disso,
e muitos que não eram membros disseram ser; ou se colocavam no lugar de simples
aliados ou de inimigos. Nessas mutações, o grupo, conforme existiu antes da Primeira
Guerra Mundial, veio a ser chamado “Old Bloomsbury”, e os sujeitos a ele pertencentes
contavam, por exemplo, com Virginia e Leonard Woolf, o irmão mais jovem de Virginia,
Adrian Stephen; Lytton Strachey e seu irmão James, e Roger Fry. Durante a Primeira
Guerra, adentraram ao quadro Karin Costelloe e Alix Sargant-Florence, que se tornou
esposa de James Strachey (ORR, 2004).
O irmão de Lytton nasceu em 1887, sendo, portanto, sete anos mais jovem.
Quando ele foi da Saint Paul’s School para o famoso Trinity College, em Cambridge,
segundo Winnicott, que escreveu seu obituário, não realizou nada relevante por três
anos; a não ser travar conhecimentos com todos que lhe eram interessantes, e conversar
sobre tudo que lhe parecesse de proeminência. Diferentemente de demais membros do
Bloomsbury, que se encontravam absorvidos pela obra filosófica de G. E. Moore, Strachey
adotou o socialismo fabiano e, em decorrência, o concernimento quanto a problemas
sociais. Também desenvolveu um interesse profundo por música. Durante um tempo,
foi acusado de viver à sombra do irmão, como uma espécie de duplo artístico-intelectual
mais anêmico dele, tornando-se, também, seu principal confidente e conselheiro.
Era ainda muito íntimo de Rupert Brooke, então presidente da Sociedade Fabiana de
Cambridge. No verão de 1908, Lytton e James viajaram à Escócia; o primeiro, devido
à sua saúde, este, para se recuperar de efeitos perturbadores de sua adoração cega
e absoluta por Rupert Brooke. Nesse ínterim, Lytton passou a escrever com regularidade
para The Spectator e James aproveitava grande parte de seu tempo entre a
ópera e o teatro. A partir de 1909, e durante seis anos, James foi secretário particular
de seu primo Loe Strachey – editor do The Spectator. Foi demitido em 1915
por se posicionar contra a Guerra. Ele e seu irmão compartilhavam desse ponto de
vista voltado ao Socialismo, e de uma oposição e pessimismo face à Guerra. No primeiro
ano do conflito, mas agora noutra seara, James, Lytton e uma colaboradora, Marjorie,
criaram um interessante e delicado minueto, buscando passar pela esteira de Mozart;
e aquele iniciou seu relacionamento com Alix. Chegou a trabalhar como C. O. para
uma organização Quaker que distribuía leite para as esposas inglesas de civis alemães
detidos (ORR, 2004).
Em 1918, os irmãos Strachey foram ao julgamento do filósofo Bertrand Russel,
que estava sendo acusado de propaganda subversiva. No mesmo ano, James começou a
estudar medicina. Como aponta Winnicott, Strachey ficou muito impressionado com
uma citação de Freud num livro escrito por C. G. S. Meyer, e então veio a procurar
Ernest Jones, que indicou formação médico-acadêmica como prioridade a uma formação
psicanalítica. Após algumas semanas de estudos médicos, James apanhou um resfriado
e, segundo a monografia de Douglass W. Orr (2004), intitulada Psychoanalysis
and the Bloomsbury group, uma considerável dosagem de tédio. Acabou se tornando
crítico dramático para o Athenaeum por um ano. Continuou sustentando seu interesse
pela psicanálise e finalmente decidiu-se por escrever direto para Freud. O mestre
vienense, agraciado por ser interpelado por um inglês logo após a Guerra, respondeu
prontamente e convidou James e Alix a irem até Viena. Foram em 1920, já como marido
e esposa. Existe um interessante comentário de Ernest Jones sobre a aventura; quando
James foi estudar com Freud, o próprio Jones escreveu uma carta de apresentação,
não de todo elogiosa, destacando o quanto conhecia pouco acerca de Strachey até
então. Numa das primeiras sessões da análise do tradutor inglês, Freud leu a carta
em voz alta para ele. No ano seguinte, o mencionado casal já estaria articulando
a análise com a grandiosa tradução. Em março de 1921, James escreveu à sua sogra
relatando que ele e Alix estavam traduzindo alguns dos artigos técnicos de Freud.
Haveria cinco deles, cada qual fornecendo uma história detalhada de algum caso especialmente
interessante. Os textos foram escritos a intervalos durante as décadas entre 1899
e 1920, e apresentam um amplo espectro do desenvolvimento da perspectiva freudiana.
O livro viria a ter por volta de 500 páginas. Para os Strachey, afigurava-se uma
grande honra; e uma ampla realização clínica e intelectual: obter um conhecimento
especialmente profundo da metodologia freudiana, e íntimo, ao poderem conversar
diretamente com o mestre sobre tais aspectos – e inclusive sobre os percalços de
tradução. Ainda, o lugar de tradutores oficiais de Freud para o idioma mais difundido
no mundo lhes traria especialíssimo destaque nos círculos de saúde mental de então,
e, em especial, em seu próprio país de origem.
A principal contribuição de James strachey para a psicanálise, além do tão
fundamental trabalho de tradução e editoração da Standard Edition, foi uma
série de conferências apresentadas em 1933 nas quais formulou seu conceito de interpretações
mutativas. Nelas, como sustenta D. W. Winnicott, ele tornou explícito o princípio
de interpretação econômica, interpretação ao ponto de urgência, articulada para
ser feita em momento propício, tendo em consideração o material apresentado pelo
paciente e lidando de modo claro com uma amostra de neurose de transferência. Strachey
ainda foi o executor literário de Lytton, inclusive ao editar um livro do mesmo
contendo artigos e chamado Spectorial essays, e se esforçou para encontrar
um escritor à altura para a biografia de seu irmão. Ainda, colaborou com Leonard
Woolf na edição do livro Virginia Woolf e Lytton Strachey: letters (ORR,
2004).
Enquanto psicanalista, em especial no que tange ao âmbito clínico, ressalta
Orr (2004), Strachey tratou de assunto bastante interessante, complicado e controverso:
o mecanismo da mudança. Em seu tempo, alguns analistas defendiam que a mudança dependeria
da resolução de conflitos intrapsíquicos mediante as interpretações transferenciais,
ao passo que outros viam o relacionamento terapêutico em si como o mais poderoso
veículo da transformação. Aliás, grande parte dessa controvérsia foi impulsionada
por um trabalho do próprio Strachey, cuja perspectiva veio a se tornar um modelo
clássico de ação terapêutica em psicanálise e que serviu de ponto de partida para
várias incidências clínico-teóricas.
O fundamento da visão de Strachey é constituído por uma interpretação mutativa
focada na distorção da transferência. Tal ação diz respeito à admissão de que o
analista seja colocado na posição de superego auxiliar pelo paciente. Nesse
papel, o analista fornece permissão para o paciente exprimir certa pequena quantidade
de energia do id na forma de um desejo ou impulso agressivo. O analista se
posiciona também no papel do objeto dos impulsos do id do paciente. No entanto,
o paciente reconhece que o analista não está, em realidade, agindo qual o objeto
arcaico que é alvo do impulso agressivo. Assim, o primeiro se tornaria consciente
que há uma diferença entre o objeto interno projetado e o objeto real externo. O
novo objeto, então constituído pelo analista, passa a ser internalizado como um
introjetado menos agressivo – o que, por sua vez, modificaria a aspereza, a rudeza
mesma, do superego (GABBARD, 1999).
Nesse ínterim, há duas fases da interpretação mutativa. Na primeira, o analista
torna o paciente consciente de certo estado de tensão interna, que é relacionada
a uma ameaça do superego do paciente em resposta a um impulso do id.
A segunda envolve a consciência do paciente, quando o impulso agressivo do id
emerge na consciência, de que o objeto fantasístico e o analista real são diferentes.
Strachey enfatiza que nessa fase o analista deve evitar a todo custo agir como o
objeto fantasístico ao se tornar chocado ou enervado à expressão do impulso do id
trazida pelo paciente. Somente quando o analista mantém um aspecto de neutralidade,
o paciente se torna apto a distinguir a discrepância entre objetos reais e internos
e, destarte, internalizar o analista como um novo objeto que modifica o superego.
Em decorrência, é interessante notar que, em leitura acurada do trabalho clássico
de Strachey, torna-se perceptível que a internalização de um novo relacionamento
e certa modificação das relações de objeto internas do paciente seriam cruciais
para a ação terapêutica. Até se esta tiver sido posta em movimento por uma intervenção
interpretativa (GABBARD, 1999).
Em artigo de Strachey (1999) mesmo, intitulado The nature of the therapeutic
action of psycho-analysis, o autor esclarece da seguinte maneira os mencionados
pontos sobre a clínica analítica: a primeira fase da interpretação mutativa, na
qual uma porção da relação de certo conteúdo do id do paciente ante o analista
é tornada consciente em virtude da posição do último como superego auxiliar,
é bastante complexa em si mesma. No modelo clássico da interpretação, o paciente
se tornará, primeiramente, consciente de um estado de tensão em seu ego,
daí, será feito consciente que há um fator repressivo atuando – que seu superego
o está ameaçando com castigos – e somente assim tornar-se-á consciente do impulso
do id que veio a alavancar os protestos de seu super-ego e, nessa
trilha, feito com que ascendesse a ansiedade em seu ego. Esse constitui o
esquema clássico. No que Strachey chama de sua prática atual, o analista encontrar-se-ia
trabalhando dos três lados de uma vez, ou em sucessão irregular. Em dado momento,
uma pequena porção do superego do paciente pode ser revelada ao mesmo em
toda sua selvageria, noutro, a situação do ego de não conseguir de fato defender-se;
ainda, sua atenção pode ser direcionada às tentativas que faz de restituição; em
busca de compensação por sua hostilidade; em algumas ocasiões, uma fração da energia
do id pode ser até encorajada diretamente a desbravar os restos de uma resistência
já enfraquecida. Existe, no entanto, uma característica comum a todas essas operações;
acontecem em pequenas dosagens – a interpretação mutativa é governada pelo princípio
de ser um processo bem gradual. Segundo Strachey, as grandes mudanças em curto período
de tempo tendem a vir mais de um trabalho sugestivo do que de aspectos analíticos.
Pois cada interpretação envolve o investimento, a soltura (release) de certa
quantidade de energia do id e, conforme seria perceptível na clínica, se
a quantidade de energia liberada é muito grande, o instável equilíbrio que habilita
o analista a funcionar como superego auxiliar do paciente é levado ao colapso.
Em todo caso, é pela ação analítica que tem em conta a constituição e funcionamento
do superego auxiliar que tais liberações (releases) de energia podem
se efetuar.
Assim, no texto de Strachey, é interessante encontrar, por exemplo, o termo
id-impulse, ao invés de instinct; mais biologizante e utilizado, na
maior parte das vezes, na tradução inglesa de Freud (da edição Standard)
para se referir ao investimento ou movimento da libido, quando ela, por exemplo,
investe um objeto, conforme o conceito de Besetzung (“investimento”, “movimento
para ocupação”) que a libido realiza. Ainda, percebe-se no artigo o respeito do
tradutor inglês à observação freudiana acerca da própria palavra “psicanálise”;
Strachey, assim como em muitos momentos de seu trabalho de tradução, inclusive no
livro que aqui é nosso objeto de estudo, The interpretation of dreams, respeita
a observação do mestre vienense de que o mais adequado seria dizer ou grafar, conforme
o alemão, Psycho-Analyse, com ênfase, portanto, no aspecto de estudo da alma
– psique. Destarte, no texto do inglês é comum encontrar a grafia psycho-analysis.
Ainda, deparamo-nos com os termos latinizantes ego, id e superego,
para traduzir as palavras (conceitos) do original alemão: Ich (“eu”), Es
(“isso”) e Überich (“sobre eu”).
De tal modo, atendo-nos, devido a limites de amplitude textual, a dois capítulos
de The interpretation of Dreams, o II e o VII, de fundamental importância
prática (no caso do II, trata-se de onde se encontra um amplo exemplo de interpretação
onírica, e autoanálise freudiana; é apresentada a análise de um sonho modelo, o
famoso Sonho da injeção de Irma) e teórica (pois, no capítulo VII,
é mostrado, pela primeira vez, o molde freudiano do aparelho de alma, seelischer
Apparat, que, conforme é colocado no Compêndio de psicanálise, deve ser
imaginado, figurado, pelo analista, com fins de compreensão psicodinâmica dos processos
anímicos), para discutir o trabalho de tradução e decorrente estilo textual de Strachey,
podemos observar o seguinte: o estilo em inglês é límpido, direto, similar ao alemão;
em todo caso, o próprio aspecto mais conciso e direto da língua inglesa mesma destaca
ainda mais tal característica, e Strachey parece procurar fazer desse modo um uso
produtivo dessa tendência, deixando o texto com um discurso claro e objetivo, ou
seja, segundo uma textualidade que obedece e faz intenso uso do critério positivista
de objetividade da exposição conceitual e consequentes relações entre conceitos
e exemplificações: “for ‘interpreting’ a dream implies assigning a meaning to it
– that is, replacing it by something which fits into the chain of our mental acts
as a link having a validity and importance equal to the rest” ou ainda: “As we have
seen, the scientific theories of dreams leave no room for any problem of interpreting
them, since in their view a dream is not a mental act at all, but a somatic process
signalizing its occurrence by indications registered in the mental apparatus” (FREUD,
1980). Nesse estilo técnico-científico, de caráter tanto estilístico quanto terminológico,
a própria escolha do título do capítulo, The method of interpreting dreams: an
analysis of a specimen dream, mostra um aspecto instigante da escolha de Strachey,
a palavra specimen, em inglês, apresenta certa duplicidade semântica, que,
em todo caso, caminha para a linguagem médico-científica: trata-se de espécie, no
senso de espécime, ou amostra, por exemplo, no quesito de uso laboratorial, como,
por exemplo, falamos de uma amostra de sangue (segundo o dicionário Oxford).
A palavra que Freud forja em alemão é Traummuster, ou seja, amostra de sonho
(Traum), assim, em alemão, o vocábulo atrelado a Traum, Muster,
tem um sentido de amostra, mas também de modelo, padrão, desenho, estampa, não tendo
um cunho tão biológico ou laboratorial como o specimen de Strachey; nessa
linha, mesmo obtendo em consideração as conhecidas ambições científicas de Freud
para o reconhecimento epistemológico da psicanálise pelo campo intelectual de cunho
positivista, sua maneira de se exprimir, já no título do capítulo, é mais ampla,
menos científico-positivista ou laboratorial, ou seja, médica, que a escolha de
Strachey; cuja voz também pode ser ouvida na escolha da expressão mental apparatus,
conforme se vê no trecho que destacamos acima, para traduzir a germânica expressão
tecida por Freud: seelischer (ou psychicher) Apparat (aparato
de alma, anímico, psíquico). É importantíssimo, em termos conceituais e de visada
clínica, conforme nos alerta Bruno Bettleheim (1982) em seu Freud and man's soul,
perceber que a tradução inglesa Standard faz uso da ideia de mente (mind,
mental) e não de alma (Seele), conforme colocado na obra mesma de
Freud. Assim, tal distorção, ao buscar cientificizar, delimitar conceitualmente,
a noção freudiana, rouba-nos das implicações da noção de alma, anímico, tão cara
à metapsicologia. Em momento ainda mais incipiente de seu labor, em 1890, sendo
que o termo psicanálise somente virá a se configurar na letra de seu criador em
1896, Freud escreveu um artigo dedicado a detalhar sua concepção de “tratamento
psíquico” (Psychische Behandlung), ou seja, da alma, feito para tal, assim
delineando um tratamento psíquico, ou anímico.
Segundo Mario Eduardo Costa Pereira (2013), no artigo A nada santa alma
freudiana, é digno de nota que o mestre vienense já inicia seu texto referindo-se
e tomando cautela e observação quanto a questões de terminologia e tradução, lembrando
o leitor que Psychê é vocábulo grego e sua tradução germânica é Seele:
alma.
Em outros termos, ao incorporar a seu
vocabulário técnico a Psychê dos antigos – de maneira direta ou pela via do Seele
alemão – Freud assume implicitamente as conotações dessa tradição: como princípio
de vida, de inteligibilidade e de afetividade. Contudo, a essa referência à tradição
grega, o criador da psicanálise acrescenta uma precisão decisiva: a expressão “tratamento
psíquico” não busca tanto enfatizar o objeto sobre o qual ele supostamente se aplica,
“a alma”, mas o meio pelo qual se exerce, ou seja, um meio próprio à alma: a palavra.
Uma cura pela palavra, um tratamento pela conversa, uma talking cure, são todas
definições que explicitam a especificidade da clínica freudiana, a qual busca ter
acesso à alma do homem que sofre dando-lhe a palavra, da maneira mais espontânea
possível, deixando-lhe dizer tudo o que lhe vem à mente. Para Freud, a “alma” e
a palavra encontram-se intrinsicamente articuladas.
(...)
De fato, em Freud trata-se de uma “alma”
muito particular que em nenhum caso se confunde com uma substância, ainda que imaterial,
como proporia uma concepção cartesiana. Ao contrário, sua completa virtualidade
é explicitamente evocada através dos múltiplos esforços freudianos para figurar
um “aparelho da alma”, um “aparelho psíquico”, ou ainda, um “seelischer Apparat”
(PEREIRA, 2013).
O molde mais evidente é o célebre “esquema ótico”, apresentado no capitulo
VII da Interpretação dos Sonhos (1900), no qual o aparelho psíquico é imaginado
como um sistema de lentes de, por exemplo, um telescópio, alocadas em sequência,
que seriam cruzadas por um facho luminoso segundo certa acomodação espacial e temporal
determinada.
As lentes seriam metáforas das diferentes camadas de organização dos traços
de memória, constituídas segundo gramáticas e conteúdos mnêmicos próprios aos diferentes
períodos da vida, ou seja, das diferentes modalidades temporais de relação do sujeito
com o Outro. O fenômeno “anímico” seria, assim, a composição virtual desse feixe
de luz, cambiante a cada instante de sua travessia desses diferentes lugares psíquicos,
os quais, em última instância, são estruturas de memória e linguagem (PEREIRA, 2013).
De tal modo disposta, tal noção parece em viva incongruência com o aspecto
livre e aéreo que uma perspectiva mais romântica poderia indicar à alma humana.
Tratar-se-ia, desse modo, exclusivamente do resultado passivo e fantasmagórico das
determinações inconscientemente impostas pela história e pela linguagem a um sujeito,
nas suas relações com o Outro? O “sopro” mediante o qual os antigos se atinham à
alma não passaria de uma quimera encobertando a total sobredeterminação do “sujeito”,
reduzido assim a alguma condição de irrestrito assujeitamento? Nessa visada, a Traumdeutung
instituiria a listagem e explicitação das regras “pelas quais a aparente liberdade
da alma estaria, na verdade, inteiramente submetida às regras de uma cadeia associativa,
funcionando segundo uma lógica fria e automática que escapa inteiramente ao próprio
sujeito” (PEREIRA, 2013). Em tal perspectiva, a ideia do “aparelho” referiria fundamentalmente
ao aprisionamento da alma em suas consignações simbólicas. Entretanto, o que a Traumdeutung
explana é precisamente que o sujeito não é por inteiro dedutível da conexão lógico-simbólica
na qual se inscreve e pela qual extrai sua condição de existir qual ente atravessado
pela linguagem. Mesmo o sonho mais interpretado, analisado, em Freud, traz que a
nascente de suas associações está fundeada no “‘Não-Reconhecido’” (das Unerkannten),
ponto em que as palavras são incapazes de traduzir integralmente o desejo que o
move” (PEREIRA, 2013). Constituída por sua inscrição fundamental nas tramas da linguagem
e, por conseguinte, mnêmicas, a alma freudiana não se deixa limitar a categorias
da lógica e da representação. Ela, na verdade, se define mediante o resto que insiste
em tentar se manifestar, exprimir, traduzir; em se fazer reconhecer e se realizar,
atuar, ainda que de maneira sempre incompleta e surpreendente. É precisamente nesse
sentido que Freud cunhou um método clínico que ao mesmo tempo é um método de pesquisa,
e não um caminho de dedução adiantada. É preciso conceder a palavra ao sujeito,
para que, em transferência, ele mesmo possa se espantar ao se escutar dizer algo
de integralmente imprevisto, mas densamente revelador de si próprio. Ademais, o
autor do artigo em foco nos lembra que
a “alma freudiana” não é nada santa.
Aquilo que circula no “aparelho anímico” é fundamentalmente libido, princípio erótico
que, em sua tendência mais elementar, busca a satisfação pelas vias mais curtas
possíveis, sem levar em conta qualquer consideração de ordem moral, prática e nem
mesmo de sobrevivência. Trata-se de pura vontade de gozo, que, diante da impossibilidade
da realização plena, deve poder investir eroticamente sua própria falta e incompletude.
Nesse mesmo movimento, é o desejo que emerge como motor erótico da alma confrontada
à castração de sua própria incompletude. (PEREIRA, 2013)
Igualmente, deve-se dizer que a alma freudiana, sem se enlear com o inconsciente
coletivo de Jung, ou configurando conceito metafísico-cosmológico, espécie de Anima
Mundi, como se diz na literatura e no ocultismo, por exemplo, na poesia de William
Butler Yeats; não é solipsismo absoluto ou ser absoluto, imutável; antes; está em
continuidade com a tradição e experiência humana. “Para Freud, a experiência de
realidade não tem nada a ver com se perceber as coisas tais como elas efetivamente
são, mas sim com concebê-las e recortá-las segundo coordenadas simbólicas compartilhadas
com o restante do grupo humano” (PEREIRA, 2013). Trata-se de realidade psíquica;
e, destarte, do sujeito atravessado pelo simbólico – o âmbito da linguagem em sua
plasticidade e decorrentes incorrências. Assim, torna-se fundamental obter em consideração
o Complexo de Édipo, com suas raízes ancestrais, arcaicas, e com sua “jurisdição
generalizada”, constituindo a pedra angular da ordenação simbólica do psíquico,
afiançando uma condição mínima de instalação do sujeito na situação humana pela
via da linguagem. No entanto, e “Caprichosamente, contudo, a palavra é sempre impotente
para responder a nossos questionamentos mais fundamentais sobre nós mesmos e para
garantir uma comunicação sem resto, uma cópula perfeita, com o outro” (PEREIRA,
2013). Então assinalada pelo laço humano da linguagem, ainda assim a alma freudiana
está trespassada por um laivo irremediável de solidão.
A investigação clínica da alma, delineada na constituição da psicanálise,
aponta para certa dualidade, especialmente quando confrontamos o Projeto para
uma psicologia científica (1895) com A interpretação dos sonhos (1900).
A primeira perspectiva é pronunciada em termos muito conexos aos empregados pelos
colegas de Freud do Instituto de Fisiologia da Universidade de Viena, em cujo laboratório,
em seu período acadêmico, ele desenvolvia com grande entusiasmo investigações de
teor positivista. O arrebatamento que apresentava pelas atividades de pesquisa só
se comparava ao respeito e admiração que nutria por seu mestre nessas empreitadas,
Ernst Brücke. “A interpretação dos sonhos – que dispensa apresentações por ter sido
das obras mais editadas e traduzidas na contemporaneidade – distingue-se, radicalmente,
em seu enunciado, do Projeto, o qual Freud nunca levou a público” (LO BIANCO, 2002).
Ao oposto do que se nota no texto de 1895, que privilegia o mecanismo neuronal,
as quantidades, os investimentos e os movimentos de energia no Aparato Psíquico,
em A interpretação dos sonhos, é da matéria tão cotidiana e pouco
estimada pelos estudos científicos que Freud irá tratar. “Os sonhos, pode-se dizer,
eram o resto do que interessava ao pensamento científico de final do século XIX.
Sem dúvida, há nesta passagem de um a outro texto, uma inflexão preciosa a ser demarcada”
(LO BIANCO, 2002). Localiza-se, na mesma, a tensão que distingue a escrita freudiana,
assim como o ponto no qual se faz radicalmente distinto das produções do termo do
século. Estas dimanavam, quase totalmente, na esteira do positivismo, que ambicionava
de início ser a teoria, a visão de mundo, que garantiria o caráter positivo, e legítimo,
do conhecimento científico. Freud, no ponto mesmo em que se forma e partilha do
universo vinculado a essa visão, elege ainda outra, consagrada ao apelo à poetização
da vida, colocando as artes no cerne das temáticas humanas; trazendo o tópico onírico,
do cotidiano, para tornar o inusitado e singular também objeto de inquirição e conhecimento.
No enunciar-se, sob transferência, um sujeito, ao procurar pronunciar sua
verdade, pode se assombrar, por um átimo, justamente por perceber-se enquanto sujeito.
Descobrimento sempre prófugo, que se atualiza exclusivamente nesse lampejo do ente,
“pois a alma que assim se expressa, tal como o vento, é perpetuamente móvel” (PEREIRA,
2013). Mas enquanto evento, descobre-se existir. Singularmente, ainda que inseparável
da estrutura e incidência do cosmo. Ainda nesse sentido, Bruno Bettelheim (1982)
destaca que, em alguns matizes, a história de Amor (Eros) e Psiquê é uma espécie
de contraparte da lenda de Édipo, apesar de relevantes distinções. A lenda de Édipo
fala do medo de um pai quanto a ser suprimido e substituído por seu filho; para
inverter tal processo, o pai tenta destruir o último. Na história de Psiquê, fala-se
de uma mãe que está temerosa quanto à possibilidade de certa jovem substituí-la
nas afeições da humanidade, e de seu filho, e que, portanto, tenta destruir a jovem.
Mas, ao passo em que a lenda de Édipo se apresenta tragicamente, Amor e Psiquê têm
um final feliz; e seria esse fato significante. O amor de uma mãe por seu filho
e sua ira cega contra a jovem que ele prefere pode ser, por exemplo, algo relacionado
ao fato da jovem ultrapassar a mulher madura em beleza; que um filho se afaste da
mãe para vincular-se à sua noiva, que a noiva tenha de sofrer devido ao ciúme da
mãe do amante – tudo isso, apesar de extremamente conflituoso, na leitura de Bettelheim,
estaria de acordo com emoções humanas previsíveis, esperáveis, e se colocaria na
linha do conflito de gerações. É por isso que, ao cabo, Júpiter e Vênus aceitam
a situação; Amor e Psiquê celebram seu casamento à presença de todos os deuses;
Psiquê é tornada imortal e Vênus se apazigua quanto a ela. Mas Édipo, ao matar seu
pai e se casar com sua mãe, executa uma fantasia infantil que deveria assim haver
permanecido. Ao fazê-lo, Édipo teria ido contra a natureza; a physis; o que
resulta no desfecho trágico para os envolvidos.
Em todo caso, se Freud estava ou não ciente ou movido pelos paralelos e diferenças
desses dois mitos, não sabemos, mas sabe-se quão fascinado ele era pela mitologia
grega, estudando-a intensamente, além de colecionar estatuário grego, romano e egípcio.
Portanto, ele absorveu que Psiquê foi caracterizada como jovem e bela, e enquanto
portadora de asas de pássaro ou borboleta. Pássaros e borboletas são símbolos da
alma em várias culturas, e servem para enfatizar sua característica de transcendência.
Desse modo, tais símbolos investiram o vocábulo “psique” com conotações de beleza,
fragilidade e insubstancialidade; ideias que ainda vinculamos à noção de “alma”,
e, Bettelheim nos adverte, sugerem o grande respeito, cuidado e consideração com
as quais Psiquê deve ser manejada, pois outro procedimento a violaria ou, até mesmo,
destruiria. O analista austríaco ressalta que respeito, cuidado e consideração são
atitudes que a psicanálise também requer. Em nosso trabalho, atentamos de forma
mais pontual para que, portanto, trata-se de exigência destarte premente à tradução
psicanalítica.
O capítulo II, ora obtido em tela, da Traumdeutung, possui um aspecto
deveras imagético, na apresentação de seu próprio sonho, o famoso Sonho da Injeção
de Irma, Freud o perfila mediante várias e ricas imagens, apresentando, a cada
passo hermenêutico, suas associações reveladoras às mesmas, desnudando-se até onde
lhe é possível, no intento de sustentar sua tão inovadora quanto complexa tese sobre
o sonho enquanto realização distorcida, disfarçada mediante os recursos psíquicos
da condensação e do deslocamento, de desejo recalcado, mas presente e atuante em
âmbito inconsciente. “O sonho da injeção de Irma, especialmente a garganta examinada,
ilustra o encontro enigmático com a sexualidade para a qual nenhuma representação
é adequada” (SANTIAGO & LINO, 2010). A proposição freudiana na época era a de
que o sintoma neurótico manifestava a presença de determinadas representações simbólicas
ignoradas pelo sujeito e que, em decorrência, um ganho de saber seria a abertura
do caminho para uma possível cura. O inconsciente, então, no feitio de um reservatório
de representações simbólicas que tiveram de ser excluídas, apresenta a dimensão
de um saber não sabido e, com a verbalização das palavras que se aproximam de traduzir
alguma parte do conteúdo de conflito no sujeito: um ganho de saber seria aguardado,
acreditando-se que assim o sintoma poderia ser em parte (ou, como pensado na época;
até mesmo no seu todo) abolido. O desígnio psicanalítico, conforme aventado no artigo,
e com base no apresentado ponto de vista, seria o de engatar o sujeito na construção
do saber que ficou imêmore por imposição do recalque, na esperança de recuperar,
(re)configurar, a representação referente à sexualidade. Desse modo, quanto a tal
aspecto fortemente imagético do trabalho freudiano, e sua relação com o trabalho
desempenhado por Strachey, o psicanalista canadense Patrick Mahony (1999), em seu
artigo Uma tradução psicanalítica de Freud, observa o seguinte: como
atinência a seu estilo evocativo, Freud costumava ampliar a metalinguagem em linguagem
novamente e destituir a diferença entre ambas; os exemplos mais significativos dessa
prática não se restringem à determinada passagem, mas perpassam toda a obra. Um
exemplo interessante é a Traumdeutung, cuja progressão explanadora é apresentada
por Freud qual certa viagem ao longo de uma paisagem natural. Para Freud, segundo
Mahony, a paisagem frequentemente simboliza a mulher, de modo que podemos assistir
a seu trajeto por meio de A interpretação dos sonhos como um concomitante
exame minucioso do corpo feminino. “Uma pequena amostra dessa magnífica multiplicidade
de significado reside na associação do sonho com o umbigo...” (MAHONY, 1999), umbigo
que se refere ao irrepresentável, inefável ou ininterpretável que se apresenta em
cada sonho; furo, buraco não apreensível em seu conteúdo, mas causador de estranheza,
potencial ocasionador de atração e repulsa, fascinação e perplexidade, de possível
interesse – nunca correspondido, respondido –; inabarcável fonte de desejo, portanto?
As referências visuais, ao longo de toda a obra, configuram uma área profícua,
na qual o mestre vienense mistura linguagem e metalinguagem, e tais alusões, a seu
turno, imiscuem-se ao uso feito de imagens arqueológicas, sexuais e naturais, propiciando
certo significado múltiplo, intertextual. “Devemos nos lembrar de que Freud era
uma pessoa predominantemente visual – Augenmensch – (...), como se vê pelos
elementos pictóricos que impregnam seus escritos” (MAHONY, 1999). Assim, a leitura
de Mahony simplesmente nos mostra que “É compreensível que ele recordasse sempre
o conselho de Jean-Martin Charcot, outro conhecido por sua ênfase na visualização:
‘ver as mesmas coisas repetidamente, até que elas, por si sós, comecem a falar’”
(MAHONY, 1999). Por conseguinte, o analista canadense nos fala da possibilidade
de uma cegueira agravante que veio a acometer Strachey ter influenciado o desempenho
de seu trabalho de tradução, já que ele nem sempre reproduz as atinências visuais
do texto fonte. “Essa possível incapacidade se complica no caso da apresentação
que Freud faz do complexo de Édipo, ao longo da qual ele cita três vezes uma tradução
Édipo Rei para o alemão que é insistente em referências visuais” (MAHONY, 1999).
Strachey, então, em The interpretation of dreams, lutando pela manutenção
da elegância poética, recorre a certa tradução aceita do clássico para o inglês,
ao invés de traduzir ele próprio as passagens utilizadas por Freud. Em todo caso,
e independentemente de Édipo rei, aspecto essencial da terminologia visual de Freud
é sua recorrência ao teatro. Isso também pode ser distinguido no uso que faz de
“palavras significativas comuns”: Probe pode significar “julgamento”, “experimento”
ou “demonstração”, mas igualmente “ensaio”, Darstellung se refere a “descrição”,
mas também “à representação do ator”, Vorstellung, vocábulo inclusive bem
caro à filosofia alemã (e que constitui também questão lexical basilar no corpus
freudiano) especialmente no pensamento de Schopenhauer, que tanto influenciou a
visão de homem e de mundo na psicanálise, remete à “representação”; ou à “apresentação
teatral”. Torna-se plausível que Freud possa, por exemplo, fazer representações
dramáticas sobre a cena primária; de maneira que, ao descrever a construção de uma
das derradeiras partes da cena enquanto Schlussakt, último ato, faz-nos compreender
o processo mediante teor teatral.
No ensaio A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão,
endereçado principalmente a oftalmologistas austríacos, é um exemplo per se
dessa categorização visual. “Aqui, é-nos oferecida a inestimável experiência de
assistir à habilidade de Freud de integrar tema, destinatário e expressão expositiva,
tudo de forma vaga. Às vezes, essa indefinição desaparece na tradução de Strachey”
(MAHONY, 1999). Mahony (1999) oferece os seguintes exemplos de trechos: Ja, wenn
wir sehen, dass ein Organ.../und die anderen Untersuchungsweisen.../den Gesichtspunkt
der Sexualität ausser acht gelassen. Sendo que as traducões de Strachey
são: Indeed, if we find that an organ…/and other methods of research have left…/the
standpoint of sexuality out of account… Já Mahony propõe o seguinte: Indeed,
if we see that an organ/and other ways of research have not paid attention to/the
viewpoint of sexuality. Ou seja, a proposta envolve usar see, ao invés de
find, not paid attention to, ao invés de have left the standpoint
out of account, ou seja, verbos e expressões menos formais e que ofereçam maiores
possibilidades e aberturas semânticas. “Essa indefinição consiste na coerência com
o fluido estilo de investigação de Freud. Em outros pontos, por exemplo, ele às
vezes se presta a um uso indeterminado de Ich e Phantasie” (MAHONY, 1999). Assim,
a distinção que Strachey traz de Ich como ego, self e eu (I),
e a proposta de Susan Isaacs (apud MAHONY, 1999) de que o conceito de Phantasie
viesse a ser ortograficamente recolocado para diferençar manifestações conscientes
e inconscientes – respectivamente, em inglês, fantasy e phantasy –
prejudicam a flutuação livre, a fluidez mesma dos textos de Freud, “que falam sobre
a livre associação e, ao mesmo tempo, a realizam” (MAHONY, 1999).
Em todo caso, sobre a Traumdeutung, compete-nos perceber seu aspecto
imagético essencial, no qual o sonho é tratado, de forma técnica, a partir de suas
imagens. Pois cabe ao paciente associar a partir das imagens oníricas e, então,
com esse processo de associação livre destarte desencadeado pelas mesmas, fornecer
à sessão analítica, e à escuta do analista, o material para possível decifração,
sempre parcial, do(s) sonho(s). De modo que, no capítulo VII da grande obra, somos
levados a imaginar, ou, como colocado por Pedro Heliodoro Tavares (2014)
em sua tradução do tardio e panorâmico Compêndio de psicanálise, supor
(“supomos”: Wir nehmen) um aparelho psíquico.
Assim, no capítulo VII da obra máxima freudiana, encontra-se, por exemplo,
a expressão aparelho da mente, no que Strachey fala “structure of the apparatus
of the mind” (FREUD, 1980); no dicionário Oxford, vemos que em inglês apparatus
remete a uma disposição, ou conjunto (set) de ferramentas, instrumentos ou
equipamentos usados para desenvolver algum serviço, alguma atividade; em alemão,
o termo abarca em sua semântica os sensos de aparelho, máquina, dispositivo, instrumento.
Em alemão parece obter, portanto, certa semântica um pouco mais ampla que no inglês,
servindo também como um instrumento, um dispositivo específico e isolado, não necessariamente
trazendo a noção de conjunto instrumental. Em todo caso, em seu Vocabulário da
psicanálise, Laplanche e Pontalis (2001) destacam que a expressão freudiana
“psychischer ou seelischer Apparat” ressalta determinadas características que a
teoria psicanalítica atribui ao psiquismo, sua capacidade de transmitir e transmudar
a energia psíquica e promover sua diferenciação em sistemas ou instâncias. Aliás,
em Die Traumdeutung, Freud define o aparelho psíquico fazendo analogia do
mesmo com aparelhos óticos, divididos em partes e camadas funcionais específicas.
De modo que:
Ao falar de aparelho psíquico, Freud
sugere a ideia de certa organização, de uma disposição interna, mas faz mais do
que ligar diferentes funções a “lugares psíquicos” específicos; atribui a estes
uma dada ordem que acarreta uma
sucessão temporal determinada. A coexistência dos diferentes sistemas que compõem
o aparelho psíquico não deve ser tomada no sentido anatômico que lhe seria atribuído
por uma teoria das localizações cerebrais. Implica apenas que as excitações devem
seguir uma ordem que fixa o lugar dos diversos sistemas (LAPLANCHE & PONTALIS, 2001).
E podemos ainda perceber o respeito dos autores ao teor propriamente da alma,
psíquico, do conceito, afastando-nos da noção de mente ou mental. O aparelho psíquico
traz, para Freud, certo teor de modelo, ou de ficção ilustrativa. Trata-se de metáfora
riquíssima que põe em jogo as articulações e movimentos metafísicos, no sentido
de imaginados e delineados, não de substância primordial absoluta – como se estabelece
no âmbito filosófico –, da bruxa metapsicologia.
Voltando-nos a Bettleheim (1982), vemos a observação de que no inglês americano
o uso da palavra soul (alma) se restringiu à ambiência religiosa. Esse não
era o caso da Seele no alemão da Viena de Freud, e não abrange as regiões
do mundo falantes de alemão atualmente. Neste idioma, a palavra Seele reteve
sua mais ampla significação, resvalando no sentido de essência do homem, até mesmo
no que nele pode ter de mais valoroso ou peculiar, próprio; ou referindo-se mesmo
a seu teor espirituoso. Segundo o analista vienense, tal vocábulo deveria na tradução
inglesa da Standard nesse sentido ter sido transmudado. Aliás, Freud utiliza
Seele e seelisch ao invés de geistig (espiritual), por esta
palavra se referir em especial aos aspectos racionais da mente – dos quais obtemos
consciência. A ideia de alma, em contraste, definitivamente abarca muito do que
não estamos cientes. Freud almejou tornar relevante que a psicanálise estava concernida
não somente com o corpo e o intelecto pelo mesmo envolvido, como a maioria de seus
colegas médicos, mas, e acima de tudo, com o obscuro âmbito do inconsciente que
configura parte infinita das incidências emocionais e de linguagem no ser humano.
Ainda, falando em termos clássicos, com o desconhecido submundo no qual, de acordo
com a mitologia antiga, as almas incorrem.
Em todo caso, em nenhum ponto específico de seus escritos, Freud fornece
uma definição em especial precisa da noção de alma. Bettleheim suspeita que a escolha
mesma do termo advem de seu caráter inextricável, de sua ressonância afetiva. Sua
ambiguidade fala pela própria ambiguidade invencível da psique. Tentar um aporte
clínico de tal termo (definição que, aliás, e ao que tudo indica, Strachey e demais
tradutores do criador da psicanálise sem dúvida receberiam muito bem) o teria extirpado
de seu valor qual meio de expressão do pensamento freudiano. Deve-se ter em conta,
por conseguinte, que quando Freud fala da alma, ele produz uma condensação; certa
metáfora. Trata-se de algo intangível em seu todo, que exerce poderosa influência
em nossas vidas. Refere-se àquilo que nos faz humanos. Para Bettleheim, nenhum outro
termo poderia igualmente contemplar a proposta subversiva trazida pela psicanálise.
Seguindo no trabalho de Strachey, deparamo-nos com o seguinte trecho, ligado
às rebatidas de Freud às críticas de Morton Prince:
His readers are thus reminded that
in the course of all his descriptions of these dissociated states he has never attempted
to discover a dynamic explanation of such phenomena. If he had, he would inevitably
have found that repression (or, more precisely, the resistance created by it) is
the cause both of the dissociations and of the amnesia attaching to their psychical
content (FREUD, 1980).
Neste ponto do capítulo VII, percebe-se a conexão da noção de recalque (aqui
como repression) com o conceito de resistência. Em consulta ao trabalho de
Laplanche e Pontalis, somos lembrados de que a teoria do recalque (no idioma fonte,
Verdrängung), esse conceito que formula pedra angular no edifício psicanalítico,
impôs-se vinculada a fatos clínicos desde os primeiros tratamentos de pacientes
histéricos, nos quais Freud pode constatar que as lembranças ligadas à etiologia
patológica não estavam disponíveis para os pacientes, mas trazem, quando recuperadas,
ou redescobertas, grande tonalidade afetiva. A noção de recalque, aqui evocada,
surge desde o início enquanto correlativa a inconsciente. “O termo ‘recalcado’ será
durante muito tempo, para Freud, até a definição da ideia de defesas inconscientes
do ego, sinônimo de inconsciente”. Assim, os conteúdos recalcados se furtam “ao
domínio do sujeito e, como ‘grupo psíquico separado’, são regidos por leis próprias
(processo primário)”. De maneira que uma representação recalcada constitui em si
um âmbito de cristalização passível de atrair demais representações insuportáveis
(e, por isso, transmigradas para o inconsciente; inclusive devido à angústia insuportável
que sua tomada de consciência pode produzir na psique) sem que haja intervenção
de propósito consciente. Nessas vias, a operação de recalque apresenta o caráter
do processo primário, especificando-se enquanto defesa patológica, e configurando-se
como processo dinâmico, ao implicar a utilização de um contra-investimento e, apesar
disso, mantendo-se suscetível a ser posta em incidência pela pressão (drang)
do desejo inconsciente que busca retornar à consciência, e satisfazer-se mediante
as atividades do aparelho motor e da estimulação das zonas erógenas. Mas o quê é
abarcado pelo recalque? Não exatamente o Trieb, pois, na medida em que se
calca no orgânico, equivoca-se quanto à alternativa consciente-inconsciente; nem
em exato o afeto. Este, apesar de modificado pelo recalque, não chega a se tornar
em estrito inconsciente. Trata-se, então, dos “representantes-representação” (Vorstelung)
do Trieb. Estes elementos representativos estão acoplados ao recalque primário,
“quer provenham dele, quer entrem com ele em conexão fortuita. O recalque reserva
a cada um deles um destino distinto ‘inteiramente individual’, segundo o seu grau
de deformação, o seu afastamento do núcleo inconsciente ou seu valor afetivo” (LAPLANCHE
& PONTALIS, 2001). Em consequência das devidas definições, apesar do recalque
representar uma espécie de protótipo das ações defensivas, não é apropriado argumentar,
em consonância com a Standard Edition, que o recalque equivale à noção de
defesa; constitui momento da operação defensiva, no sentido preciso de recalque
no inconsciente. E, enquanto conceito, pode ser entendido em seu triplo registro
metapsicológico; daí: dos pontos de vista tópico, econômico e dinâmico. Ou seja:
Verdrängung, no vocabulário freudiano, é termo bem distinto de Repression
que, no alemão, costuma mais relacionar-se à repressão policial, contenção social,
limitação incidida de forma deliberada ou prevista conforme o contexto sócio-político
ou cultural do caso. Assim, seu cognato em inglês, repression, “ato de contenção”,
“supressão”, ou de “controle” ou “subjugação deliberada ou percebida de algum sentimento”,
não se aproxima de fato ao processo inconsciente de recalque, conforme sistematizado
por Freud. É importante, também, vermos que, no trecho de The interpretation
of dreams acima destacado, Strachey faz uso de psychical, e não de mental
– o que chama a atenção para o fato de ele por vezes manter uma lealdade mais considerável
à letra freudiana. Pois, até mesmo mais à frente no mesmo capítulo, deparamo-nos
com a não usual utilização da expressão psychical apparatus, ao invés de
mental apparatus. No entanto, ainda mais adiante aparece:
Dreams and neuroses seem to have preserved
more mental antiquities than we could have imagined possible; so that psycho-analysis
may claim a high place among the sciences which are concerned with the reconstruction
of the earliest and most obscure periods of the beginnings of the human race (FREUD, 1980).
Neste trecho, encontramos mental antiquities junto à grafia psycho-analysis,
que traz a devida ênfase na questão da psique. Tratar-se-ia da demonstração de certa
ambivalência quanto à opção pelo uso de mental no senso do psíquico?
Assim, se pensamos na etimologia da palavra estilo, vinculada ao latim stylus,
vara aguçada para escrever em argila, que passou a metaforizar maneira de escrever
ou maneira de fazer, podemos ver que James Strachey, com seu estilo, faz furo na
argila freudiana; em alguns momentos, submetendo-se à discursividade médico-científica
e positivista, tentando preencher os supostos furos epistemológicos em Freud, acaba
por produzir outros, numa busca de integridade técnica, ou no declínio imagético
do texto devido a seu progressivo problema visual, tornando-se, destarte, uma espécie
de Tirésias às avessas, preso à tradição médica, sem se entregar a alguma visão
mais ampla, profunda, que flerte mais com o intangível. Mas o(s) furo(s) produz(em):
a segurança, a fluidez, a riqueza vocabular, o bom uso das célebres Notas do editor
inglês que pode ser feito pelo profissional sempre de modo interessante e profícuo
– trata-se da mão de um grande escritor, erudito e humilde artífice – que transforma
a obra de sua vida na portentosa tradução do labor do mestre vienense, legando-nos
uma das mais belas prosas técnico-teóricas já produzidas na língua inglesa, em tom
firme e acurado sob apuro visível a cada passo, mesmo com os problemas terminológicos
ou o prejuízo imagético. Em todo caso, podemos estar seguros de, em inglês, fazer
um dos caminhos intelectuais mais intensos do século XX, e conhecer um dos maiores
autores desse riquíssimo idioma de Shakespeare.
Referências
BETTELHEIM, B. Freud and man’s soul. Nova York: Oxford University
Press, 1982.
FREUD, S. JUNG, C. G. The Freud/Jung letters. Princeton: Princeton
University Press, 1979.
FREUD, S. The interpretation of dreams. Em: The pelican Freud library.
Tradução: James
Strachey. Harmondsworth: Penguin Books, 1980.
FREUD, S. Compêndio de psicanálise. São Paulo: Autêntica, 2014.
G. O. GABBARD. Presentation of Strachey’s article. Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3330522/pdf/66.pdf. Colhido em: 10/05/2015.
LAPLANCHE, J., PONTALIS, J.-B. PONTALIS. Vocabulário da psicanálise. Tradução:
Pedro Tamen. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
LO BIANCO, A. C. Freud: entre o movimento romântico e o pensamento científico
do século XIX. Psychê, vol. VI, núm. 10, 2002.
MAHONY, P. Uma tradução psicanalítica de Freud. Em: Traduzindo Freud.
Org.: Darius Gray Ornston. Tradução: Cristina Serra. Rio de Janeiro: Imago,
1999.
ORR D. W. Psychoanalysis and the Bloomsbury Group. Clemson: Clemson University Digital
Press, 2004.
PEREIRA, M. E. C. A nada santa alma freudiana. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2013/01/a-nada-santa-alma-freudiana/. Colhido em 10/05/2015.
SANTIAGO, J., LINO, C. E. de S. Saber e verdade no sonho da injeção de Irma.
Psicologia em
Revista, Belo Horizonte,
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STRACHEY, J. The Nature
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EDSON MANZAN CORSI (Brasil).
Escritor, tradutor e psicanalista. É autor do livro de contos Inferno e Memória, dos seguintes livros de
poemas: Sombras do Momento, Duas Metáforas e um Sol, e Estranho Livro Noturno. Exerce a clínica
psicanalítica em consultório particular e mantém grupos de estudo sobre diferentes
tópicos. Encontra-se vinculado à formação em psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae,
de São Paulo. Página ilustrada con obras de los niños mágicos del Arte Amigo
(Costa Rica), artistas invitados de esta edición de ARC.
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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 23 | Janeiro
de 2017
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