terça-feira, 4 de julho de 2017

JORGE ANTHONIO E SILVA | A poética na esquizofrenia


Eu preciso destas palavras. Escrita.
Arthur Bispo do Rosário

A psicose é um quadro de desordem mental, historicamente descrito como loucura. Modernamente, coube à Psiquiatria a ampliação da terapêutica medicamentosa de seu tratamento que se expande com a avidez criativa da indústria química. Uma de suas especificidades é esquizofrenia. A palavra é a junção dos termos gregos ‘schizo’ para significar cisão e ‘phrenos’ definindo espírito, sendo este último entendido, pela Filosofia, como razão e capacidade humana de entendimento.  Ampliando o conceito de demência precoce de Emil Kraepelin (1856/1926), o psiquiatra suíço Eugen Bleuler (1857/1939) foi o primeiro a utilizar esse termo em 1911, para designar pacientes com desligmento dos processos formais de pensamento e embotamento afetivo. Caracteriza-se pela fragmentação das formas de pensamento e da incapacidade de se estabelecer distinção entre vivências internas e externas. De sintomatologia variada como alucinações, labilidade afetiva e delírios, esquizofrenia é um impeditivo para que o sujeito estabeleça laços sociais e afetivos. Dissociação, demência, discordância e produção fantasmática, deterioração intelectual a identificam, mais o sintoma acessório do isolamento. Sigmund Freud (1856/1939) cunhou o termo “parafrenia”, entendendo-o mais próximo da matriz “paranoia.” Sua etiologia é incerta, embora seja consenso que seu desencadeamento ocorre por razões internas e ambientais um deles comum na atualidade: as substâncias psicoativas. Seu tratamento passou por mudanças significativas a partir do Século XVIII e, com o advento da Psicanálise expandiu-se em novos quadros terapêuticos com a potencialização do processo comunicacional pautado na linguagem posta no binômio fala/escuta. A partir de 1900, com a publicação de A Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud (1856/1939), revelou-se o inconsciente e instituiu-se o homem como ser de subjetividade eclética, identificatória e plural. Emergiu o homem em sua estrutura mental trádica e a humanidade inaugurou um novo paradigma para o entendimento do sujeito. A complexidade dessa afecção, a psicose, fez com que se desenvolvesse um conjunto de saberes que se conjugam no tratamento, sabendo-se não se tratar de uma manifestação comportamental monolítica. Expressa-se em uma diversidade de sintomas com reflexos comportamentais em um conjunto de distúrbios que se entrelaçam como o delírio de ciúmes, a megalomania, o isolamento, o fervor messiânico, quebras de sentido na fala, a exaltação persecutória e a erotomania.  O diagnóstico psiquiátrico fixa a patologia e, não raro esquece essas sutiliezas e fronteiras que demandam atenção vária uma vez que na esquizofrenia, a forma mais aguda de psicose, não há um agente patognomônico. Seus fenômenos são variados e mutantes.
Aparentemente incompatíveis, esquizofrenia e estética guardam estreita relação no que diz respeito a criatividade, segundo o crítico de artes, psiquiatra e antropólogo austriaco Leo Navratil (1921/2006). Entende o autor de Schizophrénie et Art, ainda, que o pensamento criativo é um pensamento metafórico:

Podemos dizer que o pensamento criativo é um pensamento metafórico. É por isso que considero a capacidade de se estabelecer uma relação entre as imagens distantes umas das outras, de as contaminar e de as confundir, a capacidade de inventar símbolos, como uma função fundamental da criatividade. (tradução do autor)

Pacientes psiquiátricos com afecções mentais graves que lhes limitam a fala, como os catatônicos, podem se expressar-se em outras linguagens e nelas estarão presentes dados relevantes para a condução terapêutica, em especial para o psicanalista, cujo acervo clínico constitui-se na pluralidade das linguagens. Falas, gestos, expressões faciais, tudo se agrega para a decodificação sutil do sujeito. E o desenho, a pintura, a escultura mais todas as expressões da arte bi ou tridimensional são formas expressivas de grande importância no processo analítico. A extirpação da orelha por Vincent Van Gogh (1853/1890) é um dado visceral para o entendimento de sua passagem ao ato. Assim como Estamira (1941/2011), personagem do filme brasileiro homônimo que fez do lixo seu objeto de sentido para suportar o insuportável. O profeta Gentileza com suas escritas pela cidade do Rio de Janeiro e Arthur Bispo do Rosário (19091/1989) com sua tentativa de tecer seu próprio mundo a partir do surto. Contudo, o que Jean Dubuffet (1981/1985) cunhou como art brüt não é um encadeamento dedutivo da loucura. Para que essas produções sejam qualificadas como faturas criativas da arte é preciso que sejam realizadas por pacientes capazes de originalidade na construção de metáforas ou simbologias inéditas, rejeitados pelo status quo.
Arthur Bispo do Rosário (1909/1989) é um caso emblemático na junção de criatividade e esquizofrenia paranoide. Apesar do reconhecimento internacional da crítica e das academias, ainda que com exposições nos espaços mais reconhecidos da arte no Brasil e no exterior, Bispo ainda é visto por boa parcela de pessoas como um exotismo particular, uma extravagância pós-moderna, uma aberração plástica. A justificativa teórica que confere estatuto de arte aos seus feitos paradoxais está n’A Obra Aberta, de Umberto Eco (1932/2016);

Obra Aberta como proposta de possibilidades interpretativas, como configuração de estímulos dotados de uma substancial indeterminação, de maneira a induzir o fruidor a uma série de “leituras” sempre variáveis; estrutura, enfim, como “constelação” de elementos que se prestam a diversas relações recíprocas. É nesse sentido que o informal na pintura se liga às estruturas musicais abertas da música pós weberiana, bem como àquela poesia “novíssima que já aceitou, por admissão de seus representantes, a definição de informal. (1971:150)

Inicialmente a obra de Bispo toma o fruidor por um sentimento de terror, um incômodo inexplicável, dúvida sobre o que é arte e, rejeição. A brutalidade de suas montagens, arquitetadas com materiais encontrados ao acaso, muitas vezes lixo, vão tomando de compaixão o olhar incrédulo na medida em que se reconhece o esforço e a capacidade inventiva do autor. Ao deparar-se com os lençóis bordados e com os estandartes, essa feição torna-se afeto. A obra é autônoma, significa por si, mas sua interpretação depende da história manicomial do artista. Seu itinerário de vida e artístico plasmam-se na obra com o molde da esquizofrenia ditando uma esteticidade pungente em estímulos perceptuais para o fruidor.  Bispo foi um desses pacientes em luta constante para retomar a posse do consciente afogado pelo inconsciente em jorros. E conseguiu fazê-lo signicamente ao codificar na expressão plástica traços de interioridade dilacerantes,  incomuns no padrão. Pelo exercício da arte tridimensional construiu metáforas que o tempo vai se incumbindo de estudar e dar-lhes fundamentos artísticos e psicanalíticos. Viveu 51 anos intermitentes interno na Colônia Juliano Moreira em Jacarepaguá onde, naturalmente, fomentou a idéia de que era um ser articulado com Deus e com a Virgem Maria. Advogava para si poderes divinos, como consta em seu prontuário:

Apesar de poder nos ajudar muito em serviços internos e supervisionar doentes, ajudar na alimentação, etc., este paciente está apenas em contato muito superficial com a realidade. Ele tem diversos delírios místicos e de grandeza, se crê um enviado de Deus, e pessoa “muito especial”. Perguntou se eu conseguia ver, através dele, as suas especialidades. Se crê o “médico dos médicos”, etc. Ele se nega a responder perguntas, baseado em seus privilégios especiais. As perguntas que ele responde, são com respostas delirantes, tangenciais, e irrelevantes. Diz que trabalha quando dá vontade. Por outro lado, ele é capaz de chefiar a equipe de trabalhadores e sente o problema pungente de falta de cigarro para recompensar os seus ajudantes. [i]

O diagnóstico psiquiátrico reza : Esquizofrenia paranoide, paranoide (código 295.3 da Organização Mundial de Saúde). Essa foi a forma de se fixar a patologia. Na esquizofrenia há uma desorganização do eu em relação ao mundo. Nela, a demarcação entre o eu e os objetos se desfaz. Desordena-se a linguagem e o pensamento se desconecta. Bispo manufaturou um universo significante nas onze salas que ocupou com seus tridimensionais no esforço para reorganizar-se usando uma fala mnemônica. Sua poiesis é a mesma pela qual passa o psicótico, em delírio criativo na forma de “passagem ao ato”. Em alucinação Bispo foi orientado por vozes a reconstruir o mundo ao redor, perdido para a desgraça da imoralidade. Seu feito estético é uma obra em progresso, uma construção delirante bem sucedida. É de se lembrar o Caso Schreber que se disse “a mulher de Deus.”, em claro esforço para a instituição de bordas para os excessos do inconsciente sobre a razão. A análise psíquica relata Bispo como doente parcialmente orientado em todas as esferas:

Uma pessoa com um dom artístico muito aguçado e que, segundo ele, está guardando e construindo os instrumentos do homem para uma nova era. Sua avaliação médica apresenta um exame físico com estado de nutrição ausência de lesões traumáticas, pressão arterial de 140/80 mm Hg., pulso de 80 b/min., freqüência cardíaca 80. Não apresenta deficiência física nem doença orgânica. Como tratamentos realizados, registram-se entre os medicamentos os psicotrópicos e médico-clínicos, nenhum tratamento biológico (ECT ou insulina), nenhum tratamento psicoterápico, nenhum tratamento praxiterápico, observando-se, porém, que o paciente já tem atividade praxiterápica.

Na anamnese é inserido um registro de nome “Súmula Psicológica”, no qual constam dados que confirmam observações anteriores, como “capacidade volitiva deficiente, nexos afetivos presentes, presença de alucinação, ausência de agressividade em relação a si e a outros e ausência de estado de desorientação”.

A esquizofrenia é o quadro mais agudo de psicose e esta pode ser entendida em cinco formas delirantes: psicose de ciúmes, erotomania, megalomania, delírios místicos e delírios de perseguição. Em Bispo manifestaram-se as articulações delirantes da grandeza e o delírio místico, evidentemente presentes na obra que, para ele não era arte mas, uma tarefa a ser cumprida por ordem das vozes. Estas são comuns na esquizofrenia e representam a presença de um olhar atento ao paciente. Sua vontade de grandeza configurou-se na tarefa de produzir um manto ricamente bordado que vestiria um dia para se apresentar a Deus, de quem era enviado.
O delírio é uma forma de se estabelecer certezas. Bispo se tinha como o juiz dos humanos porque tocado pela certeza hierofânica de que era um ser enviado especial. A supervalorização mórbida de si com predileção pelo majestoso o fez desenvolver uma pungente obra paradoxal. Nela há recorrências temáticas e segmentos que se diferenciam enquanto procedimento. Embora o contato com a obra revelasse de imediato o caos, o quadro classificatório abaixo (feito pelo autor deste artigo) mostra a repetência e as intersecções de procedimentos como um anagrama que se explica in totum.
Quando, nos anos oitenta, houve um movimento de humanização nos espaços de reclusão Bispo, que vivia no Pavilhão Ulisses Caldas, separado dos outros pacientes, recusou-se a se socializar. Sua vontade de afastamento do convívio justifica seu diagnóstico inicial. Ocupava uma das onze salas de dois por dois metros onde foi lotado, por ser um paciente rebelde na juventude. De repente viu-se só. Aos poucos foi ocupando as salas vazias e nelas montou uma trama significante feita de objetos que já haviam cumprido sua finalidade no mundo das utilidades.
Suas bases materiais eram-lhe trazidas por outros pacientes que nele reconheciam alguém especial. A obra foi uma forma delirante de organização psíquica que lhe permitiu posicionar-se frente à realidade que lhe escapava e que se confundia com suas vivências interiores. O paciente engendrou signos que lhe reorganizavam lembranças e reconstituía seu passado em narrativa particularíssima. Em placas de rua esculpidas em madeira revestida de fios de lâ fixou a toponímia onde viveu a juventude, quando chegou ao Rio de Janeiro vindo de Japaratuba (AL). Queria uma taxonomia do universo onde pudesse se posicionar espaçotemporalmente. O que lhe faltou no inconsciente a “céu aberto” (as categorias de tempo e espaço), foram sendo signicamente reorganizados, marcados em ordenação constante de um cosmos particular e íntimo a quem poucos tinham acesso, a menos que entrassem no seu delírio. Para se chegar ao seu feito o visitante tinha que responder a pergunta: “Qual a cor do meu semblante?” Qualquer cor como resposta significava o reconhecimento de uma qualidade pessoal que ele se atribuía. Bispo, é o ser da expressão pura, por isso, um artista. Seu primitivismo é original, embora não inédito. Contrariando toda a praxis artística realizada fora dos muros da instituição desenvolveu uma metodologia criativa própria. A linha demarcatória estabelece o ‘Ser das Vozes’, instituindo o delírio como a matriz para a construção da obra. Dentro, quatro seres se dividem na forma expressiva: o ‘ser da figura real’; o da ‘figura inter-ferida’, o da ‘escrita’ e o da ‘paixão’. Esta não é apenas uma forma enfática e delirante de ciúmes que desenvolveu por uma estudante de psicologia, que primeiro o estudou: Rosângela Maria Magalhães. É o fervor mórbido passional pautado no delírio de ciúmes. Enquanto o demiurgo platônico dá forma à matéria desorganizada do universo, Bispo se anima em uma organização interna, a partir da categorização do mundo externo. Quer eliminar a fenda psíquica lutando para entender-se como sujeito único diante da alteridade.
Registra o espaço intramuros em detalhes, recompõe obsessivamente o passado, instaura no presente um soma cósmico que se expande pelo motor de sua vontade. É o rei de um labirinto intransponível. Delírio e obra entretecem a alteridade interna representada pelo inconsciente indômito a lhe ordenar ações sobre o mundo que o faz inerte quando submetido à eletroconvulsoterapia, neurolépticos e insulinoterapia. Produzir somas feitas de lembranças aplaca a angústia da esquizofrenia paranoide, regula a labilidade e reconcilia o paciente com o mundo objetal que o inconsciente lhe extirpou.
A arte é uma via estabilizadora nas psicoses ao demandar o pensamento criativo, traço de personalidade que se realiza no picoticismo. Segundo Hans J. Eysenck, “O ímpeto de transformar o traço da criatividade em realizações concretas por meio, por exemplo, da atividade artística deriva de aspectos do temperamento psicótico, sobretudo no estilo de pensamento abrangente demais.” (2012:321)
Leo Navratil entende que a psicose esquizofrênica não é apenas um desarranjo do psiquismo, mas uma explosão de criatividade própria da humanidade inteira. Defende que nas obras assim resultantes encontram-se as mesmas funções criativas que pautam o processo criativo na cultura humana. Para ele a ordem criativa está enraizada no psiquismo que se expressa artisticamente em de circunstâncias exteriores particulares, em par com a excitação do sistema nervoso central. Define a criatividade humana em três funções: Função Fisionomista, Função Formalista e Função Simbolista. Expressivamente, uma ou outra dessas funções predominam. São verificadas na arte moderna por razões históricas, sociais e pela própria evolução das artes. O figurativismo, o mimetismo, o naturalismo, o verismo, ou melhor, a mimese grega, após a Renascença iniciou um longo caminho em direção à abstração concretizada com as Vanguardas Estéticas no Século XX. O progresso tecnológico forjado pela Revolução Industrial, a emergência do Anarquismo com Mihail Bakunin (1814/1916) cujo conceito de liberdade é a "a revolta do indivíduo contra todo tipo de autoridade, divina, coletiva ou individual" influenciou a produção artística em sua conjuntura pensamental e prática estética. Negar o estilo, esconjurar as predeterminações estilísticas, rebelar-se contra o classicismo cuja rigidez impunha a mimese como noção central da estética. Tudo convergiu para que o inconsciente revelado se fundasse em novas expressões. O inconsciente coletivo já vinha expresso em Pietr Brueghel (525/1569) Yeronimus Bosch (1450/1516) cuja obra Jardim das Delícias revela a potencial expressão da subjetividade do Século XVI na forma de composições formais de animais inexistentes dentro de uma flora e fauna surreal. A noção maniqueísta contrapondo o pecado à virtude é um aspecto de desvario messiânico ali revelado plasticamente.
As qualidades estéticas do desatino estão ali, cumprindo toda a estilística do Século XV na representação emblemática da loucura. Mitos, crenças, bestiário, repressão religiosa e salvação presentificam-se com clareza. Posteriormente, com o Surrealismo, Salvador Dali (1904/1989), René Magritte (1898/1967) nas visuais e Luis Buñuel (1900/1983) no cinema (Un Chien Andaluz) retomaram as questões do inconsciente na expressão plástica. A Persistência da Memória revela tempo e espaço inexistente, como inexistente são essas categorias da lógica no inconsciente.
Leo Navratil interessou-se por uma forma expressiva, pura e espontaneamente criada na forma de pinturas, esculturas, textos e colagens. Sua obra Schizophrénie et Art tornou-se um paradigma teórico para os que se dedicam ao estudo da expressão estética na esquizofrenia. Popularmente conhecida como primitiva, arte marginal, outsider art ou arte psicopatológica, não está univocamente definida por algum tipo específico de desordem mental. Jean Dubuffet cunhou o termo art brüt, que parece ter sido adotado como consenso. São expressões plásticas individuais e genuínas, produzidas por pessoas de alto poder criativo independentemente de seus fenômenos patológicos. Sua longa e cuidadosa pesquisa com pacientes de diferentes instituições psiquiátricas austríacas levou-o a definir funções relacionadas à esteticidade psicopatológica que identificou, na forma de categorias:
A primeira função criativa humana dá-se quando o bebê ainda não se distingue da mãe, quando o mesmo não faz diferenciação entre si e o mundo objetal. Trata-se de uma percepção difusa, vaga, inarticulada e descontínua da realidade. É quando primeira infância à mãe os cabem os cuidados, a organização da vida, o ensino da linguagem, e a educação.  As impressões puras da percepção tomam as formas mais difusas que caracterizarão a percepção adulta. Não há ainda uma fisionomia stricto sensu, mas uma atividade perceptiva em formação. A obra e Impression soleil Levant, de Claude Monet (1840/1926) é um indicativo dessa função em que as formas apenas se sugerem: um amanhecer dourado esparzindo luminosidade dourada sobre a água onde um barco difuso descansa na parte esquerda, sobre a água que não se diferencia do céu. Apenas a luz solar indicia o tempo/espaço, corroborados pelo título da obra. Trata-se de feito de grande expressividade que convoca a o receptor a construir imaginativa e anonimamente a realidade daquilo que se mostra irreal. Cada qual à sua maneira.
Para Navratil, “É o momento em que o mundo se ressente como qualquer coisa viva, de forma intensiva e diferenciada, no momento em que as coisas recebem um “vrosto” é que se exerce a funçao criativa fundamental.” (tradução do autor). Essa forma é produzida, em geral, sob o efeito de estados psicóticos. A desproporção nas volumetrias, a falta de lógica nas relações entre objetos, suas sobreposições chapadas, as deformações e a ausência gravitacional caracterizam essa função criativa primeira. Bispo não se dedicou ao desenho ou à pintura, uma vez que a maior parte de sua obra é feita de assemblages. Seu figurativismo está nos bordados onde essa função se presentifica numa miríade de formas aleatoriamente relacionadas e narrativas com sistemáticas quebras de sentido.
Bispo opera nesta categoria, especialmente nas narrativas em bordado sobre lençóis, onde cria uma miríade de formas misturadas ao grafismo da escrita em blocos temáticos que não dialogam, tal a sobreposição paratática. Não há subordinação narrativa, mas uma disposição de elementos por similaridade. Não há uma relação hipotática na obra.
Identifica-se pela repetição rítmica do movimento que, segundo Navratil opõe-se às pulsões e emoções. Diz que “C’est dans la répétition rytmique qu’on retrouve le mécanisme le plus primitif de résistance des pulsions e d’adaptation. (1978:57). Heinrich Klüver (1897/1979), homenageado com a nomeação da síndrome de Klüver-Bucy, sustenta que as alucinações visuais sob o efeito da mescalina, constantemente apresentam-se na forma de geometrismo. Essas formas oscilam e se repetem, como se repete o comportamento psicótico em todos os seus domínios. A tendência à organização comparece no ritmo com vontade de se estabelecer uma regra que, figurativamente, se impõe pela repetição minimalista de formas.
Freud tratou da “compulsão à repetição” em Para Além do Princípio do Prazer, com exposição de uma dinâmica psíquica em Recordar, Repetir, Elaborar.
Há nesta função uma fusão de imagens de grande força emocional. Ocorre pela contaminação de dois ou mais signos à maneira do que Freud chamou de “condensação”, teorizada em A Interpretação dos Sonhos. Cadeias associativas plasmam-se no inconsciente como formas significativas latentes e se impregnam na forma expressiva adotada pelo paciente. É uma característica do pensamento inconsciente na forma de metáfora na linguagem. Navratil entende que a vida psiquica dos homens repousa sobre o pensamento simbolista e metafórico criando formas e reordfenando o caos das pulsões. Alega, ainda, que pela simbolização o homem atinge seu mais alto nível intelectivo. Na formação primal define os níveis mítico e mágico, a partir dos quais inicia-se a formação do eu. Ao atingir o estágio da simbolização o homem tornou-se capaz da linguagem e, com ela, tornou-se um ser sígnico e plural na recepção fenomênica do mundo. Em Bispo essa função está muito clara no Leito de Romeu e Julieta.
Quando Rosângela Maria Magalhães estava prestes a finalizar seu trabalho de formação em Psicologia, Bispo que a tinha recebido e por quem desenvolveu excessivo ciúme apresenta a ela O Leito de Romeu e Julieta. Convida-a a vestir uma camisola creme que havia conseguido não se sabe como. Ela recusa a proposta e ele agrega que ela deveria vestir porque iam representar o drama de Romeu e Julieta. Vendo que sua proposta não teria sucesso, Bispo se refaz e diz sorridente: “É apenas teatro”. Lendo-se o objeto ricamente enfeitado com fios coloridos, um dossel branco transparente em par com o propósito de se realizar um feito dramatúrgico, constata-se a Função Simbolista. Há uma junção de finalidades. Bispo produziu, na realidade, uma metáfora de sua vida com Rosângela e foi além. Impregnou sua ação com um feito literário universalmente conhecido como a tragédia de um amor não realizado. Exatamente como em sua relação com a estudante. Ele mesmo, ciumento, havia caído em simpatia pela estudante e simbolizou seu afeto como metáfora da metáfora, adotando William Shakespeare (1564/1616) para convencê-la. A separação foi inevitável. Isso marcou o início da morte de Bispo. Deixou de se alimentar. Só queria trabalhar em sua tarefa de reconstruir o mundo. Rosânagela se foi. Com os dias, o rosto do artista transformou-se esquálida expressão da loucura. Os períodos de abstinência haviam-no tornado uma face ressecada, sustentada por um pescoço frágil, afinado e lento. A carapinha mantinha ainda um resquício de negro brilhante, ressaltado por chumaços brancos. A boca conservava uns poucos dentes atrás de lábios finos e de desenho impreciso. As mãos eram grossas, resultado dos mais de 70 anos de história escrita pelo trabalho artesanal, pela reclusão e pela vontade de superação. A voz mansa tinha quebras sintomáticas de sentido. Tudo eram “coisas do céu”. Os olhos conservavam a expressão de distanciamento, e a fala era plena de certezas, certezas de que o homem havia cumprido a função para a qual teria vindo à terra: reconstruir, remontar, refazer em nome da Salvação. Arthur Bispo do Rosário morreu em 05/07/1989. Foi enterrado como indigente.


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JORGE ANTHONIO E SILVA (Brasil). Mestre e Doutor em artes pela PUC-SP. Membro da APCA - Associação Paulista de Críticos de Artes. Autor de Arte e Loucura, Arthur Bispo do Rosário; Wega Nery (Pantemporâneo), Jornalismo Cultural: Apontamentos, Resenhas e Críticas em Artes Plásticas. Página ilustrada com obras de Tita do Rêgo Silva (Brasil), artista convidada desta edição.

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● ÍNDICE # 99

EDITORIAL | A pronúncia esquecida da realidade

ALICIA LLARENA | Agustín Espinosa: Lancelot 28º - 7º

CARLOS OLIVA MENDOZA | Erotismo, pornografía y felicidad

ESTER FRIDMAN | Quer a humanidade ser livre?

FLORIANO MARTINS | Valdir Rocha e o mito transfigurado

GABRIEL JIMÉNEZ EMÁN | Leonora Carrington y surrealismo novelado, por Elena Poniatowska

JORGE ANTHONIO E SILVA | A poética na esquizofrenia

MARIA LÚCIA DAL FARRA | Gilka Machado, a maldita

PEGGY VON MAYER | Volver la mirada a Ninfa Santos

RIMA DE VALLBONA | Indicios matriarcales en las comunidades chorotegas

SOFÍA RODRÍGUEZ FERNÁNDEZ | Homenaje a Max Rojas

VIVIANE DE SANTANA PAULO | Tita do Rêgo Silva e o mundo fantástico, faceiro e colorido da xilogravura

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Agulha Revista de Cultura
Número 99 | Junho de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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