quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

J. J. DIAS MARQUES | A lenda “O fantasma que pede carona” em dois folhetos de cordel de J. Borges e Maria Godelivie



Os fantasmas

A crença em fantasmas (pessoas que morreram e regressam momentaneamente do Outro Mundo a este ou que não conseguem sair deste mundo e passar para o outro) é provavelmente uma crença universal. [1] É pelo menos, sem dúvida, uma crença atestada em numerosíssimos países de todos os continentes, desde as épocas mais recuadas até hoje, quer na literatura escrita quer sobretudo na literatura oral. [2]

Na verdade, já na epopeia de Gilgamesh encontramos sinais dessa crença, ainda que de forma apenas implícita. No episódio em que Gilgamesh faz perguntas ao seu amigo Enkidu, que descera ao Outro Mundo, sobre os mortos que ele lá vira, temos a seguinte pergunta e respetiva resposta:

 

― Did you see the one whose corpse was left lying on the plain?

― I saw him. His shade is not at rest in the Netherworld. (The Epic of Gilgamesh, 1999. XII)

 

Ou seja, os mortos que não foram sepultados não podem descansar no Além, algo que, como largamente atestam textos e tradições orais posteriores, faz com que esses mortos regressem ou, então, que eles não possam deixar este mundo e aqui continuem a existir, como fantasmas. No entanto, a verdade é que em Gilgamesh os fantasmas não são mencionados.

O texto mais antigo em que com clareza encontramos atestada a crença em fantasmas é, provavelmente, a Odisseia, no episódio da partida da ilha de Circe e no que imediatamente se lhe segue. Na saída dessa ilha, um dos mais jovens companheiros de Ulisses, Elpenor, tem um acidente e morre. Como estão com pressa de embarcar, Ulisses e os restantes companheiros não prestam ao jovem as necessárias honras fúnebres (Homero, 2012: X, 552-560). Ao chegarem à ilha seguinte, Ulisses faz libações e outros sacrifícios de modo a honrar os mortos, pois deseja que um deles, Tirésias, o adivinho cego, venha profetizar-lhes como será o regresso a Ítaca.

Na sequência dessas cerimónias, vão saindo da terra vários mortos. E

 

Primeiro veio a alma do meu companheiro Elpenor.

Pois não fora ainda sepultado sob a terra de amplos caminhos.

O corpo tínhamo-lo deixado no palácio de Circe,

sem o termos chorado ou sepultado: outras tarefas premiam.

(Homero, 2012: XI)

 

E Elpenor fala a Ulisses:

 

Aí [na ilha de Eeia, a que irão aportar em seguida], senhor, te peço que te lembres de mim!

Não me deixes sem ser chorado e sepultado

quando regressares a casa, para que não me torne contra ti

uma maldição dos deuses. Queima-me com a armadura

que me resta e eleva-me um túmulo junto ao mar cinzento,

para que saibam os vindouros deste homem infeliz.

Faz isto por mim: e fixa sobre o túmulo o remo

com que em vida remei junto dos meus companheiros.”

 

Assim falou; a ele dei então a seguinte resposta:

“Estas coisas, ó infeliz, farei e cumprirei.”

(Homero, 2012: XI)

 

Além da questão do sepultamento, que já vimos em Gilgamesh, temos atestados em Homero dois aspetos novos que voltaremos a encontrar em numerosas lendas de fantasmas de todos os tempos: em primeiro lugar, quem morreu novo, antes de tempo, tem tendência a não poder descansar no Outro Mundo, sobretudo se “morreu mal”, ou seja, se morreu de acidente. Em segundo lugar, esse morto que não consegue descansar permanecerá no mundo dos vivos, como “uma maldição dos deuses”, aparecendo a quem ele ache ser responsável pela sua falta de descanso eterno.

 

A lenda “O fantasma que pede carona”

Na literatura oral da atualidade, são muitas as lendas que narram histórias de fantasmas, mais precisamente encontros entre seres vivos e fantasmas. Uma das mais difundidas é aquela que os estudiosos de língua inglesa denominam “The Vanishing Hitchhiker” (ou seja, a pessoa que pede carona e depois se desvanece, desaparece), lenda a que proponho que, em português, se chame de “O fantasma que pede carona”. [3]

Trata-se de uma lenda muito estudada por autores de vários países e que foi, aliás, a primeira das lendas chamadas urbanas ou contemporâneas a ser alvo de um estudo monográfico, publicado em 1942 e 1943, por dois jovens folcloristas estadunidenses, Richard K. Beardsley e Rosalie Hankey, [4] com base em 79 versões recolhidas no seu país. [5]

Inicialmente, esta lenda foi considerada um exemplo de criação oral contemporânea (e muitos continuam a crê-lo), como mostraria o pormenor do automóvel, que (com apenas duas exceções) aparecia em todas as versões que os referidos autores estadunidenses conheciam (Beardsley e Hankey, 1943). No entanto, em breve se descobriu existirem muitas versões dessa lenda em que o meio de transporte usado era uma carruagem puxada por cavalos ou em que, pura e simplesmente, não havia meio de transporte, andando as personagens a pé, pelo que a lenda poderia perfeitamente ser anterior à invenção do automóvel (Jones, 1944).

Mais recentemente, foi descoberta uma versão desta lenda em que a ação é dada como tendo acontecido em 1602, na Suécia, estando o texto em causa incluído num manuscrito escrito por um autor daquele país falecido em 1608 (Rosen, 1994).

Ficou, assim, provado documentalmente que “O fantasma que pede carona” não é moderno, e, acrescentarei eu, tendo em conta o modo como vive a tradição oral, deve ser bem anterior a 1602. A aparência recente que esta lenda apresenta nas versões recolhidas nos sécs. XX-XXI vem apenas do modo como os informantes a adaptaram às condições da vida contemporânea. Tal adaptação é reflexo, sem dúvida, do interesse que eles têm nesta lenda, produto do modo como ela se conecta com a sua visão do mundo.

“O fantasma que pede carona” é uma lenda muitíssimo difundida, atestada em todos os continentes, nomeadamente nos seguintes países (cito aqueles de que conheço versões): Estados Unidos, México, Porto Rico, Panamá, Peru, Brasil, Argentina, Chile; Portugal, Espanha, França, Itália, Grã-Bretanha, Bélgica, Países Baixos, Alemanha, Áustria, Polónia, Roménia, Suécia, Finlândia; Egito, Guiné-Bissau, Guiné-Conakry, África do Sul, Madagáscar; Índia, Mongólia, Coreia, Japão; Austrália, Nova Zelândia.

Do ponto de vista da ação, esta lenda é complexa e apresenta diferentes subtipos. Baseado nas muitas versões que dela conheço, quer as publicadas quer as inéditas (estas, sobretudo, versões portuguesas provenientes de recolhas feitas por alunos meus da Universidade do Algarve ou por mim), penso poder considerar-se a existência de quatro subtipos, um deles subdividido em três subsubtipos. Seja dito entre parênteses que, embora existam quatro subtipos “puros”, várias vezes encontramos na tradição oral versões que resultam da fusão de dois desses subtipos.

Em todos os subtipos de “O fantasma que pede carona”, por detrás de diferenças de superfície, encontramos a mesma base comum, que carateriza esta lenda: o encontro de um ser vivo com um ser que parece estar vivo, mas que, no fim da história, numa reviravolta surpreendente, se percebe ser afinal um fantasma.

Normalmente, as versões implícita ou explicitamente indicam que o fantasma morreu novo e/ou de desastre, o que se liga à crença antiquíssima, atrás mencionada, de que tais pessoas não querem (ou não podem) deixar este mundo, numa espécie de reação contra o prematuro fim da sua vida.

O subtipo mais comum (atestado em todos os países acima referidos) é aquele que deu o título à lenda. As versões deste subtipo contam que um motorista (geralmente um homem) dá carona a uma pessoa (geralmente uma mulher). Durante o trajeto, a mulher desaparece de dentro do carro em andamento, mostrando, assim, ser um fantasma. Geralmente, as versões, implícita ou explicitamente, explicam que o fantasma aparece (e desaparece) no lugar onde, no passado, morreu de acidente, algo que se liga à crença, muito comum, de que quem “morreu mal” tende a ficar ligado ao lugar do seu falecimento.

Dentro deste subtipo podemos considerar a existência de três subsubtipos. No primeiro deles, a acção termina com a simples desaparição do fantasma. Nestas versões, normalmente fica claro que o lugar da estrada em que esse personagem pede carona está situado pouco antes daquele em que, no passado, a pessoa morreu (num desastre), e, assim, o fantasma aparece como se quisesse concluir a viagem para casa durante a qual morreu A impressão que fica é a de que, nessa tentativa de passar tal ponto, o fantasma tenta alterar o seu destino: se conseguisse passar daquele ponto, ele voltaria à vida. Mas, quando o carro chega ao local onde o personagem morreu, o fantasma não pode passar e desaparece de dentro do veículo (voltará a tentar mais tarde, outra e outra vez, pedindo carona a diferentes motoristas), algo interpretável como um sinal de que nada se pode fazer contra a morte.


No segundo subsubtipo, o fantasma, ao desaparecer, assusta o motorista que lhe deu carona e faz com que este tenha um acidente, muitas vezes mortal. Nestas versões estamos em presença de um fantasma vingativo, do tipo daqueles que, atestados desde a Antiguidade, apareciam para fazer mal aos vivos. Nas lendas antigas, muitas vezes esse tipo de fantasma fora assassinado e aparecia para se vingar do assassino. No entanto, havia casos em que o fantasma (morto num acidente e, por vezes, insepulto, como os que desapareciam no mar) vinha para fazer mal a quaisquer pessoas que encontrasse pela frente, mesmo que elas nada tivessem a ver com a sua morte, como se o simples facto de elas estarem vivas, enquanto ele morrera tão cedo, fosse uma afronta e as tornasse suas inimigas.

As versões do terceiro e último subsubtipo apresentam um fantasma bom, que vem para avisar os motoristas sobre os perigos da estrada (por exemplo, uma curva muito arriscada) e evitar um acidente, salvando-os da morte que ele sofreu naquele local. Parecendo exatamente o contrário do subsubtipo anterior, este terceiro subsubtipo talvez possa ser visto, na essência, como a mesma coisa, pois, por baixo duma superfície de solidariedade humana, será possível descobrir a mesma preocupação egoísta do fantasma consigo próprio. Tal como as pessoas que, por motivos económicos, não puderam frequentar um curso superior, e, mais tarde, quando têm um filho, tudo fazem para que ele frequente esse curso (por vezes, mesmo contra a vontade do filho), o fantasma destas versões, já que não pôde evitar a sua própria morte, evita agora a morte dos outros e como que vive através deles.

Terminada a análise do primeiro subtipo (com os seus três subsubtipos), passemos ao segundo subtipo da lenda, aquele em que o fantasma que pede carona, antes de desaparecer, profetiza algo (por exemplo, um desastre, boas colheitas, o fim de uma guerra, ou que o fim do mundo está próximo). Repare-se como, neste caso, o facto de o personagem ser um fantasma (e ter, portanto, contato com o Além) constitui uma caraterística fundamental para garantir a veracidade da profecia. Este subtipo é bastante mais raro na tradição oral do que o anterior, embora esteja atestado nos Estados Unidos e em certos países europeus, pelo menos. É a este subtipo que pertence a versão sueca de 1602, que atrás referi.

No terceiro subtipo, o fantasma (geralmente uma mulher) pede carona a alguém (geralmente um homem), que o leva a casa. Aí chegada, a mulher convida o homem a entrar e oferece-lhe uma bebida. Ao sair de casa do fantasma, o homem esquece-se de algum objeto (por exemplo, um anel ou um relógio que tirou no banheiro, ao lavar as mãos). No dia seguinte, o homem regressa à dita casa, a fim de reaver o objeto. Para seu espanto, a casa está abandonada (ou moram lá outras pessoas), e dizem-lhe que a mulher de quem ele está à procura morreu há anos. Face à sua insistência no facto de, no dia anterior, ali ter estado, deixam-no entrar na casa. Para espanto dos circunstantes (e alívio do homem, que assim compreende que não estava doido), o objeto ali tinha deixado na véspera é encontrado. Ao que parece, este subtipo é bastante raro, estando atestado, tanto quanto sei, em Portugal, França, Itália, Roménia (sempre com poucas versões) e (com uma única versão) nos Estados Unidos.

O quarto e último subtipo da lenda é, pelo contrário, bastante mais corrente, ainda que menos que o primeiro. Embora com variantes, a história que ali se conta é a seguinte: um rapaz encontra uma moça (muitas vezes num baile), que depois ele acompanha a casa. Pelo caminho, a moça queixa-se do frio, e ele empresta-lhe uma peça de roupa (um paletó, por exemplo). Ao chegarem a casa, ele (subentendendo-se que por estar interessado em rever a moça) não aceita que ela lhe devolva o paletó, dizendo que virá buscá-lo no dia seguinte. No dia seguinte, quando lá chega, um familiar da moça comunica-lhe que a ela morreu há anos.

Os dois folhetos de cordel que adiante analisaremos baseiam-se em versões que pertencem ao quarto subtipo desta lenda, aquele que acabo de resumir. Não é possível saber como eram as versões concretas em que os autores destes folhetos se inspiraram. Mas não seriam muito diferentes de outras versões que, desse subtipo, se conhecem no Brasil. Vou exemplificar, transcrevendo algumas.

 

Versão nº 1

Informante: Ana Maria Fernandes, 53 anos (no momento da recolha), natural de Jequeri, MG. Com apenas 2 anos, foi morar para Raul Soares, MG, e desde 1982 vive em Belo Horizonte, MG. É formada em Biologia e professora do ensino médio. Versão inédita recolhida em Belo Horizonte por J. J. Dias Marques, em 31-07-2003.

 

Eu já ouvi contar isso, mas já não tenho muito a certeza… de que alguém saiu com essa moça da festa, foi levá-la em casa, deixou-a em casa… (Inclusive [era] um camioneiro, é… Era alguém que tinha carro, ou pode ser até… Não sei quem…). E saiu com ela da festa e foi levá-la em casa e deixou-a em casa e emprestou a blusa para ela. E no dia seguinte ele foi pegar a blusa e… e essa moça não existia. Tinha morrido.

Colector: E quem é que lhe abria a porta?

Informante: A família dela, não é? Os pais. Ficaram surpresos… estranharam…

 

Versão nº 2

Informante: Maria Leda Oliveira Alves da Silva, 32 anos (no momento da recolha), natural de Belém de Maria, PE. Com apenas 2 meses, foi viver para Catende, PE, onde viveu até ir estudar para a universidade, no Recife. Vive em Portugal desde 1997. É mestre em História. Versão recolhida (apenas por escrito ―ou seja, sem gravador― de acordo com o pedido da informante) em Faro, Portugal, por J. J. Dias Marques, em julho de 2005.

 

Um homem ou um rapaz ia num baile. Acho que ele encontrava uma senhora. Não me lembro se eles dançavam, mas lembro-me que a levava no fim do baile a casa e emprestava-lhe qualquer coisa, já não sei se era um casaco… (Estou tentando me lembrar o termo, mas não me vem… Estás-me a fazer relembrar tanta coisa que eu ouvia quando era pequena…)

E, no dia seguinte, [ele] volta [a casa da moça] e bate na porta e não sei quê e fala com a senhora que se diz mãe da moça. E ele dizia:

― Venho buscar o casaco que emprestei a Fulana.

A mãe dizia:

― Fulana? Essa pessoa já não existe mais nesta casa.

Na entrada da casa, havia uma fotografia na parede, da moça. E ele olha para o retrato e diz-lhe que é exatamente aquela moça que está ali no retrato.

E ela diz:

― É a minha filha, mas já morreu há não sei quantos anos atrás.

Acho que terminava assim.

 

Como vemos, em relação à versão nº 1, a nº 2 acrescenta o pormenor da foto, que ajuda ao reconhecimento do fantasma e que, como constataremos, surge também nos dois folhetos de cordel que iremos analisar mais à frente.

Em certas versões do quarto subtipo, existe, no fim, uma cena adicional, que não encontramos nas versões nº 1 e nº 2: face à incredulidade do rapaz, o familiar da moça acompanha-o ao cemitério, para lhe mostrar a sepultura dela. Para espanto de ambos, em cima da sepultura, está o paletó que o rapaz emprestou à moça na véspera.

Repare-se que a posição do paletó sobre a sepultura da moça mostra a persistência, ainda hoje, a nível popular, de uma crença que, embora atestada desde a Antiguidade, é recusada há muitos séculos pelo Cristianismo: os mortos não moram no Céu ou noutro lugar do Outro Mundo, mas sim dentro da sepultura onde o seu cadáver foi depositado. E, no caso desta lenda, eles saem à noite da sepultura, em busca de interação com os vivos, tentando desfrutar dos prazeres próprios da sua idade, que lhes foram roubados pela morte prematura.

Vejamos uma versão brasileira que inclui essa cena da ida do rapaz ao cemitério:

 

Versão nº 3

Informante: Paulo Balbino, idade não registada. Rio Formoso (Praia de Tamandaré), PE. Versão recolhida por Edval Marinho de Araújo, em 01-02-1981.

 

O homem todo dia ia dançar… todo o dia. Aí, quando ele foi entrando na porta de dançar e quando ele pagou, aí levou um corte. Ele saiu e disse logo ao dono da discoteca…

Pessoa do público: …é discoteca, não é mais forró não…

E ele disse:

― Eu não venho mais dançar não, porque toda vez que eu venho eu levo corte. Agora mesmo, quando eu fui entrando, eu levei um corte.

Aí, ele ficou assim, num banco, e chegou uma moça. Aí, disse assim:

― Por que é que tá aí?

E ele disse:

― Porque toda vez que vou dançar levo corte. Hoje, quando fui entrando, levei um corte.

― Nada, vam’ ’bora dançar!

Aí, dançou e ficou namorando com ele.

Aí, bateu uma chuva. Aí, ele tinha uma capa, pegou a capa e deu a ela. E ela disse o dia pra ele ir pedir ela em casamento e disse que era naquele primeiro andar de lá de cima.

Aí, quando ele foi lá e bateu, disseram:

― Entre.

E ele entrou e disse:

― Vim pedir sua filha em casamento.

― Qual filha? ― chamou uma e disse: ― É essa?

Ele disse:

― É não, ― aí apontou ― é essa daí do retrato.

― É essa moça?

― Sim.

― Essa moça, faz um mês hoje que ela morreu…

― E foi?

― Foi. E vou lhe mostrar a cova.

Aí, foi lá. Quando abriu, a capa dele tava em cima da cova.

E ele morreu doido.

(Benjamin, 1994: 351, versão nº 78)

 

Para exemplificar o caráter internacional da difusão desta lenda, vejamos agora uma sua versão portuguesa.

 

Versão nº 4

Informante: Sandra Patrícia Teixeira do Amaral, 27 anos (no momento da recolha). Natural de Angola, foi para Portugal com 4 meses. Viveu dos 3 anos aos 11 em Vila Nova de Famalicão, no Norte de Portugal, e, desde então, vive em Faro, no Sul do país. É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas. Versão recolhida em Faro, por J. J. Dias Marques, em 18-12-2002.

 

Esta ouvi contar em Vila Nova de Famalicão, a história de um rapaz que vem à noite, não sei se vem dum baile, e está uma rapariga [6] na estrada a pedir boleia. [7] E acho que é inverno e ela está com um vestido de manga curta, ou uma coisa assim, está com muito frio. Ele empresta-lhe o casaco [8] e leva-a a casa dela. E ela diz-lhe:

― Depois amanhã venha cá, para vir buscar o seu casaco.

Ele, no dia seguinte, quando vai lá buscar o casaco, atende-lhe uma senhora mais velha, e ele diz:

― Venho buscar o meu casaco, que ontem emprestei à sua filha ou uma rapariga que morava aqui.

A mulher ficou muito assustada, muito nervosa, e foi buscar uma fotografia e perguntou:

― É esta rapariga aqui?

Ele disse:

― É. Mas o que é que se passa com o meu casaco?

E a mulher disse:

― É que a minha filha já morreu há sete anos.

E pronto. Entretanto foram ao cemitério e estava o casaco em cima da campa [9] da rapariga e nunca ninguém o conseguiu tirar. Ainda hoje lá está, pelo que me dizem.

 

No fim da versão, tive a possibilidade de conversar algum tempo com a informante. Embora tal conversa não se ligue especificamente ao objetivo deste artigo (que é sobretudo a análise do tratamento de “O fantasma que pede carona” em dois folhetos de cordel), talvez seja interessante lê-la, porque ajuda a contextualizar essa versão e a entender como ela vive / vivia na oralidade:

 


Coletor: O rapaz tentou tirar o casaco de cima da sepultura?

Informante: Sim. E não conseguiu. E, pelo que me disseram, muitas pessoas foram depois ao cemitério, e toda a gente tentou tirar o casaco e ninguém conseguiu. Se ainda lá está, deve estar em muito mau estado. [A informante ri].

Coletor: Patrícia, quanto tempo viveu em Vila Nova de Famalicão?

Informante: Dos 3 aos 11.

Coletor: E isto contaram-lhe em Vila Nova de Famalicão? Quem é que lhe contou?

Informante: Foram as vizinhas da minha avó. E foi giro, [10] porque foi numa noite de tempestade. Acho que é costume lá (porque isto acontecia sempre em noites de tempestade) juntarem-se todas no patamar e contarem histórias de fantasmas.

Coletor: No patamar de quê?

Informante: Do prédio, que é um prédio muito grande, tem um patamar à volta.

Coletor: Que quer dizer um patamar?

Informante: Um patamar é como uma varanda, [11] mas é comum a toda a gente. Aquilo é um prédio retangular e, dentro, tem um jardim e à volta é tudo patamares. Cada andar tem um patamar à volta.

Coletor: E é por aí que se entra para as casas, é isso? As portas dão para aí?

Informante: Sim, sim.

Coletor: E então juntavam-se os vizinhos aí…

Informante: Juntávamo-nos à noite no verão a contar essas histórias. E era engraçado (essa noite, fomos todos a correr para casa, cheios de medo!), porque estava muita gente: miúdos [12] novos, e velhotes e… Homens por acaso não, eram só mulheres e malta [13] nova. E toda a gente confirmou que já tinha ido lá [ao cemitério onde estaria o casaco que o rapaz emprestara à moça] e que tinha visto o casaco e que tinha tentado tirar e que não conseguiu. Eu nunca fui lá, porque nunca descobri qual era o cemitério, porque não era o cemitério de Famalicão (o cemitério de Famalicão é mesmo ao lado [do referido prédio]). Era um cemitério qualquer, já nos arredores, não sei bem onde.

Coletor: Então aquilo [a ação da lenda] não se tinha passado em Famalicão…?

Informante: Não, tinha sido nos arredores de Famalicão. No Norte, aquilo o que mais há é terreolas, [14] muitas terreolas e muitos cemitérios.

Coletor: E não se lembra de qual a aldeia ou vila em que eles disseram que isso se passava?

Informante: Eu tenho a impressão que eles falaram da estrada da Trofa. Naquela altura, falava-se sempre na estrada da Trofa, porque era a estrada que ia para o Porto, de Famalicão para o Porto, mas a estrada antiga, aquelas estradas muito sinuosas, e que foi para aí. Mas não me lembro. Eu nessa altura tinha… (eu já estava em Faro, só que estava a passar férias [em Famalicão])… tinha 13, 14 anos.

Coletor: Lembra-se de se eles diziam qual era a terra da rapariga, onde ela morava?

Informante: Eles disseram, eu é que não me lembro. Mas eles diziam sempre o sítio certo: “Isto passou-se aqui”, “Isto passou-se ali”…

Coletor: E em que cemitério era também disseram?

Informante: Sim. Eu só não fui lá porque não era em Famalicão, porque eu queria ir lá, mas naquela altura era miúda e, se pedisse a alguém para me levar ao cemitério, achavam que eu era maluca. Mas disseram onde é que era, tanto que eu lembro-me [de que] isto foi um rapaz [que me contou] (ainda hoje o conheço, depois posso perguntar-lhe, quando for lá), ele é que me disse: “Eu já fui lá [ao cemitério], eu e o meu amigo já fomos lá e tentámos tirar o casaco e não conseguimos.” E, como naquela altura eu acreditava em tudo… (não é que [agora] não acredite, mas…), achei que aquilo era normalíssimo.

Havia montes de histórias em Famalicão. Eu… lá não é difícil acreditar em fantasmas, porque à noite, quando está a chover, principalmente no nascer do sol, aquilo parece que há fantasmas por todo o lado…

 

O folheto de cordel: A moça que dançou depois de morta

Conheço quatro folhetos de cordel brasileiros que recontam versões do quarto subtipo de “O fantasma que pede carona”: A mulher de sete metros que apareceu em Itabuna, de Minelvino Francisco Silva (1968); A moça que dançou depois de morta (1973), de J. Borges; A loura do Bonfim (2001), de Olegário Alfredo; e O homem que beijou uma alma (2003), de Maria Godelivie.

Neste artigo, analisarei agora a obra de J. Borges e a de Maria Godelivie, deixando as restantes para um próximo estudo.

J. Borges (de seu nome completo José Francisco Borges), nasceu em 1935, em Bezerros, PE, e ali reside. É autor de inúmeros folhetos e também xilogravador, sendo hoje, aliás, mais conhecido, até internacionalmente, pelas xilogravuras, que no início fazia apenas para as capas dos seus folhetos, mas cuja criação depois se autonomizou.

O folheto A moça que dançou depois de morta, [15] segundo informa o autor, foi publicado pela primeira vez em 1973 (Borges e Coimbra, 1993: 124). Conheço duas edições deste folheto: uma sem data, de cerca de 1998, [16] e outra datada, no fim, de 2004, que adquiri em Bezerros, PE, em casa do poeta (Borges, 2004). As variantes entre ambas são muito pequenas. [17] O folheto é formado por 38 sextilhas, com rima nos versos pares.

Como atrás referi, esta obra reconta, em verso, uma versão do quarto subtipo da lenda de “O fantasma que pede carona” que o autor explica ter conhecido na oralidade:

 

Eu escrevi o folheto da Moça que Dançou depois de Morta porque eu sempre ouvia alguém contar esta lenda e as pessoas que ouviam faziam um gesto de admiração pelo facto. E eu sempre notava que todos acreditavam ter sido certeza aquele acontecimento. Uma vez numa feira eu aproveitei um espaço de tempo e contei por alto e todos que estavam ali perguntaram se tinha aquela história em folheto porque queriam comprar. Aí eu resolvi escrever e depois do folheto publicado foi um sucesso (Borges e Coimbra, 1993)

 

Para podermos avaliar perfeitamente o modo como o autor usou, na sua obra, a versão oral que ouviu, seria necessário, claro, saber como era essa versão. Para tal, em setembro de 2005, durante uma ida ao Brasil para participar num congresso sobre literatura de cordel organizado pela malograda Neuma Fechine Borges em João Pessoa, PB, aproveitei e desloquei-me ao vizinho estado de Pernambuco, à pequena cidade de Bezerros, onde J. Borges vive. Fui a sua casa, mas infelizmente não o encontrei, pois ele estava ausente na França, devido a uma exposição de gravuras de sua autoria que então ali se inaugurava, integrada nas celebrações do Ano do Brasil, que se celebrava naquele país.

Embora não conhecendo, pois, a versão que J. Borges ouviu, é possível deduzir que, quanto à ação, seria bastante parecida com a versão que atrás transcrevi com o nº 3, a qual, aliás, foi recolhida em Pernambuco, o estado do próprio J. Borges. Da leitura do folheto, pode concluir-se que nele o autor segue a mesma história que lhe veio da oralidade, embora tenha introduzido algumas transformações, que julgo poder identificar pelo facto de nunca as ter encontrado em nenhuma das numerosas versões desta lenda que conheço. É sobretudo a essas invenções de J. Borges que me vou referir nas páginas que se seguem.

A primeira das invenções é o prólogo, de tom moralizador, que ocupa 4 estrofes (ou seja 10,52% do folheto). Ali se aborda o tema da dissolução dos valores tradicionais no mundo moderno: [18]

 

Leitores o nosso mundo

está muito desmantelado

aumentou a violência

é morte pra todo lado

daqui pra dois mil e dez [19]

temos que andar com cuidado

 

Deve dar graças a Deus

quem está vivo hoje em dia

com assalto e malandragem

vingança, ódio e orgia

e o povo só dando valor

a palavrão e bruxaria

 

As mocinhas de hoje em dia

vivem dentro da algazarra

andam quase todas nuas

só pensam em rock e farra

[…]

 

E se os pais reclamarem

elas dizem um palavrão

não vão à missa nem rezam

também não fazem oração

[…]

 

O tema das desgraças da sociedade contemporânea, nomeadamente o comportamento irregular das moças, não existe em nenhuma das versões da lenda que conheço, tudo levando a crer que se trata dum acrescento do autor. Este tema, tratado no mesmo tom, surge, aliás, noutra obra de J. Borges, cujo título fala por si próprio: A moça que virou jumenta porque falou de top-less com Frei Damião (Borges, s. d.). [20] Os versos iniciais deste folheto lembram, aliás, o prólogo de A moça que dançou depois de morta:

 

Esta era de 80

é de horror e carestia

sofrimentos e assalto

moda, escândalo e orgia

pra se cumprir as palavras

que Padre Cícero dizia

 

Tudo isto hoje aparece

seca, fome, peste e guerra

o escândalo tomou conta

da idade até na serra

[…]

 

Voltemos à Moça que dançou depois de morta. Ao prólogo segue-se uma parte fruto também, com toda a probabilidade, da inventiva do autor. Esta parte ocupa 7 estrofes (ou seja, 18,42% do total da obra). Aí se contam os antecedentes da história do fantasma: houve em tempos “uma moça farrista” (que mais tarde saberemos chamar-se Corina), moradora no estado da Bahia, “muito vaidosa / e [que] pensava que não morria”.

 

Não gostava de Igreja

nunca falou em casar

só vivia pelos bailes

toda noite ia dançar

fumando erva e bebendo

todo dia sem parar

 

Era querida de todos

por ser nova e muito bela

mas droga e a bebida

ofenderam muito a ela

nunca tomou um conselho

nem do pai nem da mãe dela.

 

Seja dito que a personagem principal do atrás citado A moça que virou jumenta porque falou de top-less com Frei Damião partilha várias das caraterísticas negativas da Corina de A moça que dançou depois de morta. Além de ser designada por “uma moça farrista” (exatamente como Corina), essa personagem também “não gosta[va] de padre / e nem de Deus poderoso”, nem ouviu os conselhos dos pais, que, neste caso, a tentavam dissuadir de, com a sua nudez, ir provocar Frei Damião.


Regressando à história de A moça que dançou depois de morta, temos que, como consequência da vida desregrada que levava, Corina acaba por cair doente e morrer.

Uns meses depois, é Carnaval e há um baile na cidade. O filho de um fazendeiro vai ao baile ― e, a partir daqui, o folheto segue a história usualmente presente nas versões deste subtipo da lenda (neste caso, os objetos emprestados são uma capa e também um rádio e um isqueiro).

Depois dos episódios do baile e do acompanhamento da moça até casa, o folheto volta a afastar-se da lenda, através da introdução de 5 estrofes sem dúvida da invenção do autor (que correspondem a 13,15% da obra total). Nessa parte, o rapaz volta para casa e vai imediatamente deitar-se, pois está muito cansado. Durante a noite, tem um sonho: está num baile, dançando com uma moça muito bonita. De repente, o belo rosto da moça transforma-se numa horrível caveira. O espetro ri às gargalhadas, beija-o e abraça-o. Ele tenta libertar-se, mas sem sucesso.

De manhã, o rapaz acorda, mas não mostra ter compreendido o sonho, caso de ironia trágica, que, sob uma transparente alegoria, explicou o que lhe acontecera na véspera.

O rapaz sai e vai a casa de Corina. A história volta a decorrer como nas versões da lenda: conversa com a mãe da jovem; revelação da morte desta; pormenor do retrato da falecida na parede da casa, que o rapaz reconhece; ida ao cemitério; capa do rapaz em cima do túmulo da moça.

Na cena do cemitério há um pormenor que deve ser fruto da invenção de J. Borges (ocupa uma estrofe, correspondendo a 2,53% do poema): o rapaz e a mãe da moça rezam um pai-nosso e várias ave-marias pelo descanso da alma da jovem e, além disso, o rapaz jura nunca mais dançar. Embora esta cena não exista nas numerosas versões de “O fantasma que pede carona” que conheço, parte dela baseia-se numa crença sem dúvida corrente na comunidade em que J. Borges vive. Como se sabe, um dos aspetos do dogma católico da “comunhão dos santos” afirma que as orações ou missas que os vivos rezarem por intenção das almas do Purgatória encurtam a estadia destas almas naquele lugar de padecimentos e levam-nas mais rapidamente para o Céu. De notar, além disso, que existem na tradição oral muitas lendas em que se narra a aparição de uma alma penada que vem a este mundo pedir que rezem ou mandem dizer missas por ela, de forma a poder entrar no Céu. Cumprido esse pedido, a alma nunca mais volta a aparecer, subentendendo-se (ou dizendo-se mesmo explicitamente) que ela entrou no Céu. É muito possível que J. Borges conheça lendas deste género, e que tenha sido por influência delas que escreveu a cena em que a mãe de Corina e o rapaz rezam por alma da moça.

A essa luz poderemos, creio, ler a conclusão do folheto, claro fruto da inventiva de Borges. Ocupando as três estrofes finais (ou seja, 7,89% do poema) esta parte explica que o rapaz nunca mais esqueceu a história que vivera (a qual foi muito contada pelo povo) e que a moça nunca mais voltou a aparecer. Embora no poema se não diga, subentende-se que a alma de Corina está agora em descanso, graças às orações que por ela foram rezadas.

O facto de o poema frisar que, por um lado, Corina morreu cheia de pecados contra os bons costumes (“nunca falou em casar / só vivia pelos bailes / toda noite ia dançar / fumando erva e bebendo / todo dia sem parar”), os pais (“nunca tomou conselho / nem do pai nem da mãe dela”) e a própria religião (“não gostava de Igreja”), e, por outro, o facto de o poema deixar claro que, depois das orações da mãe e do rapaz, Corina nunca mais apareceu parecem apontar para algo muito interessante. Na verdade, talvez se possa entender que o fantasma de Corina apareceu não porque não conseguisse passar para o Outro Mundo devido a ter morrido prematuramente (crença de raiz pré-cristã que, como antes disse, se encontra em muitas versões de “O fantasma que pede carona”), mas sim porque estava neste mundo a purgar os muitos pecados que cometera em vida. Esta crença não é a católica oficial, sendo anterior à definição do dogma do Purgatório no séc. XIII e ligando-se à antiga conceção do Purgatório não como um lugar (separado deste mundo) em que se padece, mas sim como um estado de padecimento, estado esse que decorre, precisamente, neste mundo, nos lugares onde a alma viveu e pecou. [21]

Terminando a análise deste folheto, podemos concluir que nele é muito grande o espaço ocupado por aspetos acrescentados pelo autor à história narrada na lenda. De facto, somadas todas as partes fruto da inventiva de J. Borges, vemos que constituem 52,51% do poema.

Nessas partes inventadas (em que melhor se revela, portanto, a personalidade do autor), destaca-se a intenção moral de cunho tradicionalista, sobretudo no tratamento negativo dado à moça, na esteira, aliás, do que se encontra também noutro folheto do autor, como atrás vimos. Corina é apresentada como cheia de vícios, fruto da sociedade moderna, fazendo o contrário do que se esperaria de uma mulher. Consequentemente, morre nova. Além disso, a sua aparição como fantasma parece dever-se a ter sido condenada a ficar neste mundo para purgar os pecados que cometeu. Só a intervenção dos outros, através do poder da oração, a consegue libertar.

Embora um modelo negativo, daquilo que se não deve fazer, a moça é, neste folheto, a personagem central (é ela aliás a única que tem nome), centralidade bem expressa desde o próprio título da obra: A moça que dançou depois de morta.

 

O folheto de cordel: O homem que beijou uma alma

O segundo folheto que vamos analisar intitula-se O homem que beijou uma alma, é de Maria Godelivie e foi publicado em 2003. [22] Tal com a obra de J. Borges, inspira-se numa versão indeterminada pertencente ao quarto subtipo de “O fantasma que pede carona”.

Maria Godelivie Cavalcanti de Oliveira nasceu em 1959, em Campina Grande, PB, onde reside, é professora do ensino médio e autora de vários folhetos de cordel.

O poema em apreço é formado por 56 sextilhas, com rima nos versos pares, e uma septilha (a última estrofe do poema), esta com rima ABCBDDB. Como vemos, portanto, trata-se de uma obra bastante mais longa que a de J. Borges, que tem apenas 38 sextilhas.

O folheto começa com um prólogo (de uma única estrofe), em que se diz que os fantasmas voltam a este mundo para fazer aquilo que não puderam fazer em vida. Trata-se de uma ideia que encontramos, de forma implícita ou mesmo explícita, em certas versões da lenda de “O fantasma que pede carona”, embora não normalmente em versões do seu quarto subtipo.

Segue-se uma parte toda ela fruto, sem dúvida, da invenção de Maria Godelivie, pois nunca surge nas versões da lenda. Esta parte ocupa nove estrofes (ou seja, 16,07% do total) e nela se contam os antecedentes do baile. Ali se diz que um rapaz, de nome Óscar, passa de carro por certa cidade. O carro tem uma avaria e ele vê-se obrigado a interromper a viagem e a levá-lo a um mecânico.

 

Óscar era bonitão

E sabia conversar,

Andava sempre arrumado

Gostava de prosear

Olhava para as meninas

Já querendo desfrutar

 

Apesar de responsável

Com a família e o lar

Não perdia ocasião

Pra das festas desfrutar

Sem que a esposa soubesse

Que estava a farrear

 

É, portanto, natural que o conquistador Óscar vá a um bar, de modo a informar-se sobre como aproveitar a estadia forçada naquela cidade. Fica a saber que nessa noite vai realizar-se um baile. Arranja então quarto no hotel, onde descansa até às 22h. Depois, veste-se elegantemente e parte para o baile.

A cena do baile começa com uma parte inventada pela autora, ocupando 6 estrofes, ou seja, 10,71% do folheto: no baile há muitas mulheres, cujos traseiros Óscar aprecia com interesse. No entanto, as mais bonitas já têm companhia, pelo que ele passa o tempo apenas bebendo. À 1h da manhã, como não conseguiu conquistar ninguém, decide voltar ao hotel. À saída do baile, vê uma moça muito bonita e sozinha, chorando. O rapaz pergunta-lhe que tem e ela diz-se que o seu par, com quem tinha combinado ir ao baile, não apareceu. Óscar, felicíssimo pela oportunidade, convida a moça (que se chama Margarida) para dançar.

Chegados a este ponto, o folheto continua do modo habitual nas versões da lenda. Mas, depois de Óscar deixar Margarida em casa, surge nova parte fruto da imaginação de Maria Godelivie, que ocupa três estrofes (ou seja, 5,35% do poema). Ali se explica que Óscar volta muito feliz para o hotel e vai dormir, sem se preocupar com telefonar à sua própria família, de modo a avisar que ficara retido naquela cidade. No dia seguinte, arranja-se elegantemente e vai a casa de Margarida.

Em casa desta, as coisas passam-se como de costume na lenda: a mãe da jovem fica muito comovida quando o rapaz explica que veio ver a moça com quem dançara na noite passada; vai buscar uma foto que mostra ao rapaz; ele reconhece a menina da véspera; a mãe explica-lhe então que ela morrera há vinte anos.

Segue-se nova parte fruto da criatividade da autora (ocupando 6 estrofes, ou seja 10,71% do folheto): a mãe de Margarida conta a Óscar que, durante a noite anterior, acordara com um ruído. Fora ao quarto da filha e ali a encontrara sentada na cama, chorando, agarrada a um casaco. Depois, a filha desvanecera-se no ar, deixando o casaco dobrado em cima da cama. Ao ouvir este relato, o rapaz foge horrorizado, e nunca mais ninguém volta a vê-lo naquela cidade.

Embora esta parte seja, como disse, invenção da autora, baseia-se muito provavelmente num aspeto que estaria na versão da lenda que ela ouviu. Na verdade, há algumas versões (raras, é verdade) em que, de modo a convencer o rapaz de que a moça de facto morrera, a mãe desta leva-o não ao cemitério mas sim ao quarto vazio da jovem. E aí, sobre a cama, para espanto da mãe e do rapaz, encontram o casaco que este emprestara ao fantasma.

Como não conheço versões brasileiras em que a ação se passe deste modo, exemplificarei com uma versão portuguesa. Diga-se, entre parênteses, que esta versão ilustra o modo como “O fantasma que pede carona” tem vivido no Algarve (região do Sul de Portugal) desde há cerca de 30 anos. Na verdade, muitas versões que possuo (nomeadamente recolhidas por alunos meus) apresentam esta lenda como tendo acontecido numa curva junto da danceteria Kadoc (atualmente denominada Lick), a mais famosa do Algarve, situada não longe de Vilamoura. Nessa curva, segundo a lenda, a moça (agora fantasma) morreu de desastre e é aí que pede carona. Curiosamente, no norte da Itália dá-se um fenómeno análogo, e aí a lenda está ligada à discoteca Snoopy, localizada em Serina, na região de Bérgamo (cf. Fumagalli, 2004).

Vejamos, então, a versão portuguesa:

 

Versão nº 4

Informante: Ricardo Correia Henriques, 23 anos (na época da recolha), natural de Oeiras, Lisboa. Mora em Loulé, na região do Algarve, Sul de Portugal. Tem o 12º ano. É operador de exploração. Versão inédita recolhida em Gambelas, município de Faro, Algarve, por José Henrique Almeida (meu aluno na Universidade do Algarve), em 05-04-2004.

 

Pelo que eu sei, era uma rapariga, [23] namorava com um moço, e depois tiveram um acidente ali perto da Kadoc, numa curva. A moça morreu no acidente. E depois, pelo que dizem (eu pelo menos nunca assisti, não é?), pelo que dizem, ela costuma a estar sempre nessa curva, a pedir boleia. [24] Aí há uns tempos atrás, [ela] andava lá e estava sempre a pedir boleia.

E, por acaso, houve um rapaz que lhe deu boleia. Ela estava… Aquilo foi de manhã cedo, ele deu-lhe boleia, já não sei para onde, já não me recordo. E ela estava com frio, ele deu-lhe o casaco [25] para ela vestir. E, naquela conversa toda, ela ficou onde quis… disse onde é que morava, quem era o pai etc. (o pai era ali o dono do restaurante Dallas, em Quarteira). E então, pronto, assim foi. E, ao ir embora, ao despedir-se, [ela] levou o casaco do rapaz, estás a perceber?

E no dia a seguir é que ele reparou nisso, lembrou-se que tinha falado com ela, onde é que era a morada [26] etc., etc. Lá foi… Lembrou-se do restaurante do Dallas, em Quarteira, pronto, era fácil. Chegou lá, falou com o pai dela e disse:

— Passou-se isto, isto e isto. Estive ontem com a sua filha, dei-lhe boleia e ela ficou com o meu casaco. Agradecia que me pudesse devolver o casaco.

Claro que o homem não gostou nada da conversa e levou a mal. E o rapaz, sem perceber:

— Mas porquê? Porquê? Porquê?

Depois contaram-lhe o sucedido.

— Então, mas é impossível, é praticamente impossível, porque eu falei com ela, [ela] não estava nem mal, nem nada, estava bem, estava consciente. Falei muito bem com ela. Normal, era uma pessoa normal.

E nesse dia… Depois, foram lá a casa do homenzinho [o pai da moça] e depois… (o homem sempre deixou o quarto dela conforme ela o deixou)… e, quando chegaram lá, estava o casaco dele em cima da cama dela.

 

No fim de o informante contar esta versão da lenda, o coletor continuou conversando com ele, fazendo-lhe perguntas. Embora tal não interesse especificamente para o estudo do folheto de Maria Godelivie, vou transcrever um extrato dessa conversa, porque ilustra bem o caráter que esta narrativa adquiriu na região onde se conta.

Como veremos, nessa conversa, o informante afirma ter conhecido a moça antes de ela ter virado fantasma. Tal conhecimento não deve ser invenção deste rapaz, pois, segundo eu próprio pude determinar através de outras fontes (outras versões desta lenda que recolhi), deu-se, na verdade um acidente na curva da Kadoc em que morreu a filha do dono do restaurante Dallas, da vizinha cidade de Quarteira.

Sem dúvida “O fantasma que pede carona” já existia na tradição oral dessa região, e, depois do referido acidente (que deve ter impressionado a população, por envolver a morte de uma moça jovem e filha de uma família conhecida na cidade), a lenda localizou-se e adaptou-se às circunstâncias do lugar: passou a contar-se sobre a curva da danceteria Kadoc, onde a moça efetivamente morreu, e essa moça real tornou-se a personagem da lenda.

Vejamos então um excerto da conversa entre o coletor e o informante da versão nº 4:

 

Coletor: Tu és de Oeiras [nos arredores de Lisboa], mas tiveste contacto com esta história cá em baixo [= no Algarve]?

Informante: Sim, cá em baixo. Eu moro cá em baixo há mais tempo [isto é, mais tempo do que três anos. O informante explicara antes ter ouvido esta lenda pela primeira vez três anos antes].

Coletor: Mas só foi cá em baixo?

Informante: Só cá em baixo. Só cá em baixo, claro. Eu cheguei a conhecer a rapariga…

Coletor: A rapariga que…?

Informante:… que morreu

Coletor: Chegaste a conhecer?

Informante: Sim.

Coletor: E como é que ela se chamava? Sabes?

Informante: Boa pergunta… Já não me lembro.

Coletor: Sabes a idade?

Informante: Ela era mais velha que eu, muito mais velha que eu. Devia ter para aí 27, 28. Naquela altura, eu tinha para aí uns 12 anos… Eu lembro-me que ela já andava no secundário, [27] estás a perceber?

Coletor: Não te lembras do namorado dela?

Informante: Não.

Coletor: E no acidente ele também morreu?

Informante: Não, não, o namorado dela não. Ficou apanhado da cabeça, [28] mas não morreu.

Coletor: Isto é contado nalguma ocasião especial? Quando surge algum assunto especial?

Informante: Não, só quando surge este tipo de histórias macabras, etc. O pessoal vai-se lembrando. Claro, naquela altura, naquela altura que isso surgiu, toda a gente contava, toda a gente falava nisso, e que era muito frequente estar lá a tal rapariga a pedir boleia. Ouvi várias pessoas a dizer a mesma coisa, não é?

Coletor: Acreditas nesta lenda?

Informante: Eh pá, [29] isso comigo não funciona muita bem. Não sou muito crente nessas coisas. [O informante ri].

Coletor: Já contaste [esta lenda] a mais pessoas?

Informante: Já, já contei a mais pessoas. Até já falei com uma prima dela, que também a conheço, e ela também diz a mesma história, já a ouvi falar muitas vezes disso. E é prima. Conheço as duas. Portanto…

Coletor: Este restaurante existe ainda?

Informante: Sim, sim, sim, ainda existe.

Coletor: É do pai dela?

Informante: É. Ainda é do pai dela. Isso foi muito contado lá por Quarteira.

 

Voltemos agora ao folheto de Maria Godelivie, que, depois da cena do casaco do rapaz encontrado sobre a cama da moça (tal como na versão portuguesa, nº 4), termina com uma conclusão, de uma estrofe (ou seja, 1,78% do total da obra), fruto da invenção da autora. Embora de tom bem-humorado, é uma farpa atirada contra os conquistadores:

 

Portanto dou um conselho

Aos galinhas de plantão

– Quando arranjar um namoro

É bom prestar atenção

Fazendo um exame sério

Se catinga a cemitério

E se bate o coração.

 

Para terminar a análise de O homem que beijou uma alma, podemos referir que as partes acrescentadas à lenda pela imaginação de Maria Godelivie ocupam 44,62% do folheto. Nesse aspeto, portanto, esta obra não se diferencia muito do que vimos no folheto de J. Borges, onde temos uma percentagem de 52,51%.

No entanto, ao contrário do que se passa no folheto de Borges, a personagem principal é, aqui, o homem. Repare-se que, aliás, o título do folheto aponta desde logo nessa direção: O homem que beijou uma alma. A personagem masculina, Óscar, constitui um modelo pela negativa, pois é apresentado como um conquistador impenitente, que trai a mulher e se esquece dela e dos filhos. No fim, apanha o maior susto da sua vida, ao aperceber-se de que esteve com um fantasma e foi uma espécie de caçador caçado. Trata-se, como vemos, do exato oposto do que se passava no folheto de J. Borges, onde a personagem criticada era a moça, que só pensava em bailes e droga e não queria casar.

No folheto de Maria Godelivie, a jovem Margarida, pelo contrário, desde o momento em que surge na obra, chorando à entrada do baile, porque o seu par não viera, revela-se uma personagem simpática. E sobre ela nunca se diz nada desagradável, o que faz os defeitos de Óscar parecerem ainda maiores.

Outro aspeto que contrasta com o que encontramos na obra de J. Borges é a explicação dada para a aparição do fantasma. De facto, na primeira estrofe do folheto de Maria Godelivie, diz-se que os fantasmas voltam para fazer aquilo que não puderam concretizar em vida. Portanto, quando, mais tarde, o leitor fica a saber que Margarida é um fantasma, compreende imediatamente que a sua aparição é uma tentativa (votada desde o início ao fracasso, o que toca o leitor ainda mais) de encontrar o amor e ser feliz, algo que não pôde conseguir devido à morte prematura. Estamos, pois, bem longe da presença do fantasma na terra vista como um modo de purgar os pecados, tal como encontramos em J. Borges. Neste contexto, a explicação apresentada por Maria Godelivie revela-se, pois, uma posição feminista, ou pelo menos pró-feminina.

Um aspeto mais claramente feminista deste folheto está patente na caraterização de Margarida como uma personagem com sentimentos, que se apaixonou por Óscar (o qual, mal sabia ela!, apenas queria mais uma conquista), como mostra a cena (inventada pela autora) em que a moça aparece, durante a noite, chorando e agarrando o casaco do rapaz, destroçada por não poder levar em frente tal amor, um verdadeiro amor impossível. Acontece que, nas versões da lenda “O fantasma que pede carona”, quase sempre quem tem sentimentos (ou pelo menos desejo) em relação à moça é o rapaz, sendo a moça apresentada apenas como o objeto dos sentimentos do homem. São raríssimas as versões em que se atribuem sentimentos à moça, e, mesmo nesses casos, os sentimentos são mais adivinhados do que claramente expressos. [30] Vista a esta luz, a cena criada por Maria Godelivie constitui, portanto, uma verdadeira reivindicação.

A defesa da igualdade entre os sexos é, aliás, uma caraterística da obra de Maria Godelivie que ela própria aponta numa entrevista concedida a um grupo de alunos da Escola Severino Cabral, da sua cidade natal, Campina Grande:

 

Alunos: Em seu primeiro cordel, O Gostosão [publicado em 2002], você inverte a idéia proposta pelo título, fazendo com que o marido traidor se torne submisso à mulher. Qual o motivo dessa inversão?

Maria Godelivie: Primeiro para ficar divertido, segundo para dar uma rasteira nos homens. Meu maior objetivo é pegar no pé dos machistas, pois nosso mundo ainda é muito machista e sabemos que os seres humanos são todos iguais (Farias et al.).

 

Conclusão

Vimos neste artigo como a lenda “O fantasma que pede carona” foi aproveitada por dois autores da literatura de cordel brasileira (J. Borges e Maria Godelivie), de modos ideologicamente diferentes e, mesmo, opostos.

Será talvez interessante recordar que a mesma lenda foi posta em verso pela cultura de massas de outros países. Por exemplo, em Portugal, conheço duas folhas volantes com adaptações de tal lenda: uma de cerca de 1947 e outra provavelmente da década de 1960. Além disso, conheço um conjunto de versões recolhidas da tradição oral portuguesa pertencentes a três canções narrativas diferentes que, pela linguagem, pelo tipo de versificação e por informações dos próprios informantes, é possível concluir que foram inicialmente transmitidas em folhas volantes, a partir das quais foram decoradas e entraram na oralidade (ver Marques, 2008).

Em Itália, existiram também dois folhetos de cordel com adaptações versificadas de “O fantasma que pede carona” (ver Bermani, 1991).

Por outro lado, em vários países, existem músicas das décadas de 1950-80, gravadas em disco, que contam, à sua maneira, a história de “O fantasma que pede carona”. Conheço três dos Estados Unidos, uma da Espanha, outra da África do Sul (sobre todas elas cf. Marques, 2008: 350) e duas no Brasil. [31]

A enorme difusão oral de “O fantasma que pede carona”, em todos os continentes, e a sua adaptação, em diferentes pontos do mundo, sob a forma de folheto de cordel, folha volante ou música, mostra bem o interesse universal da história contada por esta lenda e sublinha que, para lá de diferenças de países, raças e línguas, as preocupações dos seres humanos são, afinal, basicamente as mesmas: neste caso, a interrogação sobre a morte e, portanto, em última análise, sobre a nossa vida.

 

NOTAS

1. Este artigo é uma versão revista e aumentada de Marques, 2011.

2. O leitor interessado pelas crenças em fantasmas e as lendas a elas ligadas na cultura europeia (que é a que está subjacente aos dois folhetos de cordel objeto deste artigo), desde a Antiguidade Clássica aos nossos dias, tem à sua disposição uma vasta bibliografia. Sem pretensões de exaustividade, citarei as seguintes obras: Capdecomme, 1997; Davidson e Russell, 1981; Études rurales, 1987; Felton, 2000; Finucane, 1982; Guzmán, 2017; Jobbé-Duval, 2000; Johnston, 1999; Le Braz, 1990; Lecouteux, 1996; Lecouteux e Marcq, 1990; Poulin, 1997; Schmitt, 1994.

3. Ou “O fantasma que pede boleia”, na variante europeia do português.

4. Beardsley e Hankey, 1942 e 1943.

5. Beardsley e Hankey, 1942: 305. No entanto, no artigo os autores apenas publicam 40 dessas versões.

6. No português de Portugal, “rapariga” é apenas o feminino de “rapaz”, ou seja, é sinónimo de “moça”, não tendo o sentido que a palavra adquiriu no Brasil.

7. Boleia = carona.

8. Casaco (em Portugal) = paletó.

9. Campa = sepultura.

10. Giro = bacana.

11. Varanda = sacada.

12. Miúdos= guris.

13. Malta = gente.

14. Terreola = vilarejo.

15. De cuja existência soube graças à amabilidade do falecido Roberto Benjamin.

16. Dessa edição possuo cópia em pdf, oferecida por Roberto Benjamin, que me informou também da sua presumível data.

17. A variante mais substancial é referida à frente na nota 19.

18. As citações que faço de A moça que dançou depois de morta são extraídas da ed. de 2004. Nas citações deste folheto e dos restantes que uso neste artigo, respeito a linguagem e também a grafia e a pontuação do original, corrigindo (no caso destas duas últimas) apenas alguns erros que contradizem a norma adotada nos folhetos pelos próprios autores.

19. É assim que este verso está na edição de 2004. Na edição s. d., de cerca de 1998, a que atrás me referi, este verso diz “daqui pra chegar 2 mil”.

20. A 1ª ed. deste folheto deve ser da década de 1980 (ver, à frente, o v. 1 do poema).

21. A doutrina sobre o Purgatório foi-se construindo ao longo da Idade Média e estava já muito generalizada em finais do séc. XII, embora só em 1254 tenha sido definida, por Inocêncio IV, tal como hoje a conhecemos (ver Le Goff, 1991: 181-184 e 379-380). Foi então que, a nível oficial, se fixou quer a existência do Purgatório, quer a sua categoria de lugar extraterreal. No entanto, no passado, figuras tão importantes como São Gregório Magno (papa de 590 a 604) tinham defendido que o Purgatório era não um lugar mas um estado de penitência, e que esse estado se passava na terra. São Gregório narra mesmo duas histórias (a que, do ponto de vista etnográfico, poderíamos chamar duas lendas de fantasmas) em que pessoas mortas em pecado (não capital) são vistas de novo na Terra, nos lugares onde antes tinham vivido, passando agora uma vida de dificuldades a fim de se purgarem. Essas pessoas pedem a quem com elas fala que rezem por elas, de modo a que o seu tempo de expiação passe mais depressa e possam entrar no Céu. Quem as ouve acede ao seu pedido e, dentro em breve, os penitentes desaparecem para sempre (Le Goff, 1991: 125-127). Também sobre estas lendas publicadas por São Gregório, ver Mariano e Marques.

22. Devo o conhecimento deste folheto à Prof.ª Doralice de Queiroz, a quem muito agradeço. Em Queiroz, 2006: 70-74, esta pesquisadora analisa o folheto de Maria Godelivie, embora não quanto ao aspeto das suas relações com a lenda, que abordo no presente artigo.

23. Como atrás expliquei, “rapariga”, em Portugal, é sinónimo de “moça.

24. Como atrás expliquei, “boleia”, em Portugal, significa “carona”.

25. Casaco (em Portugal) = paletó.

26. Morada = endereço.

27. “Ensino secundário” é, em Portugal, o mesmo que “ensino médio” no Brasil. A referência ao “secundário” não pode significar, claro, que a moça, quando morreu, frequentava tal grau de ensino, isto se o informante estiver correto ao dizer que (subentende-se que no momento da morte) ela tinha 27 ou 28 anos. Possivelmente, a referência ao ensino secundário significará que o informante conheceu a moça quando ela frequentava esse grau de ensino.

28. Apanhado da cabeça = com problemas mentais.

29. “Pá” (de “rapaz”) corresponde a “cara”, no Brasil.

30. Dos pouquíssimos casos que conheço, citarei uma versão de Porto Rico (publicada em Pedrosa, 2004: 40), em que, no cemitério, quando o rapaz introduz a mão no bolso do paletó (que estava em cima da sepultura da moça), lá dentro encontra uma flor, sem dúvida deixada por ela, talvez como sinal de amor.

31. São elas “Estranho Retrato”, interpretada pela dupla Sulino e Marrueiro, 1954, e “A Capa do Viajante”, pela dupla Jacó e Jacozinho, 1964. Devo o conhecimento destas músicas ao folclorista Marco Haurélio, a quem muito agradeço.

 

Referências bibliográficas

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J. J. DIAS MARQUES. É doutor em Literatura, especialidade de Literatura Oral, pela Universidade do Algarve, onde é professor auxiliar. Desde 1980, tem-se dedicado à recolha e estudo da literatura oral portuguesa, nomeadamente do romanceiro. Sobre este género publicou numerosos artigos e a ele dedicou a sua tese de doutorado. Nos últimos anos, tem-se dedicado também ao estudo de outros géneros orais, nomeadamente das lendas. É coautor do Catalogue of Portuguese Folktales (2006), de Romances Tradicionais do Distrito de Bragança (2019) e de O Conto Tradicional Português no séc. XXI (2019). Coordena o Centro de Estudos Ataíde Oliveira, da Universidade do Algarve, dedicado ao estudo da literatura oral. E-mail: jjmarq@ualg.pt.




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