quarta-feira, 4 de abril de 2018

MARIA ESTELA GUEDES | Jardinar com Francis Bacon



Sumário
O que é isto?!”, perguntam os exegetas, face às Magnalia Naturae, praecipue quoad usus humanos, de Francis Bacon. A estrutura sintáctica do texto foi sabiamente escolhida, para ocultar essa questão, por isso não é nele que acharemos resposta, sim em nós. Até que ponto nos cega a arrogância, para negarmos ao autor de um texto publicado em 1627 (postumamente) a ciência que lhe permite saber o que diz? Em 1627, se porventura não se sabia como alterar a estatura e a fisionomia (e de quê? – de indivíduos ou de espécies?), esse era no mínimo um objecto de investigação. Em 1627, se não se sabia fabricar diamantes artificiais, no mínimo sabia-se que esse era um objecto pertinente de investigação científica. Nada porém nos autoriza a dizer que não se sabia, excepto o medo, apesar de vivermos já em república, e a razoável distância da escolástica. Pesa no entanto sobre nós um paradigma que envolve o conceito de progresso, dificilmente compatível com a aceitação do facto de que as Magnalia Naturae correspondam a uma lista de práticas científicas do século XVII.
Esse e outros textos de Francis Bacon, incluído o que traz por título “Sobre jardins”, constituem o objecto do presente ensaio.

Sobre os jardins
A Natureza, na literatura mais invocada em relação à sua presença marcante, seja a novela romântica que põe em cena o selvagem, seja a utopia, nunca é selvagem. Essa natureza é a do jardim, do pomar ou da vinha. Nada disto é considerado natural pelas Ciências Naturais. Campos são cultura – agricultura.
Selvagem autêntico é algo que hoje já só deve existir por convenção: convenciona-se que dado território, na Amazónia, por suposição, com a sua flora e a sua fauna indígenas, é floresta virgem. Virgem quer dizer intocado pelos homens.
Tudo aquilo que se ama na literatura, desde os ribeiros que saem dos seus leitos para ouvirem de perto os cantos de Orfeu, passando pelo locus amoenus em que pastores se cortejam, até aos jardins civilizacionais das utopias, são produtos do engenho humano. Recebem por isso da ciência a etiqueta de artificiais.
Em Francis Bacon domina uma tese, que se espraia por todos os seus textos, e não apenas em “Of gardens”: a de que é possível melhorar a vida dos homens, mediante o absoluto controlo da Natureza por parte da ciência. Por conseguinte, o jardim, imagem do Paraíso, é um artefacto humano, mais próximo até do divino do que do natural, sobretudo se atendermos a uma outra linha de força do rosacruciano autor, a de que o homem é Deus para si mesmo.
“Naturarte”, eis o termo que melhor define o leque de acções transmutatórias da natureza através do artifício humano. Modificar a natureza com a técnica e com a ciência é o programa levado a cabo na Casa de Salomão, ou Colégio da Obra dos Seis Dias, na Nova Atlântida. Não é um programa literário. Ele foi o modelo das academias de ciências. Sobre a estrutura da Casa de Salomão se ergueu a Royal Society of London, e sobretudo, como revela Antoine Hatzenberger, foi esse o modelo que presidiu à fundação e actividades da Academia Francesa.
“Of gardens”, “Sobre jardins”, é um pequeno texto de Francis Bacon, editado nos Ensaios, em 1625. Começa por considerar Deus o primeiro construtor de jardins, e o jardim como a mais perfeita construção que existe: Na verdade – escreve ele -, plantar jardins é o mais puro dos prazeres humanos, isto é, aquele que constitui maior repouso para o espírito do homem; sem jardins, edifícios e palácios não passam de construções grosseiras; e vemos sempre que, à medida que os tempos desabrocham para a civilização e para a elegância, os homens se preocupam em construir edifícios grandiosos e em jardinar delicadamente, como se a jardinagem fosse o complemento máximo da perfeição.
De seguida propõe um jardim cercado, e indica as espécies a plantar ou a semear, de acordo com a sazonalidade e o clima de Londres. Para o Inverno aconselha, entre outras, o ananás, uma planta exótica. Mais espécies exóticas são seleccionadas, o que de resto se revela nos nomes, como as flores africanas, o cravo da Índia ou o abrunheiro de Damasco. O damasqueiro, conhecido no Norte da China, é cultivado em numerosas variedades e híbridos, em toda a parte.
A minha insistência neste ponto, além de prolongar um assunto que estudo há anos, visa lembrar que o cultivo de espécies exóticas, a criação de híbridos, etc., são instrumentos de modificação da natureza. Não é só na utopia que ela se controla, a selecção artificial e a introdução de espécies estava a ser recomendada por Francis Bacon aos seus contemporâneos do século XVI e XVII, tudo indicando que eram práticas tão correntes como hoje.
Continua a curta dissertação aludindo aos perfumes, doces no ar mas de que as flores são avaras, salientando a violeta como a mais aromática.
Em relação à superfície, Francis Bacon opta por uma geometria francamente simbólica, propondo, para o jardim principesco, no mínimo “trinta acres de terreno”, divididos “em três partes: o relvado, à entrada; um matagal ou deserto à saída; e o jardim principal, ao meio, além de alamedas dos dois lados”.
Tão bem delineado como o Templo de Salomão, o jardim terá então alamedas cobertas de doze pés de altura, um monte no meio de trinta pés de altura, com três caminhos para subir a ele, água e gaiolas para aves, colunas, pirâmides, um caramanchão para ágapes com fornos e sem muito espelho, e mais nenhuma ornamentação além desta.
Não fora dar-se o caso de Francis Bacon escrever um século antes de Anderson, e de estar bem identificada a sua pertença à Fraternidade Rosa-Cruz, na qual ocupou o mais alto posto, o de Imperator, e eu diria que o seu jardim é tão maçónico como a Quinta da Regaleira. Aliás, se ele antecipou a engenharia genética e o armamento nuclear, não posso ter medo de declarar que não há nada de mais maçónico do que a sua Casa de Salomão.



Maravilhas da natureza
“Saber é poder”, eis a mais conhecida máxima de Francis Bacon. Ela estabelece a dimensão política do conhecimento científico, pois é de política que em geral tratam as utopias, e é de política e ciência que trata o autor do Novum Organum, da New Atlantis, e de obras mais miúdas como as Magnalia Naturae, praecipue quoad usus humanos, ou Maravilhas da Natureza, destinadas sobretudo a uso humano.
As Maravilhas da Natureza são um enigma. Trata-se de uma lista redigida de tal maneira que ficamos sem saber o que é: um projecto de investigação? O rol dos resultados obtidos? Um programa eleitoral com promessas capazes de dar a felicidade a um povo? Vejamos, em tradução minha do francês:

Prolongar a vida
Devolver, em qualquer grau, a juventude.
Retardar o envelhecimento.
Curar as doenças reputadas incuráveis.
Minorar a dor.
Purgas mais fáceis e menos repugnantes.
Aumentar a força e a actividade.
Aumentar a capacidade de suportar a tortura ou a dor.
Transformar o temperamento, a obesidade e a magreza.
Transformar a estatura.
Transformar a fisionomia.
Aumentar e elevar a capacidade cerebral.
Metamorfosear um corpo noutro.
Instrumentos de destruição, como os da guerra e o veneno.
Tornar alegres os espíritos, dar-lhes boa disposição.
Poder da imaginação sobre o corpo, ou sobre outro corpo.
Acelerar o tempo no que respeita às maturações.
Acelerar o tempo no que toca às clarificações.
Acelerar a putrefacção.
Acelerar a decocção.
Acelerar a germinação.
Fabricar compostos ricos para a terra.
Forças da atmosfera e nascimento das tempestades.
Transformação radical, como a que se verifica na solidificação, amolecimento, etc..
Transformar as substâncias ácidas e aquosas em substâncias gordas e oleosas.
Produzir alimentos novos a partir de substâncias que actualmente não são utilizadas.
Fabricar novos fios para as roupas; e novos materiais, a exemplo do papel, do vidro, etc..
Predições naturais.
Ilusões dos sentidos.
Maiores prazeres para os sentidos.
Minerais artificiais e cimentos.

[Francis Bacon, Maravilhas da Natureza, destinadas sobretudo a uso humano]

Os problemas levantados pelas  Magnalia Naturae não se cingem ao literário, pois está bem de ver que, num primeiro nível de interpretação, a dificuldade advém da inexistência de estruturas sintácticas que definam o tempo e o modo de cada enunciado. Ora é crucial saber se, por exemplo, no último, “Minerais artificiais e cimentos”, Francis Bacon se refere a ter ele conseguido obter diamantes artificiais em laboratório, ou se a frase corresponde a um projecto de investigação para o futuro. É que a realidade científica actual dessa indústria exclui a hipótese de se tratar de um produto da sua imaginação.
Tudo se torna claro e simples, mas claro e simples apenas na dimensão literária, se entendermos o texto como cábula para ajudar à redacção da lista das conquistas da ciência postas ao serviço do bem-estar dos habitantes de Bensalem, na Nova Atlântida. Isto é, as Maravilhas da Natureza seriam um memorando, uma lista para ser usada noutros livros do autor, onde os assuntos são descritos com mais pormenor, mas não para publicar como texto independente.
Vejamos o problema, quando, diante das Magnalia Naturae, alguém pergunta, espantado: “O que é isto?!” O texto não é um poema, nem uma fábula. Aliás, nem as utopias podem tão simplistamente ser catalogadas como ficção. Estamos a lidar com textos políticos e científicos, e sobretudo com textos políticos e científicos que nos põem diante dos olhos conhecimentos, objectos e aparelhos cuja existência desconhecemos na época em que foram publicadas as utopias. A minha mais espontânea e sincera reacção face a estes documentos é a de os considerar falsos: alguém, no nosso tempo, publicou esses livros, atribuindo-lhes uma data remota. O raciocínio está errado mas não é artificial. Pelo contrário, é naturalíssimo, vem na sequência do que sabemos do autor, uma figura misteriosa e problematizante, cujos lances biográficos mais polémicos, a serem verdadeiros, confinariam com o crime: como chanceler da rainha Isabel I, Francis Bacon caiu em desgraça, acusado de corrupção; foi-lhe atribuída a verdadeira autoria dos manifestos Rosa-Cruz - Fama Fraternitatis (1614), Confessio Fraternitatis (1615) e Núpcias Alquímicas de Christian Rozenkreuz. Também foi acusado de ter sido ele o verdadeiro autor da obra completa de William Shakespeare. Enfim, outros acusam-no de ser mais alquimista do que homem de ciência, e de não passar de um divulgador, limitando-se a vulgarizar as descobertas científicas e as tecnologias do seu tempo.
Não parece que a situação se tenha esclarecido com o rótulo de divulgador, por isso vejamos mais de perto as electricidades, os submarinos, os microscópios, as genéticas, e as telefonias e telefones popularizados por este homem no século XVII.

Teres e haveres
As Maravilhas da Natureza, em especial destinadas a uso humano, são aquilo que, na Nova Atlântida, aparece regido pelo verbo “ter” e conveniente sujeito. Cito Carlos Fiolhais, para não traduzir eu: Temos todos os meios de transmitir sons em caixas e tubos, em linhas e distâncias estranhas”.
Como é que nos finais do século XVI, princípio do século XVII, um cientista foi capaz de imaginar o gira-discos, o telégrafo, o telefone, a televisão, até a Internet? A imaginação não tem limites? Trata-se de delírio poético?
Carlos Fiolhais classifica estes enunciados como antecipação científica. Existe um exemplar da Nova Atlântida, anotado à margem por um contemporâneo de Francis Bacon, Christopher Wren, que vai acompanhando com exemplos comprovativos os teres e haveres enumerados, como revelam as notas de Michèle Le Doeuff à edição de La Nouvelle Atlantide da Flammarion. Christopher Wren não é o único a achar normal a lista de teres e haveres que consideramos fantásticos, e a manifestar a ideia de que Francis Bacon se comportava como um divulgador da ciência. Mas vejamos: etiquetar Francis Bacon como divulgador é tão extraordinário como considerá-lo autor de ficção científica. Não parece que tenhamos saído do reino das ciências ocultas com nenhuma das soluções.
Para resolver o problema houve quem tivesse criado modelos de leitura, o que não quer dizer que ele esteja agora resolvido. Hatzenberger refere o modelo proposto por Raymond Trousson, com três aproximações: na primeira, far-se-ia o inventário de todas as descobertas, identificando as intuições, os pressentimentos e as antecipações. Na segunda, procurar-se-ia analisar a vontade do utopista em vulgarizar a ciência; a terceira aproximação consistiria em perguntar qual foi o papel das ciências e das tecnologias na utopia, uma vez que elas afectam a organização política, social, e mesmo a natureza humana, num manifesto de que a ciência é útil para o progresso social.
Por estas razões de programa eleitoral, ou ideológico, patente nas utopias, não é possível tomá-las como puras ficções, no interior das quais as tecnologias de vanguarda decorressem de delírios da imaginação dos autores. Note-se, no método citado, que a imaginação nem é referida. Pode apenas ser entrevista no primeiro modo de leitura, o que contempla as intuições, os pressentimentos e as antecipações. Mas perguntemos: que lista é esta, em que as antecipações fecham uma tríade encabeçada por intuições e pressentimentos? As utopias são textos místicos? É penoso responder. Diria que sim, que há nelas componentes New Age. Apesar de parecerem afastadas dos propósitos religiosos e estéticos, e mais próximas das ideologias políticas, Cioran não receia considerá-las aberrações intelectuais. É que no horizonte das utopias, como em qualquer messianismo, rebrilha a promessa de salvação. Cioran não suporta a ideia de que a ciência possa ter a pretensão de resolver a questão social, e resolvê-la com remédios mais ou menos miraculosos.
É aquilo a que Marquer chamaria a propaganda eleitoral: movemo-nos no jardim da política, a garantir que a ciência aplicada é a instituição capaz de transformar em Paraíso a vida na Terra. Concessões à novelística e à poesia há poucas, e manifestam-se mais na cobertura esotérica de certas descrições, caso da Casa de Salomão, que à evidência é o Templo de Salomão das sociedades iniciáticas.
Na parte final da Nova Atlântida, os resultados práticos obtidos pelos cientistas são apresentados não como programa eleitoral, sim como resultados da eleição de governantes que de há muito vêm cumprindo todas as promessas feitas. Por isso Bensalem já não é uma ilha oculta. Para os estrangeiros, ela é a revelação do Jardim do Paraíso, em que todos têm.
Nós temos é a frase dominante da lista. Ela define a satisfação dos sentidos, uma vez atingida a felicidade do corpo e do espírito com o conforto e o consolo proporcionados pela ciência. Nada falta em Bensalem, os ilhéus têm tudo, incluída a “Água do Paraíso”, que cura todas as doenças e concede o prolongamento da vida.
Entre os muitos teres e haveres, vejamos o que se passa com a jardinagem:
“Temos também extensos e diversificados jardins e pomares nos quais investigamos menos a beleza do que a variedade de terras e de solos que convenham a diferentes árvores e plantas. […] Levamos a cabo neles todas as experiências possíveis relativas a diferentes técnicas de enxertia, tanto em árvores frutíferas como selvagens, o que dá muito resultado. Conseguimos, com a nossa arte, nestes mesmos vergéis e jardins, tornar mais precoces ou mais tardias as árvores e as flores; também conseguimos que as árvores cresçam e frutifiquem mais depressa do que é natural nelas. À força de arte, tornamo-las maiores do que seriam pela sua natureza; os frutos são maiores e mais doces; o seu sabor, o seu perfume, a sua cor e forma são diferentes dos que encontramos em estado natural. Entre estas plantas, são numerosas aquelas que modificamos de tal modo que se tornem úteis de um ponto de vista medicinal”.
À força de arte, escreve Sir Francis Bacon. O que o homem cria é naturarte, próprio da Arte. Qual a diferença entre os produtos da selecção humana e os produtos da selecção natural? Para nós, que nos limitamos a usufruir dos bens que a ciência nos concede, eis uma das raras respostas claras: os frutos da selecção humana são maiores, mais substanciosos, mais saborosos, mais belos. Mas não é com novas espécies que a ciência consegue salvar a Humanidade do colapso ambiental que ajudou a criar na Terra.

Concluindo com idolatria
Não resolvi os problemas que Francis Bacon levanta, limitei-me a apresentá-los nesta assembleia. Em minha defesa direi que ensaístas bem mais preparados, e munidos até de grandes conhecimentos científicos, também os não solucionaram. Cioran espanta-se: Como é possível que os utopistas tenham falado de coisas que só no nosso tempo se descobriram? Os escritores são profetas, magos ou adivinhos? Cioran insulta as utopias, diz que são taras. Persuade-se assim de que resolveu o problema.
Francis Bacon tem resposta para a nossa incompreensão: cega-nos e tolhe-nos a idolatria…
O pensamento está preso em falsas noções, aquilo a que o autor, no Novum Organum, chama os ídolos. Em especial os idola theatri, a idolatria pelos sistemas, a cegueira provocada pelos paradigmas e modelos. A ideologia do progresso impede-nos de pensar que tivesse existido ciência em séculos anteriores àquele em que nós admitimos a sua assunção. Cegamos com os idola fori, os nossos espelhos narcísicos, esses que nos obrigam a decretar que a verdadeira ciência só despontou no século XXI, e está bem de ver que um resto de pudor não me deixou assinalar esse nascimento com o meu próprio nome…


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Página ilustrada com obras de Sérgio Bonzón (Argentina, 1959), artista convidado desta edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 109 | Abril de 2018
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