O nome de Juan Sánchez Peláez tem
sido vinculado sem reparos, desde o surgimento de seu primeiro livro, Elena y los elementos (1951), à introdução das proposições
líricas surrealistas em nosso país. Tal afirmação, reconhecida nos últimos anos
por aqueles que têm comentado sua obra, não pretende talvez afirmar que antes
dessa data não houvesse surgido entre nós outras tentativas criadoras de uma
atmosfera vizinha ao tratamento surrealista; tende bem mais a constatar que com
ele se inaugura uma adesão franca, uma atitude ante o fato político e sua
casual implicação vital, que guarda fidelidade com muitos postulados dos
manifestos do surrealismo. Não faltou, para tornar mais diligente esta notação
crítica, o assinalamento de uma espécie de ponte entre o autor de Un día sea (1972) e o renomado grupo chileno
"Mandrágora", um dos centros epigonais da situação surrealismo na
América Latina, com cujos integrantes travara amizade Sánchez Peláez em sua
precoce juventude.
A crítica
requer muitas vezes, em sua ambição catalogadora, juntar cifras e datas,
registrar as dissímiles variantes do assunto que indaga, e isto, mesmo que
amiúde útil, o é tão-somente para a intenção de manuais literários. A autêntica
valorização da poesia, no entanto, ainda que não evita a confrontação com tais
dados, demanda indispensavelmente outros meios menos mecânicos e supérfluos.
Hoje, transcorridas mais de duas décadas de sua publicação inicial, e situados
ante uma perspectiva que se beneficia por igual da distância e da evolução
definitiva do movimento ao qual se vinculara esta obra, resta tentar uma
exploração mais cabal dos méritos que contribuam para situá-la na hora
presente. A uma indagação desta índole, indispensável no momento de se
esclarecer a tentativa ulterior de nossa lírica, à qual a poesia de Sánchez
Peláez serve de valiosa referência, querem contribuir estas páginas.
A década de
70 abriu, por ato de uma vanguarda que não cede em polêmica a seus
predecessores, uma carta precatória implacável contra os bastiões ideológicos
do surrealismo. É verdade que a Breton e os seus lhes escoltou sempre a firme
rejeição daqueles que disputavam por outras vias os dons da imaginação. Em seu
próprio seio não foi sempre unívoca a intenção e resultou difícil sufocar
dissidências que posteriormente aconteceram, não saberíamos se para bem ou para
mal. Não obstante, o ajuste de contas parece chegar agora de posições mais
intransigentes. Enquanto que herdeiros do dadaísmo, os surrealistas, desde o
princípio, foram adversários, com especial furor, do mito burguês da lógica, no
qual acharam encarnado o espírito desencadeante de grande parte de nossos males
contemporâneos. Reivindicaram, em troca, o sempre enfeitiçante universo da
magia, o delírio tantas vezes reprimido pelo ardil de uma cultura à qual
quiseram surpreender em flagrante delito. Junto a Rimbaud e Lautréamont, como
assinalou Maurice Nadeau, a imensa abertura traçada por Marx e Freud demarcou
um vasto sentido novo, de repercussões até então não espreitadas nos âmbitos da
teoria artística. O inconsciente, como recentemente se nomeava pela primeira
vez o antigo setial das musas, foi festejado com o mito do automatismo
psíquico, que lhe emprestou desde o início atributos sedutores de estirpe
neo-romântica. A crítica recente a que aludíamos pode, a partir deste ponto,
aparecer como uma calculada vingança da lógica. Em alguns números da revista
Tel Quel se desdobra um prontuário exaustivo que pretende por em evidência, com
uma lógica recalcitrante e minuciosa, servida por um despenhadeiro de incisos,
as infidelidades da teoria surrealista diante das obras de Marx e Freud.
Busca-se desta forma inquietar em seus mesmos cimentos o pedestal teórico que
serviu aos surrealistas para erigir seus controversos monumentos. No entanto,
talvez tenda a ignorar esta crítica que uma criação artística parte muitas
vezes não tanto do achado conceitual apodítico como da vivaz contradição em que
o humano se encarna mais em plenitude. Na verdade, qualquer que seja o mérito
desta expurgação, há de ajudar a definir a contribuição de um momento
fundamental na renovação estética de nosso tempo. Sendo assim, a gestão
anti-surrealista parece acertar em zonas vulneráveis, mesmo que não tenha
ultrapassado ainda o nível em que possa eludir seus próprios excessos. Assim,
Pierre Rottemberg, em uma afirmação que por inusitada parece nascer paradoxalmente
de algum estranho cadáver esquisito, chega a dizer que "Breton depende
sexualmente de Hegel", com o qual, extremando as deduções da psicanálise,
rende tributo a essa constante do espírito francês que faz da lógica, como o
espanhol com o barroco, quase uma fatalidade de destino.
Contudo,
este diagnóstico corrosivo poderá ser admitido como um instante de prova para
aqueles que, desde as fileiras surrealistas, souberam manter, além de sua
afeição ao grupo, a vigília ante o verdadeiro achado criador. A adesão a uma
teoria estética, qualquer que seja o nível de participação nela, se atém aos
imperativos da época e franqueia insuspeitáveis fatos temporais que a
condicionam. O que resta, se há de restar, é a sintonia individual em seu
alcance e em sua terrível limitação. Será, portanto, somente "o passar
pelo olho da agulha do eu" - como diz expressivamente Hilde Domin -, o que
torna possível a façanha do logro certo, e não a verossimilitude sempre cinza
da teoria, nem o respaldo de uma aventura comum, por meritório que esta possa
aparecer.
A partir
deste ângulo, Sánchez Peláez contava na pouco exímia tradição poética de nosso
país com a obra de um poeta de exceção, somente reivindicado nos últimos anos:
José Antonio Ramos Sucre. Advertir a necessidade de retomar, desde outros
níveis expressivos, o propósito daquele poeta solitário, é já um mérito de
visão que aclara e fortalece seu propósito criador. Dele herdará o traço
enfático e suntuoso da palavra, assim como uma vigilância tenaz que cuida da
tensão de sua poesia. Claro está, será outra a expressão de sua sensibilidade,
outro o universo que alimenta as formas de sua imaginação, e apenas a presença
do desejo como um ativo desnudamento do eu lírico, que alcança nele, como nos
surrealismos maiores, um nível mítico, bastará para diferenciá-lo. Porém o zelo
que governa cada poema por meio de uma seleção de palavra amiúde eficaz denota,
não obstante, certa fidelidade ao criador de Las
formas del fuego.
Uma poética
se manifesta sempre em uma pluralidade de tons com os quais, ao mesmo tempo em
que se livra da monotonia, verifica-se a si mesma através das gamas de sua
variação. Seu selo será dado, no entanto, pelo matiz prevalecente, aquele que
aparece mais repetidamente ou com o qual tende a nos comunicar um maior estado
de revelação. Talvez este tom central da poesia reunida em Un día sea radique em um estado de balbucio, de
dizer quebrado, que nos entrega o imediatismo de sua palavra poética:
Enquanto
todos cavilam, me embala, me embala
minha
melodia pueril.
Não é
cavilação, o jogo de imagens reprodutoras que puderam urdir o conceito, mas sim
a presença de um dizer em estado de voz nascente, que às vezes se torna
enfático, ainda que jamais corteje a eloquência. Mesmo em suas outras
representações, quando a voz se torna ligeiramente acusatória ouse investe de
fulgurações aforísticas, esse tom central de palavra circundada pela candura e
como se em dúvida de sua própria magia, serve para identificar o que ele chama
sua melodia pueril, sua tagarelice fugaz.
Porém será
na iluminação do amor, esse plano cósmico que talvez persista como o atributo
surrealista mais definitivo, onde seu verbo alcance seus melhores fulgores. Não
se apontou bastante a significação que para a sensibilidade de nossa língua, de
alturas místicas e elegíacas, alcança o tratamento do amor introduzido pelo
surrealismo. Muito mais do que em outras culturas, entre nós, onde vive uma tradição
amorosa devota de formas cristãs cavalheirescas, a adoção de uma atitude
semelhante reveste uma violência inusitada. Os surrealistas se propuseram,
ainda que muitas vezes suas conquistas fiquem abaixo de sua ambição, encarar o
amor como um estado de revelação permanente, como o único clima capaz de
devolver ao lânguido universo cotidiano sua magia e força vital. À luz da
presença amorosa, que transcende a pura experiência literária e chega a
encarnar-se em atitude ante a vida, cada momento adquire sua plenitude feérica,
seu estado de super-realidade capaz de dissolver a antinomia dos contrários. A
objetivação do desejo abre as fontes deste lirismo com uma consciência de
imediatismo como somente é possível encontrá-la nas civilizações que alcançam,
através do sensual, uma consecução de vitalizante plenitude. Sánchez Peláez
assume desde seus primeiros poemas esta chave da poética surrealista com um tom
tão natural que revela nele, antes que uma circunstância mimética, uma
espontânea identificação:
A Ela, que
burla minha carne, que desvela meu osso,
que soluça
em minha sombra.
Muitos de
seus textos ficam, por assim dizê-lo, apoiados sob este propósito, em fórmulas
recorrentes; retomam, em distintos planos, este mesmo motivo mítico que sempre
reaparece em sua criação. Aqui ou ali será Ela, a Ondina, a rosa invisível,
minha força e minha forma, a joia de abismo. Fragmentos dispersos reinvocados
sob a iluminação de um instante que correspondem entre si dentro de um único
poema total. Acaso a Juan Sánchez Peláez seja aplicável a a observação que
Octavio Paz faz sobre Paul Eluard, no sentido de que é autor em muitas
instâncias de um só e único poema.
Vistos nesta
outra perspectiva, os poemas de Un día
sea nos oferecem referências mais válidas do que as de assinalar a irrupção
do surrealismo em nossa poesia. Qualquer outro autor pôde propor uma adesão
parecida sem conseguir talvez mais do que um mérito ligeiro. Afinal, a
importância para a poesia não dependerá tanto disto como da consciência de
estabelecer prematuramente, a partir destes mesmos postulados, um selo próprio,
vigilantemente ativo, e de por em concordância com essa tentativa os demais
atos de sua vida. Se além do deliberado automatismo de alguns fragmentos, de
uma ilogicidade nem sempre útil, alguns de seus poemas contam como
imprescindíveis, e, portanto, surgem vitoriosos nesta hora de prova que
confronta o surrealismo, isto se deve a uma conquista de todo ponto individual,
que depende não tanto do campo teórico de sua aderência, como dos inatos dons
expressivos tornados realidade em sua palavra poética.
*****
Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC
Edições
Artista convidado: Ramón Chirinos (Venezuela, 1950)
Agradecimentos: Miguel Márquez
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries
especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 SEGUNDA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
10 AGULHA HISPÂNICA (2010-2011)
A Agulha Revista de Cultura teve
em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio
Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011
restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha
Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012
retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano
Martins e Márcio Simões.
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