Eu preciso destas palavras. Escrita.
Arthur Bispo do Rosário
A psicose
é um quadro de desordem mental, historicamente descrito como loucura. Modernamente,
coube à Psiquiatria a ampliação da terapêutica medicamentosa de seu tratamento que
se expande com a avidez criativa da indústria química. Uma de suas especificidades
é esquizofrenia. A palavra é a junção dos termos gregos ‘schizo’ para significar
cisão e ‘phrenos’ definindo espírito, sendo este último entendido, pela Filosofia,
como razão e capacidade humana de entendimento.
Ampliando o conceito de demência precoce de Emil Kraepelin (1856/1926), o
psiquiatra suíço Eugen Bleuler (1857/1939) foi o primeiro a utilizar esse termo
em 1911, para designar pacientes com desligmento dos processos formais de pensamento
e embotamento afetivo. Caracteriza-se pela fragmentação das formas de pensamento
e da incapacidade de se estabelecer distinção entre vivências internas e externas.
De sintomatologia variada como alucinações, labilidade afetiva e delírios, esquizofrenia
é um impeditivo para que o sujeito estabeleça laços sociais e afetivos. Dissociação,
demência, discordância e produção fantasmática, deterioração intelectual a identificam,
mais o sintoma acessório do isolamento. Sigmund Freud (1856/1939) cunhou o termo
“parafrenia”, entendendo-o mais próximo da matriz “paranoia.” Sua etiologia é incerta,
embora seja consenso que seu desencadeamento ocorre por razões internas e ambientais
um deles comum na atualidade: as substâncias psicoativas. Seu tratamento passou
por mudanças significativas a partir do Século XVIII e, com o advento da Psicanálise
expandiu-se em novos quadros terapêuticos com a potencialização do processo comunicacional
pautado na linguagem posta no binômio fala/escuta. A partir de 1900, com a publicação
de A Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud (1856/1939), revelou-se o
inconsciente e instituiu-se o homem como ser de subjetividade eclética, identificatória
e plural. Emergiu o homem em sua estrutura mental trádica e a humanidade inaugurou
um novo paradigma para o entendimento do sujeito. A complexidade dessa afecção,
a psicose, fez com que se desenvolvesse um conjunto de saberes que se conjugam no
tratamento, sabendo-se não se tratar de uma manifestação comportamental monolítica.
Expressa-se em uma diversidade de sintomas com reflexos comportamentais em um conjunto
de distúrbios que se entrelaçam como o delírio de ciúmes, a megalomania, o isolamento,
o fervor messiânico, quebras de sentido na fala, a exaltação persecutória e a erotomania. O diagnóstico psiquiátrico fixa a patologia e,
não raro esquece essas sutiliezas e fronteiras que demandam atenção vária uma vez
que na esquizofrenia, a forma mais aguda de psicose, não há um agente patognomônico.
Seus fenômenos são variados e mutantes.
Aparentemente incompatíveis, esquizofrenia e estética guardam estreita relação
no que diz respeito a criatividade, segundo o crítico de artes, psiquiatra e antropólogo
austriaco Leo Navratil (1921/2006). Entende o autor de Schizophrénie et Art,
ainda, que o pensamento criativo é um pensamento metafórico:
Podemos dizer que o pensamento criativo é um pensamento metafórico. É por
isso que considero a capacidade de se estabelecer uma relação entre as imagens distantes
umas das outras, de as contaminar e de as confundir, a capacidade de inventar símbolos,
como uma função fundamental da criatividade. (tradução do autor)
Pacientes psiquiátricos com afecções mentais graves que lhes limitam a fala,
como os catatônicos, podem se expressar-se em outras linguagens e nelas estarão
presentes dados relevantes para a condução terapêutica, em especial para o psicanalista,
cujo acervo clínico constitui-se na pluralidade das linguagens. Falas, gestos, expressões
faciais, tudo se agrega para a decodificação sutil do sujeito. E o desenho, a pintura,
a escultura mais todas as expressões da arte bi ou tridimensional são formas expressivas
de grande importância no processo analítico. A extirpação da orelha por Vincent
Van Gogh (1853/1890) é um dado visceral para o entendimento de sua passagem ao ato.
Assim como Estamira (1941/2011), personagem do filme brasileiro homônimo que fez
do lixo seu objeto de sentido para suportar o insuportável. O profeta Gentileza
com suas escritas pela cidade do Rio de Janeiro e Arthur Bispo do Rosário (19091/1989)
com sua tentativa de tecer seu próprio mundo a partir do surto. Contudo, o que Jean
Dubuffet (1981/1985) cunhou como art brüt não é um encadeamento dedutivo
da loucura. Para que essas produções sejam qualificadas como faturas criativas da
arte é preciso que sejam realizadas por pacientes capazes de originalidade na construção
de metáforas ou simbologias inéditas, rejeitados pelo status quo.
Arthur Bispo do Rosário (1909/1989) é um caso emblemático na junção de criatividade
e esquizofrenia paranoide. Apesar do reconhecimento internacional da crítica e das
academias, ainda que com exposições nos espaços mais reconhecidos da arte no Brasil
e no exterior, Bispo ainda é visto por boa parcela de pessoas como um exotismo particular,
uma extravagância pós-moderna, uma aberração plástica. A justificativa teórica que
confere estatuto de arte aos seus feitos paradoxais está n’A Obra Aberta, de Umberto
Eco (1932/2016);
Obra Aberta como proposta de possibilidades interpretativas, como configuração
de estímulos dotados de uma substancial indeterminação, de maneira a induzir o fruidor
a uma série de “leituras” sempre variáveis; estrutura, enfim, como “constelação”
de elementos que se prestam a diversas relações recíprocas. É nesse sentido que
o informal na pintura se liga às estruturas musicais abertas da música pós weberiana,
bem como àquela poesia “novíssima que já aceitou, por admissão de seus representantes,
a definição de informal. (1971:150)
Inicialmente a obra de Bispo toma o fruidor por um sentimento de terror, um
incômodo inexplicável, dúvida sobre o que é arte e, rejeição. A brutalidade de suas
montagens, arquitetadas com materiais encontrados ao acaso, muitas vezes lixo, vão
tomando de compaixão o olhar incrédulo na medida em que se reconhece o esforço e
a capacidade inventiva do autor. Ao deparar-se com os lençóis bordados e com os
estandartes, essa feição torna-se afeto. A obra é autônoma, significa por si, mas
sua interpretação depende da história manicomial do artista. Seu itinerário de vida
e artístico plasmam-se na obra com o molde da esquizofrenia ditando uma esteticidade
pungente em estímulos perceptuais para o fruidor. Bispo foi um desses pacientes em luta constante
para retomar a posse do consciente afogado pelo inconsciente em jorros. E conseguiu
fazê-lo signicamente ao codificar na expressão plástica traços de interioridade
dilacerantes, incomuns no padrão. Pelo exercício
da arte tridimensional construiu metáforas que o tempo vai se incumbindo de estudar
e dar-lhes fundamentos artísticos e psicanalíticos. Viveu 51 anos intermitentes
interno na Colônia Juliano Moreira em Jacarepaguá onde, naturalmente, fomentou a
idéia de que era um ser articulado com Deus e com a Virgem Maria. Advogava para
si poderes divinos, como consta em seu prontuário:
Apesar de poder nos ajudar muito em serviços internos e supervisionar doentes,
ajudar na alimentação, etc., este paciente está apenas em contato muito superficial
com a realidade. Ele tem diversos delírios místicos e de grandeza, se crê um enviado
de Deus, e pessoa “muito especial”. Perguntou se eu conseguia ver, através dele,
as suas especialidades. Se crê o “médico dos médicos”, etc. Ele se nega a responder
perguntas, baseado em seus privilégios especiais. As perguntas que ele responde,
são com respostas delirantes, tangenciais, e irrelevantes. Diz que trabalha quando
dá vontade. Por outro lado, ele é capaz de chefiar a equipe de trabalhadores e sente
o problema pungente de falta de cigarro
para recompensar os seus ajudantes. [i]
O diagnóstico psiquiátrico reza : Esquizofrenia paranoide, paranoide
(código 295.3 da Organização Mundial de Saúde). Essa foi a forma de se fixar a patologia.
Na esquizofrenia há uma desorganização do eu em relação ao mundo. Nela, a demarcação
entre o eu e os objetos se desfaz. Desordena-se a linguagem e o pensamento se desconecta.
Bispo manufaturou um universo significante nas onze salas que ocupou com seus tridimensionais
no esforço para reorganizar-se usando uma fala mnemônica. Sua poiesis é a
mesma pela qual passa o psicótico, em delírio criativo na forma de “passagem ao
ato”. Em alucinação Bispo foi orientado por vozes a reconstruir o mundo ao redor,
perdido para a desgraça da imoralidade. Seu feito estético é uma obra em progresso,
uma construção delirante bem sucedida. É de se lembrar o Caso Schreber que se disse
“a mulher de Deus.”, em claro esforço para a instituição de bordas para os excessos
do inconsciente sobre a razão. A análise psíquica relata Bispo como doente parcialmente
orientado em todas as esferas:
Uma pessoa com um dom artístico muito aguçado e que, segundo ele, está guardando
e construindo os instrumentos do homem para uma nova era. Sua avaliação médica apresenta
um exame físico com estado de nutrição ausência de lesões traumáticas, pressão arterial
de 140/80 mm Hg., pulso de 80 b/min., freqüência cardíaca 80. Não apresenta deficiência
física nem doença orgânica. Como tratamentos realizados, registram-se entre os medicamentos
os psicotrópicos e médico-clínicos, nenhum tratamento biológico (ECT ou insulina),
nenhum tratamento psicoterápico, nenhum tratamento praxiterápico, observando-se,
porém, que o paciente já tem atividade praxiterápica.
Na anamnese é inserido um registro de nome “Súmula Psicológica”, no qual constam
dados que confirmam observações anteriores, como “capacidade volitiva deficiente, nexos afetivos presentes, presença de alucinação,
ausência de agressividade em relação a si e a outros e ausência de estado de desorientação”.
A esquizofrenia é o quadro mais agudo de psicose e esta pode ser entendida
em cinco formas delirantes: psicose de ciúmes, erotomania, megalomania, delírios
místicos e delírios de perseguição. Em Bispo manifestaram-se as articulações delirantes
da grandeza e o delírio místico, evidentemente presentes na obra que, para ele não
era arte mas, uma tarefa a ser cumprida por ordem das vozes. Estas são comuns
na esquizofrenia e representam a presença de um olhar atento ao paciente. Sua vontade
de grandeza configurou-se na tarefa de produzir um manto ricamente bordado que vestiria
um dia para se apresentar a Deus, de quem era enviado.
O delírio é uma forma de se estabelecer certezas. Bispo se tinha como o juiz
dos humanos porque tocado pela certeza hierofânica de que era um ser enviado especial.
A supervalorização mórbida de si com predileção pelo majestoso o fez desenvolver
uma pungente obra paradoxal. Nela há recorrências temáticas e segmentos que se diferenciam
enquanto procedimento. Embora o contato com a obra revelasse de imediato o caos,
o quadro classificatório abaixo (feito pelo autor deste artigo) mostra a repetência
e as intersecções de procedimentos como um anagrama que se explica in totum.
Quando, nos anos oitenta, houve um movimento de humanização nos espaços de
reclusão Bispo, que vivia no Pavilhão Ulisses Caldas, separado dos outros pacientes,
recusou-se a se socializar. Sua vontade de afastamento do convívio justifica seu
diagnóstico inicial. Ocupava uma das onze salas de dois por dois metros onde foi
lotado, por ser um paciente rebelde na juventude. De repente viu-se só. Aos poucos
foi ocupando as salas vazias e nelas montou uma trama significante feita de objetos
que já haviam cumprido sua finalidade no mundo das utilidades.
Suas bases materiais eram-lhe trazidas por outros pacientes que nele reconheciam
alguém especial. A obra foi uma forma delirante de organização psíquica que lhe
permitiu posicionar-se frente à realidade que lhe escapava e que se confundia com
suas vivências interiores. O paciente engendrou signos que lhe reorganizavam lembranças
e reconstituía seu passado em narrativa particularíssima. Em placas de rua esculpidas
em madeira revestida de fios de lâ fixou a toponímia onde viveu a juventude, quando
chegou ao Rio de Janeiro vindo de Japaratuba (AL). Queria uma taxonomia do universo
onde pudesse se posicionar espaçotemporalmente. O que lhe faltou no inconsciente
a “céu aberto” (as categorias de tempo e espaço), foram sendo signicamente reorganizados,
marcados em ordenação constante de um cosmos particular e íntimo a quem poucos tinham
acesso, a menos que entrassem no seu delírio. Para se chegar ao seu feito o visitante
tinha que responder a pergunta: “Qual a cor do meu semblante?” Qualquer cor como
resposta significava o reconhecimento de uma qualidade pessoal que ele se atribuía.
Bispo, é o ser da expressão pura, por isso, um artista. Seu primitivismo é original,
embora não inédito. Contrariando toda a praxis artística realizada fora dos
muros da instituição desenvolveu uma metodologia criativa própria. A linha demarcatória
estabelece o ‘Ser das Vozes’, instituindo o delírio como a matriz para a construção
da obra. Dentro, quatro seres se dividem na forma expressiva: o ‘ser da figura real’;
o da ‘figura inter-ferida’, o da ‘escrita’ e o da ‘paixão’. Esta não é apenas uma
forma enfática e delirante de ciúmes que desenvolveu por uma estudante de psicologia,
que primeiro o estudou: Rosângela Maria Magalhães. É o fervor mórbido passional
pautado no delírio de ciúmes. Enquanto o demiurgo platônico dá forma à matéria desorganizada
do universo, Bispo se anima em uma organização interna, a partir da categorização
do mundo externo. Quer eliminar a fenda psíquica lutando para entender-se como sujeito
único diante da alteridade.
Registra o espaço intramuros em detalhes, recompõe obsessivamente o passado,
instaura no presente um soma cósmico que se expande pelo motor de sua vontade. É
o rei de um labirinto intransponível. Delírio e obra entretecem a alteridade interna
representada pelo inconsciente indômito a lhe ordenar ações sobre o mundo que o
faz inerte quando submetido à eletroconvulsoterapia, neurolépticos e insulinoterapia.
Produzir somas feitas de lembranças aplaca a angústia da esquizofrenia paranoide,
regula a labilidade e reconcilia o paciente com o mundo objetal que o inconsciente
lhe extirpou.
A arte é uma via estabilizadora nas psicoses ao demandar o pensamento criativo,
traço de personalidade que se realiza no picoticismo. Segundo Hans J. Eysenck, “O
ímpeto de transformar o traço da criatividade em realizações concretas por meio,
por exemplo, da atividade artística deriva de aspectos do temperamento psicótico,
sobretudo no estilo de pensamento abrangente demais.” (2012:321)
Leo Navratil entende que a psicose esquizofrênica não é apenas um desarranjo
do psiquismo, mas uma explosão de criatividade própria da humanidade inteira. Defende
que nas obras assim resultantes encontram-se as mesmas funções criativas que pautam
o processo criativo na cultura humana. Para ele a ordem
criativa está enraizada no psiquismo que se expressa artisticamente em de circunstâncias
exteriores particulares, em par com a excitação do sistema nervoso central. Define
a criatividade humana em três funções: Função Fisionomista, Função Formalista e
Função Simbolista. Expressivamente, uma ou outra dessas funções predominam. São
verificadas na arte moderna por razões históricas, sociais e pela própria evolução
das artes. O figurativismo, o mimetismo, o naturalismo, o verismo, ou melhor, a
mimese grega, após a Renascença iniciou um longo caminho em direção à abstração
concretizada com as Vanguardas Estéticas no Século XX. O progresso tecnológico forjado
pela Revolução Industrial, a emergência do Anarquismo com Mihail Bakunin (1814/1916)
cujo conceito de liberdade é a "a revolta do indivíduo contra todo tipo
de autoridade, divina, coletiva ou individual" influenciou a
produção artística em sua conjuntura pensamental e prática estética. Negar o estilo,
esconjurar as predeterminações estilísticas, rebelar-se contra o classicismo cuja
rigidez impunha a mimese como noção central da estética. Tudo convergiu para que
o inconsciente revelado se fundasse em novas expressões. O inconsciente coletivo
já vinha expresso em Pietr Brueghel (525/1569) Yeronimus Bosch (1450/1516) cuja
obra Jardim das Delícias revela a potencial expressão da subjetividade do Século
XVI na forma de composições formais de animais inexistentes dentro de uma flora
e fauna surreal. A noção maniqueísta contrapondo o pecado à virtude é um aspecto
de desvario messiânico ali revelado plasticamente.
As qualidades estéticas do desatino estão ali, cumprindo toda a estilística
do Século XV na representação emblemática da loucura. Mitos, crenças, bestiário,
repressão religiosa e salvação presentificam-se com clareza. Posteriormente, com
o Surrealismo, Salvador Dali (1904/1989), René Magritte (1898/1967) nas visuais
e Luis Buñuel (1900/1983) no cinema (Un Chien
Andaluz) retomaram as questões do inconsciente na expressão plástica. A Persistência
da Memória revela tempo e espaço inexistente, como inexistente são essas categorias
da lógica no inconsciente.
Leo Navratil interessou-se por uma forma expressiva, pura e espontaneamente
criada na forma de pinturas, esculturas, textos e colagens. Sua obra Schizophrénie
et Art tornou-se um paradigma teórico para os que se dedicam ao estudo da expressão
estética na esquizofrenia. Popularmente conhecida como primitiva, arte marginal,
outsider art ou arte psicopatológica, não está univocamente definida por algum
tipo específico de desordem mental. Jean Dubuffet cunhou o termo art brüt, que
parece ter sido adotado como consenso. São expressões plásticas individuais e genuínas,
produzidas por pessoas de alto poder criativo independentemente de seus fenômenos
patológicos. Sua longa e cuidadosa pesquisa com pacientes de diferentes instituições
psiquiátricas austríacas levou-o a definir funções relacionadas à esteticidade psicopatológica
que identificou, na forma de categorias:
A primeira função criativa humana dá-se quando o bebê ainda não se distingue
da mãe, quando o mesmo não faz diferenciação entre si e o mundo objetal. Trata-se
de uma percepção difusa, vaga, inarticulada e descontínua da realidade. É quando
primeira infância à mãe os cabem os cuidados, a organização da vida, o ensino da
linguagem, e a educação. As impressões puras
da percepção tomam as formas mais difusas que caracterizarão a percepção adulta.
Não há ainda uma fisionomia stricto sensu, mas uma atividade perceptiva em
formação. A obra e Impression soleil Levant, de Claude Monet (1840/1926)
é um indicativo dessa função em que as formas apenas se sugerem: um amanhecer dourado
esparzindo luminosidade dourada sobre a água onde um barco difuso descansa na parte
esquerda, sobre a água que não se diferencia do céu. Apenas a luz solar indicia
o tempo/espaço, corroborados pelo título da obra. Trata-se de feito de grande expressividade
que convoca a o receptor a construir imaginativa e anonimamente a realidade daquilo
que se mostra irreal. Cada qual à sua maneira.
Para Navratil, “É o momento em que
o mundo se ressente como qualquer coisa viva, de forma intensiva e diferenciada,
no momento em que as coisas recebem um “vrosto” é que se exerce a funçao criativa
fundamental.” (tradução do autor). Essa forma é produzida, em geral, sob
o efeito de estados psicóticos. A desproporção nas volumetrias, a falta de lógica
nas relações entre objetos, suas sobreposições chapadas, as deformações e a ausência
gravitacional caracterizam essa função criativa primeira. Bispo não se dedicou ao
desenho ou à pintura, uma vez que a maior parte de sua obra é feita de assemblages.
Seu figurativismo está nos bordados onde essa função se presentifica numa miríade
de formas aleatoriamente relacionadas e narrativas com sistemáticas quebras de sentido.
Bispo opera nesta categoria, especialmente nas narrativas em bordado sobre
lençóis, onde cria uma miríade de formas misturadas ao grafismo da escrita em blocos
temáticos que não dialogam, tal a sobreposição paratática. Não há subordinação narrativa,
mas uma disposição de elementos por similaridade. Não há uma relação hipotática
na obra.
Identifica-se pela repetição rítmica do movimento que, segundo Navratil opõe-se
às pulsões e emoções. Diz que “C’est dans la répétition rytmique qu’on retrouve
le mécanisme le plus primitif de résistance des pulsions e d’adaptation. (1978:57).
Heinrich Klüver (1897/1979), homenageado com a nomeação da síndrome de Klüver-Bucy,
sustenta que as alucinações visuais sob o efeito da mescalina, constantemente apresentam-se
na forma de geometrismo. Essas formas oscilam e se repetem, como se repete o comportamento
psicótico em todos os seus domínios. A tendência à organização comparece no ritmo
com vontade de se estabelecer uma regra que, figurativamente, se impõe pela repetição
minimalista de formas.
Freud tratou da “compulsão à repetição” em Para Além do Princípio do
Prazer, com exposição de uma dinâmica psíquica em Recordar, Repetir, Elaborar.
Há nesta função uma fusão de imagens de grande força emocional. Ocorre pela
contaminação de dois ou mais signos à maneira do que Freud chamou de “condensação”,
teorizada em A Interpretação dos Sonhos. Cadeias associativas plasmam-se
no inconsciente como formas significativas latentes e se impregnam na forma expressiva
adotada pelo paciente. É uma característica do pensamento inconsciente na forma
de metáfora na linguagem. Navratil entende que a vida psiquica dos homens repousa
sobre o pensamento simbolista e metafórico criando formas e reordfenando o caos
das pulsões. Alega, ainda, que pela simbolização o homem atinge seu mais alto nível
intelectivo. Na formação primal define os níveis mítico e mágico, a partir dos quais
inicia-se a formação do eu. Ao atingir o estágio da simbolização o homem tornou-se
capaz da linguagem e, com ela, tornou-se um ser sígnico e plural na recepção fenomênica
do mundo. Em Bispo essa função está muito clara no Leito de Romeu e Julieta.
Quando Rosângela Maria Magalhães estava prestes a finalizar seu trabalho de
formação em Psicologia, Bispo que a tinha recebido e por quem desenvolveu excessivo
ciúme apresenta a ela O Leito de Romeu e Julieta. Convida-a a vestir uma
camisola creme que havia conseguido não se sabe como. Ela recusa a proposta e ele
agrega que ela deveria vestir porque iam representar o drama de Romeu e Julieta.
Vendo que sua proposta não teria sucesso, Bispo se refaz e diz sorridente: “É apenas
teatro”. Lendo-se o objeto ricamente enfeitado com fios coloridos, um dossel branco
transparente em par com o propósito de se realizar um feito dramatúrgico, constata-se
a Função Simbolista. Há uma junção de finalidades. Bispo produziu, na realidade,
uma metáfora de sua vida com Rosângela e foi além. Impregnou sua ação com um feito
literário universalmente conhecido como a tragédia de um amor não realizado. Exatamente
como em sua relação com a estudante. Ele mesmo, ciumento, havia caído em simpatia
pela estudante e simbolizou seu afeto como metáfora da metáfora, adotando William
Shakespeare (1564/1616) para convencê-la. A separação foi inevitável. Isso marcou
o início da morte de Bispo. Deixou de se alimentar. Só queria trabalhar em sua tarefa
de reconstruir o mundo. Rosânagela se foi. Com os dias, o rosto do artista transformou-se
esquálida expressão da loucura. Os períodos de abstinência haviam-no tornado uma
face ressecada, sustentada por um pescoço frágil, afinado e lento. A carapinha mantinha
ainda um resquício de negro brilhante, ressaltado por chumaços brancos. A boca conservava
uns poucos dentes atrás de lábios finos e de desenho impreciso. As mãos eram grossas,
resultado dos mais de 70 anos de história escrita pelo trabalho artesanal, pela
reclusão e pela vontade de superação. A voz mansa tinha quebras sintomáticas de
sentido. Tudo eram “coisas do céu”. Os olhos conservavam a expressão de distanciamento,
e a fala era plena de certezas, certezas de que o homem havia cumprido a função
para a qual teria vindo à terra: reconstruir, remontar, refazer em nome da Salvação.
Arthur Bispo do Rosário morreu em 05/07/1989. Foi enterrado como indigente.
JORGE ANTHONIO
E SILVA (Brasil). Mestre e Doutor em artes pela PUC-SP. Membro da APCA - Associação
Paulista de Críticos de Artes. Autor de Arte
e Loucura, Arthur Bispo do Rosário; Wega
Nery (Pantemporâneo), Jornalismo Cultural: Apontamentos, Resenhas e Críticas em Artes Plásticas.
Página ilustrada
com obras de Tita do Rêgo Silva (Brasil), artista convidada desta edição.
***
● ÍNDICE # 99
EDITORIAL | A pronúncia esquecida da realidade
ESTER FRIDMAN | Quer a humanidade ser livre?
FLORIANO MARTINS | Valdir Rocha e o mito transfigurado
GABRIEL JIMÉNEZ EMÁN | Leonora Carrington y surrealismo novelado, por Elena Poniatowska
JORGE ANTHONIO E SILVA | A poética na esquizofrenia
MARIA LÚCIA DAL FARRA | Gilka Machado, a maldita
PEGGY VON MAYER | Volver la mirada a Ninfa Santos
RIMA DE VALLBONA | Indicios matriarcales en las comunidades chorotegas
SOFÍA RODRÍGUEZ FERNÁNDEZ | Homenaje a Max Rojas
VIVIANE DE SANTANA PAULO | Tita do Rêgo Silva e o mundo fantástico, faceiro e colorido da xilogravura
***
Agulha Revista de Cultura
Número 99 | Junho de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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