quarta-feira, 19 de setembro de 2018

MARCO LUCCHESI | O sistema Jorge de Lima



O fogo celeste queima-te o paladar

(Mira-Celi)

A obra de Jorge de Lima permanece robusta e poderosa como um penhasco na solidão incomparável de seu gênio. Pura altitude, como os céus de Goethe e os abismos de Dante, desafiando nossa condição de leitores borgianos, tocados pela sua poesia escandalosamente bela, tal como a considerou Mário de Andrade, que percebia em Jorge de Lima uma escassa invenção, infinitamente compensada por uma vasta imaginação, e que fazia dele “o caso mais apaixonante da poesia contemporânea do Brasil”.
Passados sessenta anos – Mário escreve em 1939 –, podemos insistir na perplexidade provocada por Invenção de Orfeu, tal como Os Lusíadas, de Camões, ou o Ulysses, de Joyce costumam provocar em sucessivas gerações de leitores, enquanto obras fortes, como diria Bloom. O incômodo confessado por Jung, diante de Ulysses, e o espanto de Murillo, diante de Invenção de Orfeu, permanecem na ordem do dia, embora saibamos hoje algumas coisas (somente duas ou três) que escaparam aos críticos de então, pois a contemporaneidade de uma obra está além da força contemporânea de seus leitores.
Sabemos hoje algo a respeito da influência e do intertexto, do deslocamento e da polifonia, praticada, muito embora, há séculos, pela Poesia Ocidental. Sabemos hoje algo a respeito dos bastidores de Invenção de Orfeu, como se opera a montagem e como se distribuem os níveis de significado. Sabemos algo a respeito da metáfora pura rimbaldiana e de seu espaço radical e simultâneo. Todavia, o resultado é ainda bastante limitado diante de uma obra inquietante como a de Jorge de Lima. O penhasco permanece acima de nós, com toda a sua força, poderosa e enigmática.
Entretanto, a poesia limiana não é feita apenas de montanhas e penhascos, mas também de ilhas e arquipélagos. Donde a unidade da obra de Jorge de Lima ter sido insistentemente discutida e reavaliada, como se daquele vasto oceano de símbolos, emergissem dois sistemas opostos de interpretação. De um lado, a tendência de se ressaltar negativamente a descontinuidade do processo criativo e da poesia de Jorge de Lima (embora os críticos deixem claro que de cada fase o poeta legou uma pequena obra-prima para as antologias), acusando-o sutilmente de seguir de perto as correntes que estavam em moda, para abandoná-las, tão-logo deixassem o cenário. Jorge de Lima, segundo essa tendência, ter-se-ia encontrado a si próprio, como poeta e criador, apenas em Invenção de Orfeu, considerada a acmé de sua expressão. Algo semelhante, pesadas as diferenças, ao que se repetia ad nauseam quando se comparava teologicamente a Vida nova com a Divina comédia, os Poemas, de Milton, com o Paraíso perdido, onde as linhas de força convergiam exclusivamente para o grande epos, em detrimento das obras consideradas menores. Dentre todos, Camões formava exceção.
Por outro lado, assistimos a outra tendência, que tenta demonstrar que o aparente descontínuo da superfície guarda surpreendente unidade temático-formal entre as partes, atrelando-as dentre as cogitações de sua ragion poetica, e que podia culminar (embora não necessariamente), em Invenção de Orfeu, coincidentia oppositorum, cujo centro seria habitado tanto por Poemas negros, quanto por Tempo e eternidade, pelo Mundo do menino impossível e por Anunciação e encontro de Mira-Celi. Como que todas as etapas se consolidassem no grande épico, de que todas seriam passagens brilhantes, ou momentos felizes, que poderiam resolver-se de modo generoso em Invenção de Orfeu.
No primeiro caso, poder-se-iam incluir, como os melhores representantes dessa corrente, ou seja, de que a poesia de Jorge de Lima fosse uma itinerância marcada por estações diversas e incomunicáveis entre si, Antônio Rangel Bandeira, para quem Jorge de Lima “passou a vida estreando”, ou, então, Massaud Moisés, que distingue o nosso autor, “no conjunto de sua geração, pela ciclotimia”, e o que mais estranha em sua obra

não é esse percurso, senão o abraçar novo tema sem estabelecer com anterior um nexo de continuidade; parece recomeçar a cada passo, à procura de seu autêntico rosto.

A argumentação de Massaud Moisés parece-nos bastante delicada (como demonstrou ser delicado o modelo dos ciclos na história do Brasil, como se nada ocorresse entre dois ciclos, por exemplo, entre a cana-de-açúcar e a mineração, entre esta e o café, gerando um vazio epocal abstrato), parece-nos delicada, íamos dizendo, a argumentação de Massaud Moisés, pois não compreendemos como um poeta da altitude de Jorge de Lima, fosse incapaz de promover um diálogo interno como o seu mundo, não elaborando um processo de vasocomunicação entre as partes.
Vejamos, por exemplo, o belo e injustamente esquecido estudo de Manuel Anselmo, ao sublinhar com inteligência, no primeiro terceto de “O acendedor de lampiões”,

uma atitude de solidariedade humana que não destoa daqueloutra que consta em seus poemas negros, por exemplo ‘Pai João’, e se continua, com intensidade, nas páginas do seu romance Calunga.

Nessa mesma direção, não dissociando a obra poética da romanesca, Luís Santa Cruz foi quem mais insistiu em compreender que as etapas de Jorge de Lima dependiam de uma poderosa unidade, como soube demonstrar com argumentos decisivos:

tanto na obra poética de Jorge de Lima, como em toda a sua criação literária, a palavra-chave que nos permite com ela devassar o segredo e o elo misterioso de sua cadeia criadora, é a mesma da obra de Georges Bernanos: a palavra ‘Infância’.

Para Santa Cruz, Jorge de Lima foi “um convertido de sua infância”, e buscou tais elementos, onde, aparentemente, desapareciam, como em Anunciação e encontro de Mira-Celi, ou no Livro de sonetos. As considerações de Santa Cruz a tal respeito parecem-nos definitivas, especialmente quando pensamos naquela fase horizontal limiana, descrita por Alfredo Bosi, como arraigada em seu catolicismo sincrético, sertanejo e santeiro, que havia de se tornar, mais tarde, generosamente metafísico. Ou, então, como bem disse Roger Bastide, em página antológica, os poemas de Jorge de Lima acusam a herança clara e aberta das tradições cristã e africana, num grau superior de combinação.
Mas foi, sem dúvida, Alfredo Bosi, em sua História concisa da literatura brasileira, quem melhor enfrentou a dimensão da unidade da obra de Jorge de Lima, ao afirmar que o sentimento do poeta,

embora organicamente lírico, isto é, enraizado na própria afetividade, mesmo quando aparente dispersar-se em notações pitorescas, em ritmos folclóricos, em glosas dos grandes clássicos. É importante ressalvar esse ponto, porque sem a sua inteligência poderiam soar gratuitas as mutações de tema e de forma que marcam a linguagem de Jorge de Lima, poeta sucessivamente regional, negro, bíblico e hermético”.

Pois é exatamente sob essa perspectiva que devemos absorver o impacto da obra de Jorge de Lima, tentando discutir, em outro lugar, a qualificação de hermetismo – considerada provisória pelo próprio Bosi. Interessa-nos agora tão-somente na questão da unidade, que nos parece a mais adequada e justa para compreender alguns aspectos que tocam sobretudo a epopeia limiana.
Invenção de Orfeu é o penhasco alto e profundo do sistema Jorge de Lima. Diante disso, permanece válida a observação de Murillo Mendes acerca da necessidade de uma equipe de exegetas para estudar e comentar Invenção de Orfeu.
Tal esforço vem ocorrendo, como não poderia deixar de ser, através de escassas e bem-sucedidas incursões monográficas, como as de Gilberto de Mendonça Telles, no livro Camões e a poesia brasileira, onde Jorge de Lima aparece nas variantes épica e lírica; ou, então, como o estudo réussi de César Leal, “Universalidade de Jorge de Lima”, em que são indicadas inúmeras cogitações dantescas, de ordem formal: quando analisa, por exemplo, o verso “Alguém em flor, Alguém em dor, Alguém” onde a santíssima trindade comparece nesse decassílabo perfeito, além das rimas em al, or, em e guém, a demonstrar a igualdade das pessoas, como ocorre no “Paraíso” 33, de Dante.
Contudo, livro que marcou época foi, sem dúvida, Montagem em Invenção de Orfeu, de Luís Busatto, onde, partindo da sugestão de Murillo Mendes, sob a abordagem de Eisenstein e Kristeva, Busatto elaborou uma rede clássica de remissões e alusões, deslocamentos e descentramentos fundamentais em Invenção de Orfeu, a partir da Eneida e da Divina comédia (através de Odorico Mendes e Xavier Pinheiro) e sobretudo de Camões, emblema fulcral da nova epopeia. Outras abordagens poderiam mostrar mais de perto novos credores como Rimbaud e Mallarmé, quanto à dimensão do intertexto e das formas plurais do significante. Mesmo assim, Luís Busatto deu-nos diversas incursões palimpsésticas, demarcando signos, rimas e anáforas, deslocados para um novo endereço literário, cada um dos quais em forma de ruínas ou de corpos inteiros, como demonstrou, em outra esfera, Cláudio Murillo Leal, em recente dissertação na Letras da UFRJ.
O próprio Cláudio Murillo e Luís Busatto disseram coisas essenciais e bem fundamentadas sobre Invenção de Orfeu, ao mesmo tempo em que parecem eliminar indiretamente dois excessos do brilhante João Gaspar Simões: o barroquismo limiano e o hermetismo destinado aos críticos, que se mostram insustentáveis, se tomados de forma absoluta. Todavia, os esforços apontados, por precisos e inovadores, ainda se restringem ao pé-de-página de uma futura edição comentada, pois resta compreender a direção multifária e polifônica, de tal modo que a crítica deixe de habitar apenas o caminho dedutivo e admita igualmente o indutivo, apostando numa compreensão macroscópica do processo, para libertar-se da arqueologia do particular para o salto do universal. Ou, então, como diria Vico, que abandonasse a filologia e se decidisse pela filosofia. Mas a hora ainda não é chegada, e Murillo Mendes tinha razão.
O sentimento-ideia que nos leva de modo incompleto e breve a tratar de Invenção de Orfeu começaria inicialmente em rastrear as chaves apontadas por Jorge de Lima, como ele próprio nos incita a fazer (segundo Dante: dottrina sotto ‘l velame), no canto VII:

A linguagem
parece outra
mas é a mesma
tradução.
Mesma viagem
presa e fluente,
e a ansiedade
da canção.
Lede além
do que existe
na impressão.
E daquilo
que está aquém
da expressão.

Esse espaço que representa algo que Dante já dissera no “Inferno”: “Lede além do que existe na impressão”, ou seja, a elaboração de uma hermenêutica da suspeita, de quanto permanece amorado no texto, para que se possa lograr a significação profunda, tudo isso comparece, dentre outros momentos, no canto IV (como em Dante: perdendo me, rimarreste smarriti),

Um monstro flui nesse poema
feito de úmido sal-gema.
.............................................
Se vós não tendes sal-gema,
não entreis nesse poema.

Eis outra chave: o sal-gema, dentre as tantas e variadas chaves que parecem, numa primeira instância renovarem-se, em todas as portas a que se destinam, como soía acontecer nos textos de espessura cristã, como demonstramos em Dante, justamente quando afirmamos que o iter dantesco, como o de Jorge de Lima, espraia-se num universo textual bem mais equívoco do que o dos Argonautas, ou da Odisseia, pois é feito de desvãos, abismos, onde os conectores lógicos implicam na descontinuidade da phýsis. O próprio Jorge de Lima inicia Invenção de Orfeu com um barão sem chaves na mão. Ou seja, inicia a epopeia com chaves multissignificantes.
Auerbach indicou em sua Mimesis, os aspectos fundamentais das portas e das chaves do texto cristão: “realce de certas partes e escurecimento de outras, falta de conexão, efeito sugestivo do tácito, multiplicidade de planos, multivocidade e necessidade de interpretação...”
Tais aspectos trespassam a Invenção de Orfeu tanto quanto a Divina comédia, sendo que o estranhamento de sua poesia resulta de um manejo característico, que o diferencia, por exemplo, da obra de Homero, ou de Apolônio, fruto de um longo processo figural, que alicerça o “Paraíso” e Invenção de Orfeu, perfazendo outras conexões, além daquelas apontadas por Auerbach. A pluralidade nutre e configura as velas hipersignificantes da viagem a Deus. Os mares dantescos e limianos, por serem cristãos, guardam mais riscos, pois contam com os abismos da teologia, que se agregam dramaticamente à novíssima paisagem, da Comédia e de Orfeu.
O exemplo seminal e mais complexo dessa criação remonta ao “Apocalipse”, que surpreende a estrutura cristã quando incide sobre a paideia clássica, ampliando o espaço entre os signos, multiplicando-lhe os valores, alegorizando imagens, traço de união da poética dantesca e limiana, quando o apóstolo afirma ter visto

um céu novo e uma terra nova. Porque o primeiro céu e a primeira terra se formam, e o mar jão não é... vi a cidade santa, a Jerusalém nova, que da parte de Deus descia do Céu.

Novo céu. Terra. Cidade. Plano sobre plano. Toda imagem remete a outra imagem. Abre-se a distância entre os signos. A alegoria alarga a mobilidade dos substantivos. Os sintagmas absorvem subparadigmas. Os mares cristãos encerram uma latência que não cessa (sal-gema, passar ogni costrutto). E dizemos, em A paixão do infinito, que o Empíreo, muito além de Patmos, celebra os limites da mais alta poesia. E embora permaneça infinitamente distante da verdade (aquém da expressão, millesmo del vero), o triunfo da poesia consiste na afirmação desse limite intangível. Suas águas tornam-se plurais. Jazem em seus mares incontáveis tesouros.
Eis o quadro que nos parece urgente e superlativo para não se perder de vista o sistema Jorge de Lima, ampliado e amadurecido em Invenção de Orfeu; isto é, as camadas plurais do texto cristão, capazes de abranger a metafísica e a hiperfísica, a biografia e a história, numa sede poderosa de unidade, onde as águas de Camões e Dante se acomodam aos textos do Brasil Colônia, como os de Gândavo e Caminha, Thevet e Cardim, marcando a grandiosa fábrica de imagens que constitui a Invenção, de tróias e venezas, tamoios e timbiras, enquanto aguardamos, não um Champollion, como disse Murillo, não a Resposta aportes filológicos e filosóficos, sondagens micro- e macroscópicas, da Weltliteratur e da brasileira, e que Orfeu nos auxilie a descobrir melhor os nossos mares, a nossa Paideia, enquanto aguardamos em Mira Celi:

Estai alerta: de súbito ela se tornará visível.
Estai alerta, portanto, desde o amanhecer do dia.
É Mira-Celi que vem para viver conosco!
Navegantes julgarão estar vendo um navio fantasma,
enquanto as donzelas sonharão com seus gêmeos futuros,
e os pastores com seu cordeiro desaparecido.
Mas é apenas Mira-Celi que se torna visível.
Se tendes mãos azinhavradas, não a vereis jamais.
Se vossa mente possui alguma sinistra ideia,
não a vereis jamais.
Se vosso dorso se curvou a um tirano qualquer,
ficareis cegos de nascença.
Porque Mira-Celi nunca se mostrará,
enquanto divisar manchas em nossa terra.
Quando ouvirdes então um rumor desusado, vindo do fim do mundo
sabereis que os falsos deuses começam a tremer.
Mira-Celi vem vindo sobre as águas, no ar.
Os lábios de Mira-Celi tocarão vossos lábios.
Ficareis em eclipse entre Mira-Celi e o mar!

Tal a nossa força de leitores e críticos sobre penhascos e abismos de que depende nossa humana condição.


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MARCO LUCCHESI (Brasil, 1963). Poeta, ensaísta, tradutor. Foi notável editor das revistas Poesia Sempre e Revista Brasileira, esta última da Academia Brasileira de Letras, entidade que atualmente preside. Página ilustrada com obras de Juliana Hoofmann (Brasil, 1965), artista convidada desta edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 119 | Setembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES




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