quarta-feira, 19 de setembro de 2018

RUBENS FERNANDES JUNIOR | As fotomontagens de Jorge de Lima



Na historia da fotografia brasileira temos algumas experiências isoladas que merecem nossa atenção. Na maioria das vezes, são iniciativas que adquiriram importância por estarem desconectadas do fluxo sequencial da linguagem ou por se tornarem demonstração de interesses particulares de artistas mais inquietos que foram atraídos por alguns aspectos inusitados do fazer fotográfico. Um desses artistas é Jorge de Lima (1893 – 1953), alagoano, médico, romancista, poeta, pintor (esteve na I Bienal de São Paulo, em 1951) e que, por um curto período, também trabalhou com a fotografia.
Mas não foi fotógrafo. Jorge de Lima produziu algumas fotomontagens, no final da década de 1930, que se tornaram públicas através de uma crônica de Mario de Andrade no Suplemento de Rotogravura do jornal O Estado de São Paulo, na primeira quinzena de novembro de 1939. Vale lembrar que as onze fotomontagens que foram enviadas a Mario de Andrade pertencem hoje ao arquivo do IEB – Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.
Mais tarde, em março de 1943, Jorge de Lima publicou o livro A Pintura em Pânico (em única edição, com 41 fotomontagens, tiragem de 250 exemplares, numerados e assinados), hoje raríssimo e completamente esquecido na cronologia da fotografia brasileira. Seus poemas e suas fotomontagens remetiam às experiências mais radicais das vanguardas europeias, tanto que, no livro, a apresentação de seu parceiro Murilo Mendes (1901 – 1975) destaca a total sintonia com os trabalhos de Max Ernst, Salvador Dali, entre outros. Jorge de Lima, sabemos, já tinha lido Freud na segunda metade da década de 1920, e conhecia os principais artistas do movimento surrealista.




A visão de simultaneidade e aparente desconexão trazida pela fotomontagem é fruto direto das experiências iniciadas com as colagens cubistas de Braque e Picasso, mais tarde ampliadas pelo futurismo italiano e pelo dadaísmo. Aliás, é no dadaísmo que a denominação fotomontagem se instaura e ganha ressonância. Ressaltamos que foi nas primeiras décadas do século XX que ocorre a explosão da imagem, seja através dos jornais e das revistas ilustradas, seja no cinema com as experiências de Dziga Vertov, Sergei Eisenstein e Walter Ruttman, seja no texto literário fragmentado de Berlin Alexanderplatz, de Alfred Doblin. É neste contexto – de intensidades e justaposições, de velocidade de produção e circulação de imagens – que a fotomontagem emerge com a difícil tarefa de articular a complexa compreensão entre arte, cultura de massa e cotidiano.
A fotomontagem traz uma explosão de pontos de vista, estabelece insólitas relações de luz e sombra, de oposições formais, variabilidade de texturas, e caracteriza-se pela harmonia ou pelo inesperado das imagens associadas. Tudo isso a aproxima dos enigmas perturbadores dos nossos sonhos, presente também nas imagens de Jorge de Lima, onde é possível encontrar uma organização formal em que é perceptível as diferentes texturas, o desenho da luz e uma narrativa onírica e misteriosa.


Mario de Andrade, no texto “Fantasias de um Poeta”, publicado no Suplemento de Rotogravura, afirmava a partir das imagens enviadas pelo amigo poeta que “a fotomontagem parece brincadeira, a princípio. Consiste apenas na gente se munir de um bom número de revistas e livros com fotografias, recortar figuras, e reorganizá-las numa composição nova, que a gente fotografa ou manda fotografar. A princípio as criações nascem bisonhas, mecânicas e mal inventadas. Mas aos poucos o espírito começa a trabalhar com maior facilidade, a imaginação criadora apanha com rapidez, na coleção de fotografias recortadas, os documentos capazes de se coordenar num todo fantástico e sugestivo. (…) em vez de uma pura brincadeira de passatempo, estamos diante de uma verdadeira arte, de um meio novo de expressão!”.
Mesmo que tardias, as fotomontagens de Jorge de Lima são de enorme importância para entendermos o percurso da nossa fotografia, já que devemos incorporar essas experiências inesperadas e nem sempre totalmente conhecidas. O fato de ser escritor, poeta e pintor, valorizar a relação vida-poesia-sonho, ter conexões com os modernistas, em particular os paulistas, estar atento aos movimentos da arte, e produzir imagens de toda ordem é que caracteriza este seu interesse em particular. Murilo Mendes, na introdução do livro A Pintura em Pânico destaca este seu trabalho afirmando que nele “há uma combinação do imprevisto com a lógica. E a fotografia tem ajudado o homem a alargar sua experiência da visão”.
Se considerarmos o procedimento – basicamente por apropriação de fotografias publicadas em veículos de grande circulação – podemos entender alguns trabalhos posteriores que pontuam ainda hoje a arte contemporânea. Isso apenas denota o caráter revolucionário da fotomontagem, que buscava, do ponto de vista óptico e do conteúdo, criar uma imagem diferenciada, distante dos automatismos maquínicos, e estabelecer novas visualidades a partir do caos da época.
Curiosamente, por outro lado, é interessante verificar como a denominação fotomontagem era explicada por Raoul Hausmann (1886 – 1971), um dos nomes mais importantes do movimento Dada: “chamamos a este processo de fotomontagem porque ele continha a nossa aversão a fazer o papel de artistas. Considerávamo-nos engenheiros, nossa intenção era construir, ‘montar’ o nosso trabalho (como um serralheiro). A partir de 1918, assumiam com a fotomontagem um papel transgressor na atividade questionadora de produzir imagens que buscavam desmascarar o sistema dominante.
Jorge de Lima não nos deixou maiores informações sobre suas fotomontagens. O que teria pretendido o poeta com suas colagens? Além de homenagear suas “Musas”, tema recorrente em sua obra literária, ele explora o onírico e o inusitado a partir da disparidade dos elementos visuais justapostos que enfatizam sua intencional narrativa surrealista. Ao aprofundarmos nosso olhar sobre suas fotomontagens, podemos até ser surpreendidos por algum detalhe que escapou da nossa visão, mas continua o mistério de uma obra que não podemos ignorar na cronologia da fotografia brasileira.


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RUBENS FERNANDES JUNIOR.  Jornalista, curador e crítico de fotografia, doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, professor e diretor da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Facom-FAAP). Página ilustrada com obras de Juliana Hoofmann (Brasil, 1965), artista convidada desta edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 119 | Setembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES





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