Your face seems wet to touch. O then I’m so sorry father
I never thought I hurt you so much.
Nick Cave,
“Weeping song”
Diferentemente do fado ou do rap, a musica gótica não é um género, sim uma
cultura dentro da cultura popular urbana. O gothic rock não conhece fronteiras
musicais, geográficas nem linguísticas. Parte dele é assimilado ao heavy metal,
mas já Nick Cave, considerado um ícone do gótico, se situa no pólo oposto com as
suas canções de extrema sensibilidade. “The weeping song”, de Nick Cave & The
Bad Seeds, é um mar de lágrimas em que todos choram, incluído o Pai, a quem o sujeito
lírico confessa não saber que O faz sofrer tanto. Porque todos e todas choram, incluídos
seres inanimados, maiusculei a palavra “Pai”, que assim fica inserida numa interpretação
teológica.
Ao contrário de outras formas de arte, mesmo musicais,
o rock gótico é uma cultura culta, e não existe aqui pleonasmo – basta compará-lo
com o rap para se tornarem óbvias as diferenças, logo à partida no nível de competência
linguística dos textos. Piruka, um dos mais fascinantes rappers portugueses, para
as minhas expectativas, declara, em “Se eu não acordar amanhã”, que era tão grande
a sua despreparação para a vida, que nem sabia que a dúzia era doze.
O rap nasce na rua, tem o discurso dos rapazes de gang,
violentos e malcriados, sem abrigo, de instrução insuficiente. Situamo-nos, com
ele, no plano da escolaridade obrigatória, o que move a dizer que o Piruka se destaca
entre os milhões de rappers porque a sua inocência e o seu talento são tão grandes
que lhe sustentam uma estrela sem assento. As suas letras, tocantes por ele cantar
o que vive e não o que inventa, segundo as suas próprias palavras, são um desastre
linguístico e de teoria da arte, mas um milagre de espontaneísmo poético. O Piruka
faz-se amar, num plano muito direto de ouvinte para cantor, o que é excecional,
sobretudo se atendermos a que o rap é fácil: de acordo com as lições de jovens no
YouTube, basta ir buscar uma batida (algures, a qualquer site da Internet, presumo)
e depois dizer qualquer coisa sobre isso, de preferência começada por Yeah!, repetir
o Yeah, meu!, e temos pronta uma canção igual a milhares desfrutáveis, ou indesfrutáveis,
numa comunidade de músicos e aspirantes a isso como o website SoundCloud.
O gótico, não. O gótico é teatral, dotado até de cenário
musical, com os dobres de sinos de igreja, o rangimento de pesadas portas, os gritos
de pavor e as vozes distorcidas, rascantes como a do português Fernando Ribeiro,
integradas no coro de todos os instrumentos, sem se destacarem em solo. Tudo aquilo
que, nos comentários aos vídeos, no YouTube, leva os ouvintes a ironizar: “Ai que
medo!…” Medo que participa da liturgia, pois é de terror sagrado que se trata, com
a sua aspiração ao sobrenatural.
Esses elementos aparecem no filme recente Bram Stocker’s
Dracula. Na canção interpretada por Annie Lennox, Love song for a vampire,
ouvimos portas a bater parecendo o coração que sangra de amor pelo vampiro. E aqui
apresento o fundamental da estética gótica, o amor, amor para além da morte, porque
são vampiros os enamorados. Da banda Type O Negative temos a canção Love you
to death, declaração de amor até à morte, e uma das canções mais conhecidas
de Fernando Ribeiro, na banda Moonspell, é “Vampiria”, declaração de amor à vampira.
O ultra-romantismo do rock gótico é tão evidente que
a culta banda La Chanson Noire apresenta como antepassada a edição de uma cassette
intitulada “Canções de faca e alguidar”, com tiragem de 50 exemplares, numerados
a sangue pelo autor, Carlos Monteiro, ou Charles Sangnoir, em assinatura artística.
O gótico sabe que a sua origem é catedralícia, por isso
é tão culto que até usa o Latim. A sua cultura, para a associar à catedral, é catedrática. Cita as “Fleurs du Mal”, de Baudelaire, não leu
só o Dracula de Bram Stocker, leu os livros sagrados e demonológicos. Sabe
que o Diabo apela para a satisfação dos desejos do corpo. Por isso, La Chanson Noire
canta, em “O bordel de Lucifer”, tudo aquilo que o catolicismo opõe ao espírito.
Porém, como se mantém, com o Demónio, no recinto da catedral, não podemos dizer
que seja material nem materialista; todo o gótico, de resto, ressuma espiritualidade,
mas aquela espiritualidade que os inquisidores castigariam com a fogueira. A sua
grande abertura é passível de exclusão social, a sua forte crítica social já foi
vítima de atos terroristas (Paris, Bataclan, 2015). O gótico gira à roda do Demónio,
do monstro, do sangue, dos vampiros, dos fantasmas, dos lobisomens, veste-se de
negro da cabeça aos pés e desde a camisa às cuecas, não distingue géneros nem transgéneros,
usa maquilhagem carregada, máscaras, caveiras, círios, passeia de noite por criptas
e cemitérios, inspira-se, como a portuguesa banda Moonspell, no que é sinistro,
como guerras e catástrofes. Até a editora, Napalm Records, regista o potencial terror
que enche o álbum “Todos os Santos”, inspirado pelo terramoto de 1755. Como se sabe,
o terramoto ocorreu no dia de Todos os Santos, quando grande parte da população
assistia à missa nas igrejas lisboetas. Nem todos os santos juntos foram capazes
de defender Lisboa do Mal. E não é só o Mal das Flores baudelairianas e de Lúcifer
o que se canta. Lembremos Amy Winehouse, com a canção “You know I’m no good”, e
Michael Jackson, vestido de negro, os olhos maquilhados de negro, a declarar, em
“Bad”: “I’m bad”. O gótico é negro, macabro, demoníaco, porém, ao contrário de Piruka,
o rapaz que canta o que vive, o gótico não canta o que vive, sim o que viu e leu,
na literatura de terror e na cinematografia. Um dos mais importantes modelos é Nosferatu,
o Vampiro, de Friedrick Murnau, com a sua carga de expressionismo alemão.
Máscaras, maquilhagem, indumentária, cenografia dos vídeos, tudo gira em torno desse herói da gothic novel, Drácula. Algumas canções mais emblemáticas do gótico foram escritas por ocasião da morte de Bela Lugosi, caso de “Bela Lugosi’s dead”, da banda Bauhaus.
Não imaginemos que o gótico é apenas decadentismo e
próprio dos mais jovens: num dos seus últimos livros, Herberto Helder estava seduzido
pelo que designa por “Demonia” (quem sabe se foi a palavra “Demónia” que perdeu
o acento?). O seu discurso metaforizante rodou da beleza celestial para a rudeza
minimalista do Diabo, ao longo da obra, e eu mesma, não o posso ocultar de ninguém,
também alguma relação estabeleci com o gótico, patente no meu último livro, Dracula
draco.
Página ilustrada
com obras de Sérgio Bonzón (Argentina,
1959), artista convidado desta edição.
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Agulha Revista de Cultura
Número 109 | Abril de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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os artigos assinados não refletem necessariamente
o pensamento da revista
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todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
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