Multiplicidade de vozes dramáticas,
amplitude de visão e enquadramento, apelo sacramental e mítico, diversidade vertiginosa
de motivos e formas, mergulho na paisagem ancestral da memória, história da literatura
plasmada pela consciência poética, biografia total, narrativa cósmica, reminiscências
da Queda e procissão de mártires sobre a Terra, sagração da vida comum e divinização
da arte, itinerário imaginado e factual de viagens e descobertas, murmúrios de personagens
célebres e resíduos de antepassados, gnose integral, demiurgia em delírio, febre,
sonho, alucinação a serviço da maquinaria de um engenheiro noturno, amor, morte
e transfiguração.
Estes
são alguns dos epítetos que poderíamos apor à poesia de Jorge de Lima, doravante
referidos à sua obra maior e mais conhecida, Invenção de Orfeu, de 1952.
Como bem notou Murilo Mendes, em artigo publicado em três partes durante o mês de
junho do mesmo ano, no suplemento Letras e Artes do jornal carioca A Manhã,
essa fertilidade formal e metafísica da odisseia teológica de Jorge de Lima é consequência
da grande permeabilidade de sua voz poética a outras vozes. Isso, antes de se configurar
como uma crítica, é sim um elogio e uma virtude.
Demonstra
a elasticidade de sua dicção, capaz de dialogar com outros poetas, tradições e obras
criadas, incorporando-os a seu repertório imaginário. Essa característica, atípica
no panorama da poesia brasileira, será a base para a confecção deste gigantesco
afresco poético da história, de traço oblíquo e enviesado, de volumosos jogos de
luzes e sombras narrando a origem do mundo e do homem. Penso aqui nas obras magníficas
da escola de Siena do século XV, em Simone Martini, por exemplo, ou na sobreposição
de planos de Piranesi, misto de poeta-arquiteto e artesão dos meandros do imaginário.
O
mesmo Murilo chegou a definir a Invenção de Orfeu, com graça e leveza, como uma obra escrita pelo menino Lautréamont
depois de ter sido amamentado nos fartos seios da musa de Camões, Góngora, Tasso
e Marino. Isso quer dizer que sua inspiração fortemente cristã não se dissocia nunca
de certa abordagem da natureza decaída da humanidade. Mostra esta como sendo irreconciliável
com a pureza da origem divina que um dia lhe dimanou o ser, segundo Agostinho. Sendo
assim, perpassa toda a obra do poeta alagoano um duelo de forças centrífugas e centrípetas,
de impulso natural do caos ao cosmos e da matéria amorfa à lapidação das mãos do
artífice, que lhe dá forma e lhe insufla vida.
Esse
ritual de passagem pode ser visto alegoricamente como a batalha do Anjo contra as
forças ínferas, do herói contra o desconcerto do mundo e, tomado por antonomásia,
do próprio poeta contra a perda e o esvaziamento do humano em um mundo sem sentido,
tomando-se ares de uma espécie de autobiografia total, hipótese de leitura que pode
ser identificada nos próprios versos da obra. Já em termos poéticos, pode ser visto
como a ordenação que a palavra empresta ao mundo. Redimindo-o de seu estado de latência
e transitoriedade, eleva-o a uma dimensão externa à experiência onde os sentidos
se veem presos aos dados como um pássaro se sente preso ao próprio voo.
Com
isso, Jorge de Lima recupera uma vertente que, feitas algumas exceções, é até hoje
muito pouco cultivada no Brasil, em parte devido à hegemonia de uma linha interpretativa
com uma ausculta pouco desenvolvida para as relações produtivas entre ontologia
e poesia. Ou seja: Jorge de Lima instaura em língua portuguesa uma poesia de base
transcendental, em certo sentido na contracorrente da linhagem modernista que se
tornou hegemônica. Creio que esses dois aspectos centrais de sua obra, a maleabilidade
da voz que incorpora outras vozes e a radicalidade de uma ontologia transcendental,
são os principais motivos de uma série de erros interpretativos. Vejamos alguns
pontos.
É
sabida a dívida que a intelectualidade brasileira paga ao positivismo. Embora saibamos
da importância das ideias positivas para a construção da República, para formação
de um Estado laico e para o fim da escravidão, não deixa de ser intrigante ver um
poeta da altitude de Jorge de Lima se manter em um segundo plano, quase que em uma
zona de sombras da nossa tradição. Ainda mais se levarmos em conta que essa mesma
tradição é referendada por um conjunto de valores que ressaltam o diálogo produtivo
das artes com as matrizes culturais de etnias, culturas e povos minoritários.
Seja como forma de manifestação de Deus no mundo
ou entendendo a palavra como casa do ser, na acepção de Heidegger, a poesia nasce
do tempo e a ele retorna transfigurada. Talvez seja essa a sua magia: conseguir
brotar daquilo que lhe circunscreve, sendo tanto mais eterna quanto mais temporal.
Nesse sentido, a obra de Jorge de Lima, no bojo dos tempos e espaços sobrepostos
que mobiliza em si, ironicamente previu e erigiu a sua própria ressurreição.
RODRIGO PETRONIO. Escritor e filósofo. Professor
titular da FAAP, desenvolve pós-doutorado no Centro de Tecnologias da Inteligência
e Design Digital (TIDD|PUC-SP). Edição preparada por Floriano Martins. Agradecimentos
a todos os colaboradores, assim como a Juliana Hoffmann, artista convidada desta
edição.
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Agulha Revista de Cultura
Número 119 | Setembro de
2018
editor geral | FLORIANO MARTINS
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editor assistente | MÁRCIO
SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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