quarta-feira, 19 de setembro de 2018

TEODORO RENNÓ ASSUNÇÃO | Fotomontagem e colagem poética em Jorge de Lima



Este artigo resulta de uma colagem algo abrupta de duas partes muito distintas entre si, mas pertencentes a um mesmo - ainda que heteróclito - contexto: a obra do poeta e artista plástico Jorge de Lima. A primeira parte consiste no texto lido no “1º Colóquio Internacional sobre o Livro e a Imagem” (Ouro Preto, 04/10/2001), texto que visava uma breve descrição de conjunto do pouco estudado livro de fotomontagens de Jorge de Lima A pintura em pânico. Esta descrição, no entanto, está mais voltada para o entendimento do procedimento plástico-textual da fotomontagem do que para o praticamente ausente comentário direto sobre uma ou mais fotomontagens limianas. A segunda parte já se volta para uma linguagem artística constituída apenas pela palavra: a poesia, mas para pesquisar nela - ou mais precisamente em um dos livros de Jorge de Lima: A Túnica Inconsútil - um procedimento análogo ao da fotomontagem: a colagem como processo de construção da imagem poética. O caráter abrupto da colagem destas duas diferentes partes não é, porém, um mimetismo planejado do objeto mesmo de estudo, mas uma contingência que revela - na pressa algo desesperada do não-especialista - o enorme vazio a ser coberto por outros e mais cuidadosos estudos.

A) A PINTURA EM PÂNICO: UM LIVRO DE FOTOMONTAGENS DE JORGE DE LIMA | O interesse por este livro de Jorge de Lima se deve ao fato de ser ele testemunho de um trabalho pioneiro - no gênero - no Brasil, além de ser certamente - como sugeriu com justeza Fábio de Souza Andrade - o trabalho mais significativo de Jorge de Lima no campo das artes plásticas. Ana Maria Paulino - em Jorge de Lima / Col. Artistas Brasileiros - estudou sobretudo a sua pintura, apesar de haver escrito também um ensaio (“Jorge de Lima : a re-velação da imagem”) sobre as fotomontagens de Jorge de Lima pertencentes ao acervo de Mário de Andrade e editadas por ela em um livro intitulado O poeta insólito: Fotomontagens de Jorge de Lima. O livro A pintura em pânico, no entanto, nunca foi objeto de um estudo direto, se excetuarmos o luminoso texto crítico de Murilo Mendes (“Nota liminar”) que já faz parte dele mesmo.
A obra (ou obras) de arte em questão se dá (ou se dão) na forma de um livro, mas precisemos: um livro de fotomontagens (precedidas por uma “Nota liminar”), intitulado A pintura em pânico e assinado por Jorge de Lima. O livro contém informação do local e data da publicação: Rio de Janeiro, 1943, e, ainda, do número de exemplares impressos: 250, “numerados de 1 a 250 e rubricados pelo autor.” O exemplar consultado está numerado à mão (número 81), dedicado a Rodrigo Melo Franco de Andrade, datado (16-8-43) e assinado por Jorge de Lima. A questão elementar sobre o que é este livro de fotomontagens ganhará aqui uma primeira formulação por meio da citação de uma passagem do parágrafo final do já citado ensaio “Jorge de Lima: a re-velação da imagem” de Ana Maria Paulino: “Diante dos muitos caminhos que atraem a análise, surgirão sempre interrogações, muitas talvez sem resposta. A mais simples é, quem sabe, indagar se as colagens teriam sido elaboradas com o intuito de, obedecendo a uma determinada sequência, compor uma narrativa surrealista.” A questão, transposta para A pintura em pânico, sobre a possível sequência narrativa do conjunto de colagens ganha ainda uma qualificação (“narrativa surrealista”) que pode justificar a escolha, de algum modo óbvia, do modelo que, ao longo deste ensaio, nos servirá de comparação: Max Ernst. [1]
Tentemos, pois, examinar os tipos de narrativa que constituem os três livros de fotomontagens de Max Ernst : La femme 100 têtes (1928), Rêve d’une petite fille qui voulut entrer au Carmel (1930) e Une semaine de bonté ou les sept éléments capitaux (1934). Uma mínima sequência narrativa, comum aos três livros, parece bem indicada pela organização do material em capítulos sequenciados. Mas é bem diferenciado o modo como funcionam estes capítulos e o material neles contido. Rêve d’une petite fille qui voulut entrer au Carmel é introduzido por uma pequena narrativa escrita (encimada pela colagem “L’Académie des Sciences”) que, delineando personagens e estória, nos lança claramente numa paródia cruel e violenta da estória da vida de Santa Teresinha (Therèse de Lisieux). Os quatro capítulos numerados em sequência têm títulos (“I- La ténébreuse”, “II- La chevelure”, “III- Le couteau”, “IV- Le celeste fiancé”) que organizam tematicamente as fotomontagens que são, por sua vez, todas acompanhadas de legendas que, mais ou menos longas, se encadeiam como frases ou episódios de uma bem visível sintaxe narrativa. Une semaine de bonté ou les sept éléments capitaux tem em cada capítulo um “caderno” ou um bloco de fotomontagens organizado tematicamente segundo um complexo formado por um dia da semana (o primeiro é “domingo”), um elemento (o primeiro é “a lama”) e um exemplo (o primeiro é “o leão de Belfort”), seguidos por uma epígrafe também tematicamente conexa. As fotomontagens, no entanto, não são legendadas e parecem constituir situações - mas não necessariamente sequenciadas em narrativa - que concretizam em imagem o dia da semana, o elemento e o exemplo. Já La femme 100 têtes está organizado em nove capítulos numerados em sequência, mas sem títulos ou temas visíveis, sendo todas as fotomontagens legendadas e algumas delas formando blocos indicados por legendas que constituem pedaços de uma única frase (ou por frases numeradas que se repetem). Apesar de algumas personagens recorrentes como “A mulher Cem Cabeças” ou “Lop-lop a andorinha”, é muito difícil, após “lido” o livro, reconstituir a “estória” que foi contada ou mesmo afirmar sem hesitações que houvesse uma “estória” central enfeixando várias. Talvez seja a uma tal “estória” que melhor caiba a denominação de “surrealista”.
A pintura em pânico, diferentemente dos livros de Max Ernst, não está organizada em capítulos sequenciados e tem apenas um bloco narrativo (mínimo) de fotomontagens: a segunda e a terceira, indicado pelas legendas que formam uma frase continuada. Apesar de algumas fotomontagens poderem ser tematicamente associáveis, não há nenhuma marca formal organizando os possíveis blocos. Não há também nenhuma personagem recorrente atravessando o conjunto e constituindo por si um fio qualquer. Um signo externo que confirma a inexistência de uma sequência narrativa é o fato de as páginas não estarem numeradas. Pensamos que imaginar uma estória, mesmo desconexa, seria neste caso trair a natureza do material que se apresenta antes como uma coleção de fotomontagens legendadas onde cada qual constitui uma totalidade e guarda, portanto, sua autonomia. Se o que unifica a coleção é apenas um estilo reconhecível de montar e legendar, este livro de fotomontagens funciona como um livro de poemas autônomos em que se reconhece porém uma autoria única através da maneira de compor. A absoluta autonomia destas fotomontagens permite, assim, pensar na inexistência de uma ordem necessária de leitura ou em uma ordem aleatória e maravilhosa que - como diz André Breton no prefácio a (“Avis au lecteur pour”) La femme 100 têtes - “salta as páginas como uma menina salta corda (...).” (BRETON, André: 1992, p. 304).
Esta primeira abordagem da questão sobre o que é este livro de fotomontagens de Jorge de Lima nos permitiu ver a inexistência de uma sequência narrativa que as estruture. Resta, contudo, investigar que tipo de unidade podem constituir não só a coleção de fotomontagens legendadas mas ainda um título que as nomeia e uma “nota liminar” contendo um texto crítico de Murilo Mendes. Tentaremos, portanto, comentar na sequência - guardando sempre uma perspectiva de conjunto - o que são estas fotomontagens, o tipo de relação entre fotomontagem e legenda em A pintura em pânico, a relação entre o título do livro e as fotomontagens e, enfim, a “nota liminar” de Murilo Mendes.

A1A) AS FOTOMONTAGENS | O material e o procedimento da fotomontagem, tais como utilizados por Jorge de Lima, são apresentados de maneira análoga por Mário de Andrade e Murilo Mendes. Mário de Andrade diz: “Consiste apenas na gente se munir de um bom número de revistas e livros com fotografias, recortar figuras e reorganizá-las numa composição nova que a gente fotografa ou manda fotografar”. (ANDRADE, Mário de: 1987, p. 9). Enquanto Murilo Mendes nota: “Seus elementos de organização são pobres e simples: figuras recortadas de velhas revistas, gravuras imprestáveis; uma tesoura e goma arábica.” (MENDES, Murilo: 1943, s.p.). É importante observar que se fotografias podem fazer parte do material recortável, elas não são aí exclusivas, sendo, pelo contrário, mais comuns as gravuras; mas cada conjunto novo ou colagem será - uma vez definido - fotografado, justificando o nome deste modo (diferentemente, por exemplo, de uma fotomontagem de Man Ray, Rodtchenko ou Moholy-Nagy que parte apenas de elementos fotográficos). O espectador não pode, pois - como quando contempla um quadro com collages de Picasso, Braque, Schwitters ou Max Ernst -, se certificar da textura original da fotomontagem, o que nos leva a suspeitar que, em algumas das fotomontagens de Jorge de Lima (como “Caim e Abel” e “A invenção da polícia”), pudesse também ter participado o desenho [2]. De qualquer modo, a fotografia, sempre presente na fase final da elaboração, garante a reprodutibilidade da imagem e sua possível divulgação em massa, o caráter único do original deixando aqui de ter sentido. A esta democratização da recepção poderia corresponder a da própria criação que, ao partir de imagens já existentes, não exigiria nenhuma destreza plástica manual específica. No entanto - ainda que aparentemente fácil enquanto processo -, o poder artístico do resultado dependerá da capacidade de escolher e combinar as imagens. Ora, se as possibilidades de escolha e combinação são em princípio ilimitadas, seria preciso dizer que o poder plástico singular de Jorge de Lima se inscreve em uma tradição combinatória que, com Max Ernst, praticamente inventou esta linguagem imagética: o surrealismo. Para esta tradição o coeficiente de “beleza” dependerá da distância ou disparidade entre os elementos fortuitamente aproximados em um plano (ou contexto) que em princípio também não lhes é pertinente. É Max Ernst quem o evidencia em sua conhecida definição do mecanismo da colagem: “(...) a exploração do encontro fortuito de duas realidades distantes em um plano não pertinente (que isto seja dito parafraseando e generalizando a célebre frase de Lautréamont: Belo como o encontro fortuito sobre uma mesa de dissecação de uma máquina de costura e de um guarda-chuva) ou, para usar um termo mais curto, a cultura dos efeitos de um estranhamento sistemático segundo a tese de André Breton: ‘A surrealidade será aliás função de nossa vontade de estranhamento em relação a tudo(...).’ ” (ERNST, Max: 1970, p. 253-254). No registro das artes plásticas, este efeito de “estranhamento” (dépaysement) lembra aquele causado pela atmosfera enigmática dos quadros do primeiro De Chirico, influência confessa nas colagens de Max Ernst e que será também apropriado, na chave religiosa que lhe é própria, por Jorge de Lima. Se quiséssemos agora explicitar a importância do caráter fortuito deste encontro entre imagens díspares, seria útil citar ainda uma outra definição da colagem por Max Ernst : “Poder-se-ia definir a colagem como um composto alquímico de dois ou vários elementos heterogêneos, resultando de sua aproximação inesperada, devida, seja a uma vontade dirigida (...) para a confusão sistemática e o desregramento de todos os sentidos (Rimbaud), seja ao acaso ou a uma vontade favorizando o acaso.” (ERNST, Max: 1970, p. 262). Max Ernst - após lembrar que entende “acaso” no sentido que lhe foi dado por David Hume, isto é: como “o equivalente da ignorância na qual nos encontramos em relação às causas reais dos acontecimentos” - dirá ainda que “o acaso é também (...) o mestre do humor e, consequentemente, em uma época que não é rosa, na época em que vivemos, onde uma bela ação consiste em se fazer arrancar os dois braços em um combate, o mestre do humor que não é rosa, do humor negro.”(ERNST, Max: 1970, p. 263). É quase supérfluo lembrar que A pintura em pânico foi publicado em 1943 e que suas fotomontagens foram em sua maioria compostas nos três ou quatro anos imediatamente anteriores, ou seja: em plena 2a. Grande Guerra. Talvez menos observado seja o fato de que em várias das fotomontagens (como, por exemplo, “Será revelado no final dos tempos”, “A paz das famílias”, “A poesia de uns depende da asfixia de outros” e “A poesia abandona a ciência à sua própria sorte”) está presente um elemento relativamente raro na poesia grave e desesperada da maturidade de Jorge de Lima (isto é, a partir d’ A Túnica Inconsútil): o humor negro.
Poderíamos, porém, colocar em questão a ênfase dada por Max Ernst ao caráter fortuito (como se à revelia do artista) deste encontro entre imagens díspares, se nos lembrássemos que o artista, mesmo quando não projeta, exerce um mínimo controle consciente sobre o resultado final de sua conjunção de elementos heterogêneos, podendo manipulá-la, modificá-la ou mesmo destruí-la e iniciar outra série. Semelhantemente o irracional, tido por Max Ernst como a mais nobre conquista da colagem (cf. ERNST, Max: 1970, p. 264), não será livremente um qualquer, mas guardará traços estruturais do sujeito que faz a seleção das imagens e sua combinação na antes inexistente unidade. Como disse Mário de Andrade: “Dentro de uma centena de imagens recortadas que estejam à nossa disposição, dois temperamentos diversos fatalmente escolherão as imagens que lhes são mais gratas, descobrirão combinações diferentes, movidas pelas suas verdades e instintos.” (ANDRADE, Mário de: 1987, p. 9). Mas é possível, mesmo assim, abandonar ao acaso justamente o território de experiências plásticas cujo método é o mero testar de recortes e combinações sem nenhum planejamento prévio (ainda que o material e os instrumentos já estejam determinados). O dispor-se a tais testes, enquanto ocasião favorável para o acaso se manifestar, coincide com o aspecto de jogo ou brincadeira das fotomontagens tal como sublinhado por Mário de Andrade no começo de seu já citado artigo. Este aspecto lúdico permeia muito dos experimentos surrealistas (como o “Cadavre exquis” ou a escrita automática) e, antes mesmo disto, vários procedimentos de colagem dos primeiros dadaístas, entre os quais, como se sabe, Max Ernst começou e foi muito comum a colagem plástica (cf. a citação de La peinture au défi de Aragon in ERNST, Max: 1970, p. 252). Não deixa, por outro lado, de ser significativa a coincidência - no plano biográfico de Jorge de Lima - entre as primeiras grandes crises depressivas e o começo das experiências com as fotomontagens (e mais largamente também com a pintura) no fim dos anos 30, como se, por seu caráter lúdico, as artes plásticas - e, mais particularmente, as fotomontagens - pudessem ter uma função terapêutica. (cf. “Arte-terapia” in PAULINO, Ana Maria: 1995, p. 62-67).

A1B) A RELAÇÃO ENTRE FOTOMONTAGEM E LEGENDA | Na conclusão do retrato-relâmpago de Max Ernst, Murilo Mendes homenageia mimeticamente a habilidade poética do artista plástico na invenção dos títulos de suas obras, inventando - ele, Murilo - títulos ernstianos para quadros imaginários do artista, ainda que inspirados em quadros reais [3]. O próprio Max Ernst, consciente do poder poético de seus títulos, reuniu alguns deles em uma espécie de catálogo intitulado pela pergunta: “Quais são as colagens de Max Ernst cuja nomenclatura cada criança digna deste nome deve saber de cor?” (ERNST, Max: 1970, p. 259-262). Assim como o exercício muriliano, esta tentativa de Max Ernst evidencia a possível autonomia do título e faz pensar o collage como um “poema duplo” ou seja, como uma colagem final entre dois elementos heterogêneos: o collage plástico e a legenda discursiva (que, em muitos casos, também é composta por uma colagem). E - ainda que seja possível estabelecer relações entre elementos da imagem e do texto - seria, segundo Márcia Arbex, “inútil recorrer à imagem para clarificar o sentido global da inscrição, e vice-versa”, pois “o que predomina na legenda é o estilhaçamento do sentido, como se se tratasse apenas de dar significações parciais.” (ARBEX, Márcia: 1999, p.87) [4]. Para nos aproximarmos comparativamente de nosso objeto: o livro de fotomontagens de Jorge de Lima, deveríamos, no entanto, nos concentrar também nos três livros de fotomontagens de Max Ernst. Em Une semaine de bonté (ou les sept éléments capitaux), não há legendas e o texto consiste - como vimos -, além das citações em epígrafe, na indicação preliminar do dia, do elemento e do exemplo que definem cada bloco ou capítulo. Em Rêve d'une petite fille qui voulut entrer au Carmel, aberto por uma narrativa não ilustrada, as legendas - que muitas vezes se encadeiam em uma longa frase - constituem pequenos episódios narrativos apresentados em vocabulário e sintaxe tradicionais, mesmo se o conteúdo é transgressivo, episódios que estão não só conectados entre si pelo fio maior da estória como também com as respectivas imagens em uma relação de apresentação quase sempre visível (ainda que com possíveis deslocamentos). Apenas em La femme 100 têtes - cuja narrativa entrecortada (e às vezes desconexa) está ainda organizada em capítulos em torno de personagens recorrentes - encontramos legendas que, embora guardando muitas vezes uma relação evidente com as respectivas imagens, podem, devido à sua radical inventividade poética, ser consideradas autonomamente como máximas ou versos isolados e insólitos. Murilo Mendes cita, por exemplo, “A tranquilidade dos assassinatos antigos”, a que poderíamos acrescentar outras como “À mais tenra juventude, extrema unção” ou “Estridulações dos fantasmas do domingo”. Também com relação às legendas - que jamais apresentam o grau de desenvolvimento narrativo das do Rêve d'une petite fille qui voulut entrer au Carmel - é com La femme 100 têtes que A pintura em pânico mais se aparenta. Mas as diferenças são grandes. Notemos, antes de mais nada, que - se a 2a. e a 3a. fotomontagens de Jorge de Lima, enquanto bloco mínimo, apresentam legendas formando uma só frase continuada (processo comum em Rêve d'une petite fille qui voulut entrer au Carmel e presente também em La femme 100 têtes) - a primeira fotomontagem tem como legenda uma longa citação de Henri Michaux, em uma junção que jamais ocorre assim nos livros de Max Ernst. A diferença mais significativa, porém, está no fato de que seria impossível fazer, a partir do livro de Jorge de Lima, um catálogo de legendas que, por seu poder poético, pudessem funcionar autonomamente, mesmo se uma pequena minoria delas a isto se prestasse sem problemas (como, por exemplo, “A poesia abandona a ciência à sua própria sorte”, “Pois sempre desejávamos a paz, a paz branca sobre um saturno diário” e “Ah! fui precipitado quando quis fundir as coisas numa só!”, todas elas marcadamente limianas). Pois a maioria delas é relativamente prosaica e só adquire um sentido surpreendente (e muitas vezes irônico) ao iluminarem discursivamente e por contraste uma imagem ou cena monstruosa e incongruente (como, por ex., “A paz das famílias” ou “O criminoso lega sua impressão digital”). Seria útil, então, precisar que - nas fotomontagens de Jorge de Lima (e, de algum modo, também naquelas legendadas dos livros de Max Ernst) - mesmo o contraste e o deslocamento irônicos, enquanto necessariamente modos de relação entre legenda e imagem, atuam como indicativos ou guias de uma leitura cujo sentido só se forma na súbita faísca da unidade resultante da colagem entre imagem e legenda. Embora o sentido desta leitura não seja banalmente determinável como o de uma mensagem no fotojornalismo, fotomontagem e legenda em Jorge de Lima se referem manifestamente e mesmo se demandam um ao outro no ato da recepção, e, nos poucos casos em que coubesse pensar na autonomia poética da legenda ou plástica da imagem, o que se perderia com a abstração de um dos elementos é precisamente a relação entre eles, ou seja: a nova unidade ou conjunto formado por sua junção - a obra de arte enquanto tal.

A2) O TÍTULO DO LIVRO (E O CONJUNTO DAS FOTOMONTAGENS) | Não é propriamente hermética a relação que os títulos dos três livros de Max Ernst mantêm respectivamente com os conjuntos das fotomontagens que eles nomeiam. Rêve d'une petite fille qui voulut entrer au Carmelresume mimeticamente em um sintagma longo e narrativo a estória que será contada por meio da relativamente longa narrativa introdutória e por fotomontagens acompanhadas de legendas que funcionam como pequenos episódios. Une semaine de bonté (ou les sept éléments capitaux) antecipa enquanto título a organização do livro em sete blocos correspondentes aos sete dias da semana e ainda aos sete elementos capitais escolhidos pelo autor. La femme 100 têtes alude - sob a forma do “jeu de mots” sinalizando a ambiguidade entre a ausência e a multiplicidade - à personagem que atravessa e protagoniza a sequência narrativa. Se, como vimos, A pintura em pânico não constitui uma narrativa e cada fotomontagem funciona como uma unidade autônoma, será preciso estabelecer de outro modo a relação entre o título e o conjunto das fotomontagens. Murilo Mendes, na “Nota liminar”, abre um caminho à interpretação do título, quando diz: “O pânico é muitas vezes necessário para se chegar à organização.” Pouco antes, ao abrir esta “Nota”, Murilo Mendes registrava o princípio de composição das fotomontagens (e o seu precursor literário): “O conselho veio de Rimbaud: desarticular os elementos.” E em seguida, complementava dialeticamente: “Em última análise, essa desarticulação dos elementos resulta em articulação.” (MENDES, Murilo: 1943, s. p.). O pânico, portanto, parece coincidir, enquanto imagem anímica, com esta desarticulação dos elementos. Sabe-se, por outro lado, que este título retoma, modificando-o, o título do livro de poemas A poesia em pânico (1936-1937) de Murilo Mendes, cuja primeira edição trazia estampada na capa a fotomontagem de mesmo título de Jorge de Lima. Ora - diferentemente do livro de poemas de Murilo, em que o objeto da desarticulação é a própria poesia - no livro de fotomontagens de Jorge de Lima o objeto da desarticulação (/rearticulação) não é exatamente a pintura mas basicamente gravuras e fotos reproduzidas em revistas, ou seja: imagens por natureza reprodutíveis que constituem meios de expressão cujo estatuto artístico é considerado tradicionalmente inferior ao da pintura. Caberia então perguntar - admitindo já uma ambiguidade no título e em uma chave de leitura diversa da de Murilo Mendes - se o pânico da pintura não viria da aparente facilidade material e técnica, mas não necessariamente inferior qualidade artística do novo meio de expressão (como ironicamente parece comprovar o próprio caso do artista Jorge de Lima).


A3) A “NOTA LIMINAR” DE MURILO MENDES | Não podemos, enfim, deixar de considerar como parte orgânica deste livro o conjunto de aforismas com que Murilo Mendes abre e, de algum modo, orienta a “leitura” das fotomontagens. Sabe-se que Jorge de Lima e Murilo Mendes foram parceiros na autoria do livro de poemas Tempo e eternidade (1935), mesmo se posteriormente os poemas foram discriminados e sua autoria individual, restituída (cf. ANDRADE, Fábio de S.: 1997, p. 35-36). Em A pintura em pânico, no entanto, a colaboração respeita a individualidade de cada um dos dois autores, que se exprimem em dois gêneros claramente diferenciados em que cada um dos dois poetas se “especializaria”: as fotomontagens de Jorge de Lima e a crítica de arte de Murilo Mendes [5]. É certo que neste livro o conjunto das fotomontagens parece sem dúvida preceder, em estatuto e cronologia, o que seria apenas um comentário crítico posterior à obra de arte propriamente dita. Mas, neste caso, dada a alta qualidade poética desta prosa crítica, talvez devessemos desconfiar da hierarquia tradicional dos gêneros e reconhecer, por um instante, a possibilidade da crítica aceder ao estatuto de obra de arte. A qualidade artística da crítica, coincidindo com o seu poder de iluminar o objeto, é índice também da sua empatia ou identificação com ele. Como já foi observado por Murilo Marcondes de Moura, esta nota liminar “fornece informações muito claras sobre a importância” da técnica da fotomontagem para a poesia do próprio Murilo Mendes (cf. MOURA, Murilo Marcondes de: 1995, p.29) [6], ou seja: ela funciona, em certos aspectos decisivos, como uma espécie de poética travestida do próprio autor e pode, assim, semelhantemente às legendas de Max Ernst, ganhar autonomia em relação às fotomontagens de Jorge de Lima. No plano maior do livro, a unidade final seria, pois, resultado de uma colagem entre dois autores e também entre dois gêneros díspares : as fotomontagens de Jorge de Lima e o texto crítico de Murilo Mendes. Este último, incorporado hoje definitivamente à obra, operaria como uma macro e multifacetada legenda para o conjunto, ele também múltiplo, das fotomontagens.

B) A COLAGEM COMO PROCEDIMENTO POÉTICO EM A TÚNICA INCONSÚTIL | Jorge de Lima disse em 1945 sobre sua pintura: “Já disse e repito: minha pintura, deficiente, imperfeita, autodidata é tão-somente um complemento de minha poesia.” (LIMA, Jorge de: 1958, p.79). Menos do que o provável acerto desta avaliação, o que gostaríamos de notar é que as fotomontagens - surpreendente exceção na obra plástica de Jorge de Lima - não foram aí citadas. Curiosamente elas não só mantêm uma estatura estética autônoma e independente de sua poesia, como podem ser consideradas como um experimento que, longe de ser “tão-somente um complemento”, forneceu à poesia limiana um princípio fundamental de construção da imagem: a montagem (ou, categoria mais ampla, a colagem). O estudo deste procedimento na poesia de Jorge de Lima pode certamente tirar partido de uma investigação dos princípios construtivos das fotomontagens, mas talvez seja possível também, a partir do estudo da montagem da imagem poética limiana, iluminar retrospectivamente algo da poética e da visão de mundo limianas presente também nas fotomontagens.
Para esta breve tentativa será feita a escolha de um momento da poesia de Jorge de Lima contemporâneo às suas primeiras experiências com fotomontagens: A Túnica Inconsútil (1938), mesmo que a colagem continue a operar na construção da imagem poética em obras finais como o Livro dos Sonetos (1949) e A Invenção de Orfeu (1952). Tal escolha se dá primeiramente pela intrínseca afinidade entre o objeto literário e o plástico comparados, mas também para lembrar a grandeza poética de A Túnica Inconsútil, apressada e taxativamente desqualificada por Mário Faustino ou - em uma perspectiva mais justa e generosa como a de Fábio de Souza Andrade - considerada apenas como momento de transição em um processo evolutivo (cuja teleologia mereceria ainda ser melhor discutida) que culminaria n’A Invenção de Orfeu [7]. Mas também neste livro - cuja unidade complexa é composta por uma multiplicidade diferenciada de poemas - focaremos por necessidade tática apenas um poema, do qual alguns elementos serão, porém, em seguida, relacionados com os de outros poemas deste mesmo livro. O poema focado - e cuja exemplaridade imagética é atestada pela atenção tanto de Mário de Andrade quanto de Fábio de Souza Andrade (cf. ANDRADE, Mário de: 1958, p. 420-421 e ANDRADE, Fábio de S.: 1997, p. 69-79) - é “O grande desastre aéreo de ontem” (coincidentemente dedicado a um pintor: Portinari) que passo a citar na íntegra:
“Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor para a noiva, abraçado com a hélice. E o violinista em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua cabeleira negra e seu estradivárius. Há mãos e pernas de dançarinas arremessadas na explosão. Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande Reconhecedor. Vejo sangue no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelos poetas mártires. Vejo a nadadora belíssima, no seu último salto de banhista, mais rápida porque vem sem vida. Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas, como se dançassem ainda. E vejo a louca abraçada ao ramalhete de rosas que ela pensou ser o pára-quedas e a prima-dona com a longa cauda de lantejoulas riscando o céu como um cometa. E o sino que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados pelos pobres mortos. Presumo que a moça adormecida na cabine ainda vem dormindo, tão tranquila e cega! Ó amigos, o paralítico vem com extrema rapidez, vem como uma estrela cadente, vem com as pernas do vento. Chove sangue sobre as nuvens de Deus. E há poetas míopes que pensam que é o arrebol!” (LIMA, Jorge de: 1958, p.446).
Que nos seja suficiente aqui indicar, sem retomar em detalhe, o comentário pertinente de Fábio de S. Andrade ao apontar no poema o acúmulo de “imagens insólitas”, os “reconhecíveis ecos chagallianos” e “a ênfase no sujeito” (explicitada na recorrência do verbo “vejo”) como aquele que estabelece “pontes simbólicas que evidenciam semelhanças entre dois objetos ou seres não-conaturais, criando sistemas de relações analógicas não correntes ou recriando as legadas pela tradição.” (ANDRADE, Fábio de S.: 1997, p. 73 e 74). E é justamente em uma tradição fundadora da modernidade no Ocidente: a romântica (cf. “a doutrina baudelairiana das correspondências”) que Fábio de S. Andrade inscreve, na sequência, a imagem poética limiana, quando cita a seguinte proposição de Cecil Day Lewis: “A relação sendo a própria natureza da metáfora, se acreditamos que o universo é um corpo no qual todos os homens e todas as coisas são parte uns dos outros, temos que admitir que cada metáfora oferece uma intuição parcial do mundo todo. Toda imagem poética, diria, na medida em que revela com clareza uma minúscula porção deste corpo, sugere sua extensão infinita. (cf. Cecil Day Lewis. The Poetic Image. London, Jonathan Cape, 1968, p.29 in ANDRADE , Fábio de S.: 1997, p.75). Mas para determinar a especificidade moderna da imagem poética limiana é necessário precisar melhor que tipo de relação entre quais tipos de elementos será formadora de uma nova unidade (assim como em quê consiste esta novidade). Fábio de S. Andrade se aproxima bem desta definição ao sugerir que em “O Grande Desastre Aéreo de Ontem” a novidade “está na apropriação poética de um elemento pouco convencional, o avião, e sua associação indissolúvel a um motivo clássico, um tópos (o fim do dia vinculado ao fim da vida). O mais moderno e o arcaico se combinam de maneira insólita e há aparente incongruência. A tranquilidade e graça das bailarinas, a beleza da nadadora chocam-se com os corpos grotescamente desfeitos em mãos e pernas e a chuva de sangue.” (ANDRADE, Fábio de S.: 1997, p. 77-78). Na sequência - ao lembrar da proposição de Day Lewis de que “a imagem busca aproximar, coligar realidades distantes” - Fábio de S. Andrade precisará: “Ora, tem-se a impressão de que menos do que a confluência de sentidos análogos, assistimos à produção de um sentido novo pela colisão de imagens que brigam entre si para assumir o primeiro plano.” (ANDRADE, Fábio de S.: 1997, p.78).
A combinação insólita e aparentemente incongruente do mais moderno e do arcaico - exemplificada pela associação de um elemento moderno, o avião, com um tópos tradicional, o fim do dia vinculado ao fim da vida - assim como a produção de um sentido novo pela colisão de imagens lembram evidentemente, ainda que Fábio de S. Andrade não o nomeie, o processo de composição das fotomontagens tal como se depreende da seguinte definição de colagem por Marx Ernst: “(...) a exploração do encontro fortuito de duas realidades distintas em um plano não pertinente (...)ou, para usar um termo mais curto, a cultura dos efeitos de um estranhamento sistemático (...).” (ERNST, Max: 1970, p. 253 e 254). À qual deveríamos ainda acrescentar esta outra e complementar definição do mesmo Max Ernst: “Poder-se-ia definir a colagem como um composto alquímico de dois ou vários elementos heterogêneos, resultando de sua aproximação inesperada, devida, seja a uma vontade dirigida (...) para a confusão sistemática e o desregramento de todos os sentidos (Rimbaud), seja ao acaso ou a uma vontade favorizando o acaso.” (ERNST, Max: 1970, p.262). Poderíamos talvez, sem forçar em demasia nosso objeto, substituir não só o contexto não-pertinente: “uma mesa de dissecação”, quanto os elementos díspares ou heterogêneos que sobre ela se juntam fortuitamente: “uma máquina de costura” e “um guarda-chuva” (celebrizados na concisa definição-exemplo de Lautréamont) pelo encontro fortuito no ar de uma multiplicidade díspar de fragmentos de seres (que estranhamente já não são) e objetos (cada unidade, por sua vez, podendo se constituir pela junção de elementos díspares) produzidos pela explosão de um avião. A paráfrase da colagem de fragmentos que constitui a macro-imagem do evento descrito (o desastre aéreo) soaria assim: encontro fortuito - no ar - do “piloto, que levava uma flor para a noiva, abraçado com a hélice” e do “violinista, em que a morte acentuou a palidez”, “despenhando-se com sua cabeleira negra e seu estradivárius” e das “mãos e pernas de dançarinas arremessadas na explosão” e da “nadadora belíssima, no seu último salto de banhista, mais rápida porque vem sem vida” e de “três meninas caindo rápidas, enfunadas, como se dançassem ainda” e da “louca abraçada ao ramalhete de rosas que ela pensou ser o pára-quedas” e da “prima-dona com a longa cauda de lantejoulas riscando o céu como um cometa” e do “sino que ia para uma capela do oeste” e vem “dobrando finados pelos pobres mortos” e da moça adormecida na cabine”, que “ainda vem dormindo, tão tranquila e cega!” e do “paralítico” que “vem com extrema rapidez, vem como uma estrela cadente, vem com as pernas do vento” e - último e primeiro elemento que quase se confunde com o ar enquanto contexto deslocado e vermelho que os poetas míopes vêem equivocadamente como o pôr-do-sol - do “sangue” que “chove sobre as nuvens de Deus”.
A unidade primeira, o avião, foi desagregada por um acidente (uma explosão), e os múltiplos fragmentos daí resultantes combinam-se de maneiras inesperadas em um contexto a princípio inapropriado - o ar livre e desprotegido - para formar por um acúmulo de justaposições fortuitas uma nova e insólita “unidade”. Mas nem a unidade anterior, nem o evento enquanto tal, apesar de indicados no título, são descritos no poema-imagem, que é composto, como uma fotomontagem, pela junção sucessiva mas não temporalizada de múltiplos fragmentos díspares. Apesar de nenhuma fotomontagem de A pintura em pânico representar ou tematizar um grande desastre aéreo, pode-se encontrar aí um efeito análogo de estranhamento produzido por uma unidade aparentemente desconexa e heteróclita composta pela justaposição casual de múltiplos elementos díspares em “As catacumbas marinhas contra o despotismo” e em “Ah, fui precipitado quando quis fundir as coisas numa só!”. Os movimentos sugeridos pelo poema seriam, porém, melhor representados pela vertiginosa sucessão fílmica de fotogramas e poderíamos mais contemporaneamente nos lembrar - guardadas as óbvias diferenças de contexto - de uma plasticidade análoga ao do poema de Jorge de Lima na cena final de explosão interna da casa no filme Zabriskie Point de Michelangelo Antonioni.
O efeito de estranhamento é resultado - e focaremos agora um elemento seu essencial - do fortuito ou inesperado do encontro entre dois ou vários elementos heterogêneos num plano não-pertinente. Enquanto procedimento artístico a colagem (ou uma de suas modalidades: a fotomontagem) pressupõe, portanto, o acaso ou o imprevisto ou a contingência (a possibilidade de que as coisas sejam de outra maneira). Mas no poema “O grande desastre aéreo de ontem” o fortuito está não somente na justaposição continuada de vários fragmentos díspares, mas também no evento tematizado no título e descrito apenas em suas consequências funestas imediatas: o desastre, que implica a noção de acidente (mesmo que não se saiba qual) e é atravessado pela morte. É em outro poema d’A Túnica Inconsútil, “E tudo é imprevisto”, que o fortuito é problematizado de maneira direta. A afirmação contida no título - concisa como uma máxima - é desdobrada (após exemplos religiosos com explícito conteúdo judaico-cristão) na seguinte proposição: “(...) nenhuma estação, nem nenhum clima, nem nenhuma pessoa, /nem nenhum rei, nem nenhuma pedra tem certeza de nada; / pois tudo é viajante e tudo é sombra sobre a planície deserta.” A única certeza possível é a da própria incerteza que tem como dados indetermináveis tanto o tempo (“tudo é viajante”) quanto a morte: “Muitos morrerão como o infeliz Acab, / outros tirarão a existência, sob os olhos de Deus, / e todos serão arrebatados pela grande Mão.” Neste reino de indeterminação que é a existência humana mortal e individuada, “só a linguagem da contradição, / no decorrer dos anos tem sentido e é poesia (...)” e o poeta é descrito como um eleito com os seguintes e contraditórios caracteres: “(...) um homem exaltado e abatido, / um homem amado e desprezado ao mesmo tempo, / um homem escarnecido e louvado, em contínuo solilóquio, / um homem que não acampou em parte alguma lhe havendo Deus dado tudo.” (LIMA, Jorge de: 1958, p. 465-466).
A imagem do poeta como unidade realizada através das contradições já está presente no poema de abertura d’A Túnica Inconsútil na figura do cristão: “(...) sou tentado e perdoado, sou derrubado no chão e glorificado (...), sou burríssimo como São Cristóvão, e sapientíssimo como São Tomás.” Esta imagem - que aí se complexifica e alarga [“(...) ressuscito na boca dos tigres, sou palhaço, sou alfa e ômega, peixe, cordeiro, comedor de gafanhotos, sou ridículo (...)”] - exemplifica minimamente a proposição mais geral da unidade na multiplicidade encontrável consonantemente no mundo e, mais particularmente, na relação do poeta (/ homem religioso) com todos os outros entes e seres: “Os milênios passados e os futuros/ não me aturdem porque nasço e nascerei, / porque sou uno com todas as coisas/ que eu decomponho e absorvo com os sentidos / e compreendo com a inteligência / transfigurada em Cristo. / (...) Sou ubíquo: estou em Deus e na matéria (...).” (LIMA, Jorge de: 1958, p. 425-426). O próprio título do livro traz esta proposição condensada na imagem d’a túnica inconsútil. Pois como lembra Roger Bastide: “A túnica é o largo e amplo vestuário do mundo, mas sem costura. Quer dizer que o poeta poderá continuar muito bem no mundo da multiplicidade, mas abolindo as fronteiras que separam os objetos para reencontrar assim, por meio de subterfúgio indireto, a unidade essencial das coisas.” (BASTIDE, Roger: 1997, p. 125 e 126). Roger Bastide tenta, na sequência deste ensaio, indicar os meios que constituem este subterfúgio, ainda que o “inefável” - objeto desta busca poética - deixe de ser nomeado como a englobante “unidade essencial das coisas” e se parcialize, em uma não-limiana abstração “das realidades experimentais”, como “realidades espirituais” ou “mundo sobrenatural”. Ele cita dois meios (que realizam este subterfúgio): “a constituição de mitos” e “a criação de imagens analógicas”, e se detém, em seguida, neste último, exemplificando-o assim: “Um dos processos empregados por Jorge de Lima é o da transposição dos sentidos. Ou, mais exatamente, de função. Ou, se preferirmos, de associação de idéias. Um objeto se apresenta em seus versos associado com outros objetos; mas a visão do poeta o dissocia desses objetos concretos aos quais ele está ligado para associá-lo com outros, então invisíveis; assim o objeto muda de função e de sentido.” (BASTIDE, Roger: 1997, p. 127) Ora, esta dissociação de um objeto de seu contexto esperado para ser associado com outros e não-familiares objetos em um contexto em princípio inadequado - gerando, então, por transposição, uma função e um sentido novos - poderia ser uma outra formulação (em que nem todos os elementos ernstianos estão explicitados) do procedimento da colagem.
Mas se retornamos ao último versículo do poema “E tudo é imprevisto” [“um homem que não acampou em parte alguma lhe havendo Deus dado tudo”], torna-se evidente a presença na figura do poeta de um elemento - atravessado pela mortalidade - de perturbação e não-repouso, elemento que se descola, criando outra contradição, da proposição da unidade na multiplicidade como “solução” para a “crise metafísica” de Jorge de Lima. (cf. BASTIDE, Roger: 1997, p.125). Um outro poema, cujo tema central é precisamente “A vida incomum do poeta”, é concluído com um perfil desencantado em que este, limitado pela individuação, aparece esvaziado do êxtase da revelação da participação na unidade que coliga os múltiplos entes e seres: “Nada conseguiu, nada o contentou. / Nasceu só, viveu só, vai morrer só. / Então caminha para a morte / sem surpresa nenhuma, / sem saudade nenhuma / e também sem recompensa nenhuma.” (LIMA, Jorge de: 1958, p. 456). A mutilação é uma formulação (ou imagem) limiana da separação - pela individuação e a mortalidade - da unidade primeira que, no entanto, ainda pode ser pressentida na conexão entre os órgãos sensoriais/intelectivos do indivíduo e um mundo cujo mistério permanece. Esta tensa justaposição ou colagem - sem solução metafísica - destas duas proposições contraditórias é o que de algum modo estrutura um poema como “O desespero diante da mutilação” em cujo começo lemos: “Os meus pés são continuados no barro primitivo, na frialdade de minha sepultura. / Os meus olhos são continuados no azul do longínquo e do profundo. / Os meus ouvidos são continuados nos lamentos passados e futuros do mundo. / A minha palavra é continuada pelas perguntas que não têm resposta. / Mas não sei onde estão as asas que prolongavam os meus braços / nem a eternidade que prolongava a minha vida.” A conclusão do poema - onde avulta a idéia da vida mortal individuada enquanto mutilação - também é paradoxal: “E quando penso que sou um ser hierático limitado e embalsamado na morte, / a mão de meu espírito toca a mão direita do Eterno e me encontro de novo. / Culpo os que me mutilaram na eternidade / e me obrigam à reconstituição contra leis inexoráveis, / e com o seu primeiro e único duplo-suicídio, / poderiam ter evitado a minha presença na vida.” (LIMA, Jorge de: 1958, p. 458). Uma imagem análoga à da mutilação pode ser encontrada no poema “Os gestos”: “Irmão, crede: nós todos somos estrangeiros, neste mundo, / e a nossa pátria é a d’Ele de que fomos exilados.” (LIMA, Jorge de: 1958, p.474). Não será, pois, surpreendente se para esta negatividade radical a morte aparecer como único meio de restituição total à divindade ou à unidade originária. O poema “Restituo-me” constitui, todo ele (e os versos que não citarei são precisamente os mais belos), uma imagem desta proposição: “Estende a Tua mão, agora, que ninguém notará: / sem desespero e sem mágoa me restituirei à Ti. / (...) Estende a tua imensa Mão e ninguém notará / que entre milhares de homens, / um Elias anônimo, sem função no teu reino / desapareceu para sempre / sufocado de pó, sobre um tufão de cinzas.” (LIMA, Jorge de: 1958, p. 461). A unidade, a que a morte daria acesso, é nomeada apenas no poema “A morte da louca” em que imagens insólitas sugerem, no modo interrogativo, a dissolução do indivíduo morto em elementos que compõem o mundo fenomênico: “Onde andarás, louca, dentro da tempestade? / És tu que ris, louca? / Ou será a ventania ou algum pássaro desconhecido? / Boiarás em algum rio, nua, coroada de flores? / Ou no mar as medusas e as estrelas palparão os teus seios e tuas coxas? / (....) Algum cão lamberá os teus olhos que ninguém se lembrou de beijar? / Ou conversarás com a ventania como se conversasses com tua irmã mais velha? / (...) Se estás morta, começaste a viver, louca! / Se estás mutilada, começaste a ser recomposta na grande Unidade!” (LIMA, Jorge de: 1958, p. 444-445).
Fábio de S. Andrade observa que no livro Tempo e Eternidade, de que são co-autores Jorge de Lima e Murilo Mendes, “há o registro de duas aproximações diferentes e complementares a um mesmo tema. Os textos de Jorge de Lima tendem a condensar imagens que falem do poder angustiante da passagem do tempo, confrontando o presente ao absoluto implicado na idéia do Juízo Final, enquanto Murilo Mendes preocupa-se mais com a idéia complementar, a perspectiva mítica da reconciliação do homem com o universo e com o criador.” (ANDRADE, Fábio de S.: 1997, p. 42-43). Em A Túnica Inconsútil estas duas aproximações diferenciadas se tornam vertentes simultâneas e contraditórias de um único e múltiplo poeta: Jorge de Lima. Ao comentar a visão que tende a ganhar terreno na obra poética de Jorge de Lima após Tempo e Eternidade, Fábio de S. Andrade não sem razão diz: “Trata-se de uma visão em que a perspectiva da remissão consoladora é vista a contrapelo, como ausência de reconciliação no horizonte próximo, que se condensa em medo e angústia, na ‘noite que se abateu sobre os homens’ ”. (ANDRADE, Fábio de S.: 1997, p.44). Mas, ao falar do que particulariza Murilo Mendes em relação a Jorge de Lima, Fábio de S. Andrade usa termos que se aplicariam perfeitamente a uma das vertentes limianas em A Túnica Inconsútil: “(...) a morte, sob o crivo de suas imagens”, “apresenta-se como volta às origens, paraíso recuperado, libertação, que não quer dizer renúncia passível a um mundo irrecuperável, mas radical intervenção salvadora nele próprio (...).”(ANDRADE, Fábio de S.: 1997, p.44).

NOTAS
[1] “Quando e onde aparece a colagem? Creio que - apesar das tentativas de vários dadaístas - é preciso quanto a isto homenagear Max Ernst, ao menos no que diz respeito às formas da colagem que estão mais distanciadas do princípio do papel colado: a colagem fotográfica e a colagem de ilustrações.” (Aragon, La Peinture au défi in ERNST, Max: 1970, p. 252) As traduções, provisórias, de textos em francês são de minha autoria.
[2] Cf. a advertência de Max Ernst quanto à sua primeira exposição de collages em que a maioria era composta não por meio de “collage-découpage”, mas de “collage-frottage” onde um lápis intervinha. (ERNST, Max: 1970, p. 257-258).
[3] Exemplo irônico: “A cabeça de Salvador Dali serve-se bem fria, bigodes inclusive com vinagre e conhaque, numa bandeja guarnecida de dólares.” (MENDES, Murilo: 1995, p. 249).
[4] Seria ocasião aqui para agradecer a atenção e gentileza de Márcia Arbex não apenas no empréstimo de livros pouco óbvios mas também na interlocução inteligente.
[5] Ainda que Murilo Mendes tenha no início também tentado recortar e colar imagens: “Começamos juntos o trabalho. Mas dentro em breve ele ficava sozinho. O anti-técnico abandonava o técnico.” (MENDES, Murilo: 1943, s. p.).
[6] Apesar de me referir aqui apenas brevemente ao estudo de Murilo Marcondes de Moura, gostaria de marcar que o presente ensaio deve muito às formulações contidas no seu subcapítulo I.2. “Os procedimentos combinatórios” assim como à generosa interlocução direta com o autor.
[7] Mário Faustino diz: Nesse constante mas negligente mirar, por parte de Jorge, de um alvo longínquo e impreciso, o livro é daqueles em que o poeta menos acerta. E ainda: “Os poemas de A Túnica Inconsútilsão, em geral, a descentração, a Anti-Dichtung, a Não-Poesia por excelência.” (FAUSTINO, Mário: 1976, p. 224 e 226). Fábio de Souza Andrade tratando do Livro de Sonetos, diz o seguinte: “A poesia de Jorge de Lima valorizou num primeiro momento a clareza mimética das imagens, paralelamente a um alargamento dos assuntos poéticos em direção ao cotidiano e o regional, mas progressivamente encaminhou-se para a metáfora compósita, mesclada e intrincada . O livro de transição, A Túnica Inconsútil, bem como o seguinte, Anunciação e Encontro de Mira-Celi, apontam para o predomínio do segundo caminho.” (ANDRADE, Fábio de S.: 1997, p.111).


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TEODORO RENNÓ ASSUNÇÃO. Ensaísta. Autor de livros como Extra-vacâncias (2008) e Ociografias (2016). Página ilustrada com obras de Juliana Hoofmann (Brasil, 1965), artista convidada desta edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 119 | Setembro de 2018
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