quarta-feira, 4 de abril de 2018

MARIA ESTELA GUEDES | Herberto Helder entre o Deus e o Diabo



Na Holanda é assim. O Demónio está no meio das vacas.

Herberto Helder, “Holanda”, Os passos em volta

não nos separe o Diabo dessa coluna de salvação
 que é a parte divina no outro

José Augusto Mourão, Onde rasgar janelas


O elemento religioso na obra herbertiana
Desde os seus mais remotos textos, Herberto Helder toma Deus como assunto ou personagem. Assim acontece nos poemas “Salmo em que se fala das alegrias secretas do coração”, e “Ode fúnebre”, publicados em 1952. De modo geral, quer como Outro, quer como Eu, quer através dos atributos, fábulas, rituais e figuras do contexto católico ou diferente, Deus vem acompanhando o poeta até aos dias de hoje.
O assunto religioso associa-se ao discurso étnico. Assinalo assim que, desde sempre, Herberto Helder tem manifestado interesse pela poesia tribal e tradicional. Tal sucede n’ O bebedor nocturno, com primeira edição em 1968, constituído por vinte e dois blocos de poemas pertencentes às culturas mais distintas – haikus, poemas esquimós, indonésios, dos peles-vermelhas, do Antigo Egipto, etc. Neste livro, além de um “Saltério”, figura um poema de amor belíssimo, vertido da Bíblia, o “Cântico dos cânticos”. N' “A máquina de emaranhar paisagens” (1), o poeta cola frases de proveniência semita, como o Apocalipse e o Génesis, a versos de François Villon, Dante e Camões.
Os textos de origem bíblica foram estudados por autores vários, entre os quais Vasco António Gonçalves, José Ferreira de Almeida, Agostinho de Jesus Ferreira, e João Amadeu Oliveira Carvalho da Silva, mas os de outras proveniências étnicas, que saiba, ainda não. Eu analisei o fator antropológico na sua obra, mas sem dar especial relevo à questão religiosa. Sobram portanto dezenas de textos a merecer atenção às marcas do divino, nos livros As magias, Doze nós numa corda, Ouolof, Poemas ameríndios, Photomaton & vox, Ofício cantante, Os passos em volta e O bebedor nocturno.
A obra herbertiana pode ser toda legendada com a súplica que dá título a um dos seus contos, e eu tomei para título do meu primeiro livro sobre ele: “Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro”. No poema “Do mundo”, deduz-se que o seu pedido foi satisfeito, uma vez que o poeta escreve: “Deus quis que eu entenebrecesse”. O poeta é um profeta, recebeu o sopro divino, a sua língua é flamejante e salvadoras são as suas palavras. Ele garante aos leitores: “Eu trabalho segundo as recomendações de Deus” (2). No último poema de Cobra, eliminado no meu exemplar do livro (3), figuravam, e ainda figuram, estes versos, relativos a um rosto que canta, por isso identificável como o do sujeito lírico:

O rosto salta.
Nu, violento, inocente, enorme, miraculado.

A obscuridade refere-se ao magistério iniciático e não ao académico: “O meu poder é obscuro. Desalojo dos labirintos da ciência uma fala essencial, cultivada pela ingenuidade. Empunho essa arma inocente, com ela atravesso meu ser dúbio, o vocabulário das contradições. Talvez eu mesmo comece aqui, neste momento ignorante, onde se faz uma claridade inexplicável” (4).
A questão mais funda relativa a Édipo, para aludir a outro tema na obra de Herberto Helder, não é descobrir o segredo da Esfinge, sim descobrir o Homem. Sentimos demasiado medo de nos conhecermos a nós mesmos, é mais fácil fugir com o rosto ao espelho e à candeia, pois não acreditamos em nada. Niilista, o poeta não acredita que possa ser anjo no reflexo que não encara, por nele temer o Demónio. Por muito que a si mesmo se tente, com palavras a pingarem mel, ele prefere à luz a obscuridade. Não acredita em si mesmo, deseja que a poesia o salve, mas o desejo não é crença nem esperança, é um potencial que mantém ativa a demanda. De outra parte, sim, ele acredita nos seus dons de poeta obscuro.
Vamos relembrar: o livro Apresentação do rosto abre com versos de Lycophron, poeta dito “O Obscuro”. Aqui e ali, nos poemas, o suspiro “Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro” reitera-se de modos vários. N' O bebedor nocturno, figura um poema intitulado “A obscuridade”, na qual os seres que permanecem no escuro invocam outros seres, pedindo-lhes a luz e que lhes seja mostrado o caminho. Esta questão envolve um dos vários mitos pessoais de HH. Afinal não existiria questa da Luz, nem peregrinatio, nenhuma filosofia hermética no Ofício cantante, se o poeta fosse um iluminado. Não, ele não é um iluminado, é um aprendiz, e por vezes garante mesmo que não é um mestre.
O poeta declara, aqui e ali, não acreditar na existência de Deus, e é assim que remata o conto “Poeta Obscuro” - “Que nem mesmo Deus, se existisse… Etc.”. Porém, o seu discurso é religioso, mesmo onde o apelo à religião se torna estranho, como a conversa, n’ Os passos em volta, de dois homens que se confessam um ao outro num bar. Estranha situação ainda, essa do conto “Brandy”, porque o discurso sobre Deus comporta uma rejeição da Igreja. Ela começa na recusa do vinho, por ser bebida eucarística, quando o vinho, como bebida mítica, dá corpo a um dos espaços de imaginário mais comuns neste poeta de cepa dionisíaca. Reforçando a pregnância do discurso religioso, as personagens que bebem brandy falam mesmo de milagre. Ora o milagre é um dos tipos de metaforização herbertiana, como veremos a seguir.
Se bem que na obra ocorram formas de divindade muito distintas, o que predomina é a manifestação da cultura católica. Ela impregna os poemas de forma difusa ou conspícua, fornece o terreno em que floresce o arrebatamento da linguagem salmódica ou hínica. É deste caldo que irrompem Deus e Demónio, por muito que se afastem das leituras do catecismo que todos fizemos na infância.
Entre os elementos do religioso não católico, figuram os que podemos associar à alquimia e à magia. São inúmeras as referências mágicas dispersas na obra, ou expressas na tradução de poemas mágicos, não só étnicos como de autores ligados às ciências ocultas, caso do Conde de Saint-Germain, cujo soneto sobre o poder criador da natureza figura no livro As magias. Num dos textos mais significativos desta dominante, o poeta conta a história da máscara que trouxera com ele de uma aldeia do sul de Angola, na qual só o feiticeiro podia tocar. Outra qualquer pessoa que se abeirasse dela ficava sujeita a revés. HH não deu atenção à advertência e logo a seguir sofreu um aparatoso desastre de automóvel, seguido de outras desgraças caídas sobre quem tocara na máscara enfeitiçada (5).
Ao verter para português textos das culturas de outros povos, HH busca uma ancestralidade literária, uma parentela que não pertence ao foro do ADN, sim ao da imaginação criadora, ou do sonho, como lhe chama Alexandrian. O poeta obscuro é uma imagem do xamã, ela estabelece uma árvore genealógica sacerdotal. E tanto isto é assim que, em Lapinha do Caseiro, não só declina a autoria em Francisco Ferreira, um seu bisavô santeiro, como num dos poemas que ali publica, junto às fotografias dos santos esculpidos pelo antepassado, garante que se senta “a conversar com Deus: palavra, música, martelo / uma equação: conversa de ida e volta.”.
Que natureza assume o sujeito lírico para conversar com Deus? Será ele um dos serafins? Um apóstolo? Um feiticeiro? O poeta afirmara, linhas antes de se sentar para a dita conversa: “eu falo o idioma demoníaco”. 

Deus é uma possibilidade necessária
Recuemos a décadas transatas, em que os intelectuais se lamentavam que Deus tivesse desaparecido dos livros, e depois se congratulavam com o seu regresso. De facto, a História de Deus na arte contemporânea parece estar ainda por escrever. A questão não se limita à de o catolicismo ir perdendo as suas ovelhas, em todos os espaços sociais, incluídos conventos e igrejas, e não apenas no literário. Porém, do meu ponto de vista, Deus nunca desapareceu da arte; simplesmente, por “Deus” não podemos entender apenas “Igreja Católica”. E também não podemos entender “fiéis católicos”. Por muito que os artistas possam ser ateus ou agnósticos, Deus está sempre presente nas obras. Afinal, as religiões são os maiores produtores de cultura. Não podemos fugir ao que nos corre no sangue. Somos seres de cultura e, em primeiro lugar, no nosso caso ocidental, cultura católica.
Posto isto, Deus faz volta e meia a sua aparição. Volta e meia, o poeta faz um braço-de-ferro com Deus, como fica patente no primeiro verso de “A faca não corta o fogo”: até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza (6), declaração que já vem de Lugar, com primeira edição em 1962. Digamos que Deus é destruído pela sua própria criação, o poeta é ofuscado pela beleza da sua poesia.
Herberto Helder não acredita na existência de Deus, porém o poeta não só deseja Deus, não só faz de Deus objeto de questa, como de caça. É o que lemos por exemplo em Cobra:

                 Abisma-se o mistério
animal até ao centro da caça. Atraio Deus.
     Leão vermelho
a brilhar nas clareiras, à frente das incessantes
mãos do caçador.

Apesar de descrente, o poeta declara-se filho de Deus, por estas palavras ou outras, ao longo da obra. Assim acontece em Flash, ao rematar um dos poemas:

Vêm os animais, alvorecendo, os cornos a rasgarem a cabeça:
outra espécie de luxo,
de melancolia.
E o corpo é uma harpa de repente.
Animal de Deus, eu.
Uma ferida.

O Deus da Igreja católica está presente, com o discurso que culpabiliza e que perdoa, com os rituais da comunhão e do baptismo, e com a palavra da salvação. A palavra salvadora manifesta-se como um Messias. Dizer que existe um messianismo da palavra em HH, uma busca do Nome que salva traz à mente o ato de contrição: “Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salvo”. É como se fosse uma mensagem secreta inscrita na parte mais funda de um palimpsesto, ou latejando de modo obscuro sob o rosto de uma Mona Lisa – é a nossa cultura mais primária que se exprime e a ela não lhe podemos fugir. Acontece apenas que a palavra salvadora, no Ofício cantante, não é Jesus Cristo.
É algo chocante ler em Eduardo Lourenço que uma das grandes transformações do ocidente se deve ao caso de até o clero ter deixado de acreditar na ressurreição. Não acreditando na vida além da morte, em que poderemos nós acreditar? E como falar do nada em que o ser mergulha, ao fechar os olhos para sempre? A morte deixa de fazer sentido mesmo como funeral. Sem ao menos o fingimento da crença na vida eterna, não conseguimos morrer. É o que acontece nesse poema de A faca não corta o fogo em que HH pede que, quando morrer, antes de alguém se preocupar com funerárias, se certifique de que está mesmo morto, matando-o.
A questão é muito radical, porque não acreditar nisso põe sob xeque-mate a crença, como faculdade mental. Ou a asserção é uma possibilidade e não um facto, ou então já nos adaptámos à falta de crença por termos descoberto novos alicerces de sobrevivência espiritual. Creio bem que sim, e a persistência de Deus em textos descrentes é uma boa prova disso. Esta é também uma proposta de indagação de Swinburne, ao declarar que a formulação ateísta de que Deus não existe tem hoje uma substituta, a de que Deus é uma possibilidade necessária. Quanto a mim, creio que os incréus, como se dizia antigamente, substituíram a crença pelo desejo. Alguns dizem-se descrentes praticantes. São os que sentem desejo de Deus, por isso cumprem os rituais, na esperança de que Deus se lhes manifeste um dia.
Deus é necessário no Ofício cantante: com quem poderia o poeta medir forças, estando Deus ausente dele? Deus faz a sua aparição nos poemas por ser desejado, porque o poeta o invoca. Desejo e necessidade, eis o que mantém Deus vivo na arte e na mente. Não foi Deus que morreu, foi a crença. Permanece viva também a capacidade de esperança, ou já teríamos perdido a sanidade mental, por falta de horizontes utópicos, contrapesos para a miséria cultural e espiritual da nossa vida burguesa.
Aqui e ali o poeta faz girar em torno dele uma catedral de palavras, assumindo-se com Deus nela. Mas com mais frequência apresenta-se com as marcas do Demónio, ou como o Demónio. É o Demónio que escreve, não tanto contra Deus, mas em batalha com Deus, como se só Deus estivesse à altura do seu desafio. Sentindo-se porventura vítima de uma tremenda injustiça, que o encharcasse em culpa sem crime nenhum haver cometido, o poeta reconhece-se demoníaco mas sempre inocente. Um fragmento de Última ciência situa-nos no problema:

E explode a espuma no filme
sideral. O talento tumultuoso de uma camélia
debaixo das varas. E ao meio,
eu – inocente, inocente. Largo na testa
para a loucura e o baptismo.
Arte de redacção: ver isto,
ver a morte – dar-lhe um nome de diamante com o nervo
dentro. A veia selvagem trespassando a acerba
massa dos vocábulos. E nos lugares visuais do paraíso,
assinar: o demoníaco – com todas as letras
doces (7).

A confrontação com Deus parece não resolver conflito nenhum, de resto, noutro texto, a beleza surge como pomo de discórdia, não entre o poeta e Deus, sim entre o poeta e a crítica literária académica, para a qual a beleza teria passado de moda. Assunto importante porque, para o poeta, a beleza é o único sentido da vida.
Além de Deus, como Nome - que pode ser “a lição do nome que não tem Deus” (8) -, estão presentes nos poemas sinais diversos que aludem à sua existência: existência mental, mais forte que a real. Mas qual é o Messias desta poesia?
Notemos que os sinais externos que apontam o divino pertencem sobretudo a duas categorias: as auras, os anjos e o recorrente milagre de andar sobre as águas, pertencem, digamos, ao ortodoxo Deus do Bem. Muito mais numerosos são porém os sinais contrários: luz tão forte que se torna luciferina, notas sobre o canhoto e mão esquerda, gárgulas, e algumas a golfar sangue, referências a uma besta soberba e a um deus com fenda no casco (9). Pessoas e crianças demoníacas são personagens de primeiro plano, quer no Ofício cantante, quer nos livros em prosa. O poeta alberga-os a todos em si mesmo, ele é um deus multipolar. O móbil que o poeta atribui a Pero Coelho, um dos assassinos de Inês de Castro, é o amor. Não que Pêro Coelho estivesse apaixonado por Inês, mas tinha os olhos postos decerto no horizonte da imortalidade. Na opinião do poeta, o assassino era um salvador, o que ele queria era salvar o amor do amor. Então ocorre a condenação: “Matar por amor do amor é do espírito demoníaco”. O assassino sabe que irá parar ao Inferno, e proclama: “Deus não é chamado para aqui”. (10) Quem ama o amor não é a pessoa apaixonada por outra, é o teólogo, o filósofo, o escritor.
No primeiro dos dois poemas da página 435 do Ofício cantante, a poesia é um dom demoníaco – “Essa dádiva infernal fechada na metáfora”, escreve o poeta. No segundo, alusivo ao canto que deixa sangue na boca, recorre-se à palavra “demonia”. De daimon, é provável, como o termo demónio: “Que seja a demonia: – a arte mais forte de morrer / pela música, pela / memória”.
Não descobri a palavra “demonia”, apesar de a ter buscado em fontes várias, escritas e orais. A hipótese de se tratar de mudança de acentuação do nome “Demónia” (o poeta alterou a acentuação de inúmeros vocábulos nos seus últimos livros) foi logo rejeitada por Frei José Augusto Mourão, alegando que não existem demónias. Curiosa perspetiva, a do nosso querido amigo, que deve ser decerto a que exige o bom conhecimento da teologia. Deixa-me assim sossegada quanto ao meu Diário de Lilith (11), e também quanto a obras de outros autores em que as diabas existem mesmo. António Abujamra, carismático ator e encenador brasileiro, informou em e-mail que Lorens, dramaturgo norueguês, obteve enorme sucesso com a peça Demônia.
Vimos entretanto que Herberto Helder define a “demonia” como a arte de morrer pela música, significando isto que cria a palavra à imagem e semelhança de “poesia”. Em suma, a poesia é uma arte demoníaca, afirmação reiterada de modos diversos em vários locais da obra.
No poema dedicado aos mestres, “mestres do fogo”, como diz Mircea Eliade, encontramos mais um dos regulares sinais de que são infernais os mesteres de ferreiro e alquimista, quando os vemos arrebatados pelo demoníaco (12).
Não sei se existe um messianismo infernal, já que era do Messias que vinha falando. Nada porém impede que um artista o crie, aliás o messianismo é interpretação cristã das Escrituras, que não corresponde à vivência hebraica de um mesmo messianismo, de acordo com Frei Francolino Gonçalves. Ou seja, os teólogos, quando interpretam, criam, e assim as religiões se diferenciam:

Enquanto Jesus leu nas Escrituras antes de mais o anúncio do Reino de Deus de cuja instauração era o arauto, os cristãos lêem nelas o anúncio do próprio Jesus confirmado na sua função de Messias/Cristo. Por conseguinte, a leitura cristã das Escrituras é cristológica. Tem Jesus Cristo como única chave hermenêutica. Segundo a leitura cristã, as Escrituras, apesar das aparências contrárias, falam de antemão de Jesus Cristo de uma ponta à outra. As personagens (por ex., Moisés e David), os acontecimentos (por ex., a travessia do Mar dos Juncos), as instituições (por ex., o templo e o sacerdócio), os ritos (por ex., o cordeiro pascal) e os valores (por ex., a lei) referidos nas Escrituras são, de facto, simples figuras, tipos ou esboços de Jesus Cristo. Têm um sentido mais profundo que diz respeito a Jesus Cristo. Por isso, só a pessoa e a vida de Jesus Cristo podem revelar esse sentido. (13).

Ora, julgo que o braço-de-ferro com Deus provém deste ponto, precisamente: o artista também é Criador, por muito que as religiões só a Deus atribuam esse poder. De qualquer modo, o poeta, mais do que equiparar-se a Deus, equipara-se ao Demónio, quando fala da fornalha em que mergulha a mão para dela retirar as palavras, quando garante: “eu falo o idioma demoníaco!" (14).
A questa do Nome domina a obra, de tal forma que gera um messianismo que se assemelha ao tema da Palavra perdida dos maçons. É tarefa deles empreenderem a sua descoberta, como parte da obra ao Forno que todos devemos realizar. António de Macedo diz ter sido já encontrada – seria o nome de Deus em hebraico. Em Herberto existe essa mesma demanda da palavra perdida, o Nome. Se alguma vez pertenceu a sociedades iniciáticas, ignoro, mas estes conhecimentos são acessíveis a quantos se interessem pela literatura esotérica.
Sigamos, perguntando de novo se o messianismo, no autor, pertence ou não à ordem das coisas divinas, tenha o sinal do Céu ou do Inferno. Por outras palavras, perguntemos o que impele o leitor pelas páginas do Ofício cantante, ou o que move o poeta à escrita do poema. É algo que ilumina, explica tudo, responde a todas as perguntas, e por isso salva e, portanto, há que designar-se por messianismo, ainda que negativo, ainda que se acredite que o Messias não virá:

a madeira trabalhamo-la às escondidas,
e com o barro e o ferro às escondidas reluzimos no escuro,
o Deus que há-de vir não veio ainda,
a água não sobe ao rosto,
não sobe com luz ao rosto como devia e não trabalhamos com
água coada e fogo,
quebrou-se a enxuta substância da terra,
e então o Deus que há-de vir não há-de vir nunca (15).

Porém, logo na página seguinte a crença é oposta, e teima-se que virá Deus, ainda que pareçam irónicos os versos, por pertencerem a um monólogo interior em contexto muito quotidiano de quem está no chuveiro:

vem aí o sagrado, e tornam-se radiosas as coisas mínimas
e amadureces,
e no meio de azulejos, torneiras, gás, temperaturas,
tocas,
por favor da ferida primeira,
no teu centro, tocas
para causar profundidade,
quer dizer: vem o Deus que há-de vir, sente-se
contra a água e a cabeça,
tão perto, contra
kapput,
a cabeça
purificada
- ¿ e o Deus que há-de vir há-de vir andando sobre as águas? –
nada no mundo pede de ti o poder da dança,
nenhum poder debaixo da água lustral que te abraça,
por teor dos movimentos do duche,
te despe e abraça,
entre membros e ilhargas, o nó que rematou a obra
desde o remoto, essa
sim jubilação arcaica,
pois por trás da cortina plástica já se exacerba
a matéria dos dons, tão
leve
linguagem, uma
espécie de técnica do temor e tremor no quotidiano [...] (16)

Existe um messianismo em Herberto, que nem é o de esperar salvação de Deus, nem do Inferno. É o messianismo de quem acredita nos poderes e ferramentas próprios, e os dele são os do poeta. Um Lúcifer ou Phosphorous português: “o fósforo e a lixa do teu nome riscam / e calcinam / a língua portuguesa” (17).
Se a resposta fosse esta, tão simples e inócua, para que se daria o Homem ao trabalho da escrita e da leitura? Continuaremos a correr, encandeados por uma luz que cega, autor e leitores, atrás do Messias. Mas que Messias chama por nós nos precipícios da língua? Eu não sei, e o autor, basta ler-lhe os livros, também não sabe. O mistério existe, e esse espelho do Criador, que atrai como um íman, merece que prossigamos. Afinal, não sabemos se o Deus que há de vir já não vem.

Imagens miraculadas
Entre as partículas da explosão poética helderiana, vemos duas linhas de organização predominantes, sempre prontas a dar suporte a qualquer novo elemento de construção que surja: o fogo e o canto. O fogo como instrumento de trabalho, uma vez que o poeta associa a sua arte à de artífices como ferreiros, alquimistas e vidraceiros. E o canto como arte maior, veículo de redivida e de imortalidade.
A poesia apresenta-se como canto, investindo-se de dimensão litúrgica. É uma arte demoníaca, em paralelo, apesar de ser língua flamejante, como lemos em “Lugar” (18). Tal como os Apóstolos receberam o dom das línguas, assim as línguas de fogo iluminam o poeta. As imagens da Bíblia estão sempre presentes no conceito de poesia como fenómeno excepcional – divino, demoníaco ou alucinado: Há uma roda de dedos no ar./ A língua flamejante./ Noite, uma inextinguível / inexprimível/ noite (19).
Ora o que fascina o leitor e o poeta, é esse filme de palavras flamejantes, pois ele constrói um mundo perturbador da consciência, ao gerar imagens surpreendentes, construções impossíveis, seres e coisas que violam os limites do mundo natural, e, nesta medida, atacam a sua normalidade. A transgressão, ao romper as membranas que separam o mundo natural de outro mundo, um mundo desejado pelo poeta, mas que nem ele nem nós sabemos qual seja, cria vias de acesso ao conhecimento de espaços a que poderíamos chamar surrealistas, e são-no, mas que ultrapassam a questão técnica e cultural para colidirem com o sobrenatural. A metáfora herbertiana corresponde a um milagre, e o domínio mais evidente para testarmos esta hipótese de trabalho é o da língua flamejante, ou seja, o do fogo.
Não vamos discutir a palavra “milagre”: na sua origem etimológica reside a ideia de maravilha, por isso não ficaremos confinados à significação católica. Os “senhores do fogo”, esclarece Mircea Eliade, comem fogo, andam sobre brasas, mergulham as mãos em carvões incandescentes, tal como os santos. São os xamãs, os ioguis e os feiticeiros de religiões primitivas. Bebem álcool, comem comidas muito apimentadas ou com muito sal, para aumentarem a temperatura do corpo, de modo a trabalharem com o fogo, sem se queimarem. Os primitivos falam do poder mágico-religioso como sendo “inflamado” e exprimem-no em termos que significam “calor”, “queimadura”, “muito quente”, etc. – instrui Eliade.
Estes exemplos dizem respeito a fenómenos relatados e estudados também por Jean-Jacques Antier (20) enquanto constitutivos de situações de milagre. Como ele refere, fenómenos idênticos aos experimentados pelos santos ocorrem noutras religiões e culturas. Focamos neste caso fenómenos relativos ao tato e à derme, resultando na subida anómala da temperatura, designada, no caso do amor místico a Deus, por incendium amoris. Esse fogo está presente na maior parte dos poemas, quase sempre relativo a algo que produz a poesia ou é esse canto. “Arder”, “ferver” e similares verbos indicadores de subida de temperatura são frequentíssimos. Em paralelo, substâncias com capacidade para aumentar a temperatura interna, usadas pelos xamãs, como o álcool e as drogas, também se lhes associam às vezes. Vejamos meia dúzia de expressões ardentes:

Eu comia fogo ao pé das cerejas
[Este homem] / Vive em/arco.
 Pensa em/ espírito de fogueira.
 Tem toda a mão queimada até ao silêncio
 Queima-te a espaçosa
 desarrumação das imagens
 [...] Ou lhe ponhas no escuro
 um incêndio:
 e te ilumines dele, E a tua cara se faça
 miraculada
 à combustão, E entres rutilante por uma porta
 para outra porta, Essa porta que dê
 para uma porta de ti própria,
 a mão ateando a escrita (Ofício cantante)

“Miraculada”, escreve o autor. Não há dúvida, é de milagre que se trata. Entre todos, o da hipertermia é o mais frequente: criaturas incandescentes, ou com ferros em brasa na cabeça, encontramo-las em profusão, desde os primeiros aos últimos poemas. Febre, delírio, corpos que fervem, cabeleiras que ardem, mãos que se metem em fornalhas, são às dezenas.
A imagem herbertiana, dadas as suas características, equivale ao milagre, só tem paralelo num universo de fenómenos excepcionais, diverso daquele que a ciência explica, invocando as leis da natureza. É o caso também dos modos miraculados de tocar, toques que curam doentes ou que ressuscitam mortos. Neste campo do maravilhoso, encontramos as surpresas maiores do discurso de Herberto Helder.
No que respeita ao tato, faço uma seleção pessoal de imagem que considero central, por tudo a ela poder referir-se neste domínio do passar a mão por, que é ainda uma imagem de milagre, visto que o toque de dedos é um sinal de reconhecimento de identidade entre homens e deuses. Essa imagem é a de Adão ao ser tocado pelo Criador, pintada por Miguel Ângelo na Capela Sistina:

 quem sabe?, na muita lembrança da luz,
 se houvesse desde o princípio, dedo no dedo,
 a faúlha,
 ou se quiserem: no toque dedo no dedo,
 o abalo oculto -
 garrafa diurna gerada como absoluto, a fogo.

O toque de dedos é demiúrgico – transmuta, cria, chega a mudar o mundo todo. Só mais um exemplo desta alquimia: “toco num objeto ele brilha / Tocava, abalava organismos” (21).
Questão de o alquimista lavrar bem nas chamas a coisa de argila que leva ao atanor. Essa imagem surge de vez em quando, por vezes associada às ferramentas de um canteiro que, sem transporte metafórico, é o escritor que usa esferográficas, e mais realisticamente a Bic. A Criação de Deus e a Criação do poeta encontram-se. Com isso, surge a paixão, o desejo de ser iluminado, escrito, transfigurado, criado pelo poder demiúrgico desse toque. De novo um Messias no horizonte, para adoçar esta sessão, finda a minha caminhada por uma poesia coroada de espinhos:

Alguém há-de tocar-me com um dedo, alguém
há-de pôr-me um selo (22).

NOTAS
(1) Ofício cantante, p. 215
(2) “Do mundo”, in: A faca não corta o fogo, pp. 123 e 124.
(3) O poeta distribui pela imprensa e pelos amigos cem exemplares do livro Cobra, com emendas manuscritas, que diferem de exemplar para exemplar. O meu tem o último poema muito corrigido e finalmente eliminado por riscos de alto a baixo.
(4) Photomaton & vox, p. 39.
(5) “(a máscara)”, em Photomaton & vox
(6) Ofício cantante, p. 535.
(7) Ofício cantante, p. 437
(8) Ofício cantante, p. 606
(9) Parte destes exemplos vêm de “Flash”, no Ofício cantante, pp. 364-365.
(10) “Teorema”, em Os passos em volta.
(11) Maria Estela Guedes, Tríptico a solo, Escrituras, 2007.
(12) Ofício cantante, p. 466.
(13) Francolino J. Gonçalves, “O Antigo Testamento e Jesus Cristo”
(14) Ofício cantante, p. 441.
(15) Ofício cantante, p. 565.
(16) Ofício cantante, p. 566.
(17) Ofício cantante, p. 577.
(18) Ofício cantante, p. 137.
(19) Ofício cantante, p. 137.
(20) Jean Guitton, Os misteriosos poderes da Fé – Diálogo com Jean-Jacques Antier.
(21) Ofício cantante, p. 479
(22) Ofício cantante, p. 529


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Conferência integrada no ciclo “Conversas Cruzadas”. Instituto São Tomás de Aquino, Centro Cultural Dominicano, Lisboa, 15 de Janeiro de 2011. Página ilustrada com obras de Sérgio Bonzón (Argentina, 1959), artista convidado desta edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 109 | Abril de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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