terça-feira, 4 de julho de 2017

MARIA LÚCIA DAL FARRA | Gilka Machado, a maldita


Nelson Rodrigues se dizia leitor assíduo de Gilka Machado, e acrescentava que ela o havia influenciado. [1] Embora a frase fique um tanto ameaçada pela paixão do “Anjo Pornográfico” por Eros Volúsia (filha da poetisa, notável bailarina), os versos de Gilka condizem de fato com a temperatura transgressiva e com certa marginalidade, típicas da obra do dramaturgo brasileiro. [2]
A poetisa, que deslumbrara e desorientara a crítica a partir de Cristais partidos (sua ruidosa estreia em 1915), fora muito pobre: sujara sempre as mãos para ganhar a vida e trazia os estigmas do trabalho. Desde moça, era diarista da Estrada de Ferro Central do Brasil e, da morte do marido (1924) até a formação dos filhos, seria cozinheira da pensão com que sobreviveu no Rio de Janeiro, para “não morrer de fome” – segundo ela mesma nos informa. [3] Seus poemas foram escritos “à beira do fogão”, aonde preparava refeições para os fregueses, dentre os quais dois eméritos intelectuais: Andrade Muricy e Tasso da Silveira, fundadores da revista Festa em 1927, na qual Gilka passaria a publicar.
Se, durante a sua vida, ela foi agraciada com o aceno de ser uma das maiores senão a “maior poetisa brasileira”, [4] tudo não passara de prêmio de consolação ou, no dizer de Wilson Martins, de “tentativa psicanalítica de reduzir-lhe a importância”, [5] de neutralizá-la. Osório Duque Estrada vem a público em 1937, para defender a reputação da amiga e para esclarecer que seu nome glorioso angariara rancor e despeito dos “pequeninos, venenosos e malevolentes rivais”. Sendo odiada e invejada por alguns desses, foi afrontada “covardemente com as mais repugnantes e mais nojentas maldades”. [6] Eis aqui alguns de seus versos para que se tenha ideia da especulação que em torno dela se nutria, visto que neste nosso país, em trânsito da República para o Estado Novo, nem todos “os brasileiros estavam preparados para lê-los, sem extrapolações falazes”. [7] Eis o soneto:

Beijas-me tanto, de uma tal maneira,
boca do meu Amor, linda assassina,
que não sei definir, por mais que o queira,
teu beijo que entontece e que alucina!

Busco senti-lo, de alma e corpo, inteira,
e todo o senso aos lábios meus se inclina:
morre-me a boca, presa da tonteira
do teu carinho feito de morfina.

Beijas-me e de mim mesma vou fugindo,
e de ti mesmo sofro a imensa falta,
no vasto voo de um delíquio infindo…

Beijas-me e todo o corpo meu gorjeia,
e toda me suponho uma árvore alta,
cantando aos céus, de passarinhos cheia… [8]

O poema, emblemático da postura pioneira de Gilka, enuncia, como se vê, a rendição da fala diante do prazer que, aliás, vai se multiplicando até convertê-la em puro princípio de vida: em árvore cantante. A mulher abdica do dizer (dizendo isso) para usufruir o gozo – legenda que talvez sugira o quanto Gilka foi, pela inteligência nacional, simultaneamente apreciada, criticada, vilipendiada e ridicularizada. A Academia Brasileira de Letras lhe outorga em 1979, um ano antes da sua morte com 87 anos, o prêmio Machado de Assis pela publicação da Poesia Completa. No entanto, o que se coroava ali era um silêncio, uma desistência. Porque, a bem dizer, essa poesia já se completara há mais de quarenta anos atrás, quando, depois de muito dialogar na intimidade de seus versos com seus detratores, Gilka abandonara o ofício, se suicidando em vida.
Olhando-a partir daqui, vejo que os ataques desferidos contra a sua prática poética mais se adensam na altura da publicação de Meu glorioso pecado, em 1928. Nesse volume, ela assumia com orgulho, e desde o título, as pechas culturais do feminino que vinha exaltando em poemas sensuais sobre o interdito, tanto em Estados d’alma (1917) quanto em Mulher nua (1922). De maneira que é a partir de então que passam a frequentar a cena pública certos preconceitos desembainhados contra ela: a sua carência de educação formal, a sua origem familiar e a cor da sua pele. E o pior: muitas vezes esses ataques se originavam de fogo amigo, como se, para perdoar a vocação de Gilka para o impronunciável fosse preciso assacar intangíveis razões. Ao mesmo tempo, os editores abusam dela. É verdade que seus volumes se esgotam: mas apenas porque todo mundo tem curiosidade de conhecer o “livro imoral” – como ela mesma sublinha em entrevista. No entanto, para vender mais, e sem o seu aval, os editores publicam edições apressadas, com profusão de erros tipográficos, com omissão de versos e, além de tudo, com arbitrariedades chocantes: trocam o inefável título Meu glorioso pecado por um anódino “Poemas”, talvez com o interesse de angariar também um outro público-leitor, além daquele afoito a fantasias sexuais, há muito assegurado. Denunciando a impunidade de “barbaridades assim”, Nestor Vitor insiste que “seria irrisório um autor, sem dinheiro, questionar judicialmente a propósito”. E concluía reparando como, nessa atual fase da carreira de Gilka, a tratavam de forma tão “displicente”. [9]
Outro crítico (que não se identifica mas que busca defendê-la da acusação de pouca leitura e de pífia formação intelectual) comenta que Gilka é “limitada, por circunstâncias diversas, a uma cultura quase exclusivamente intuitiva” e que, portanto, não tem podido contar com “os recursos maravilhosos de um conhecimento claro da poesia universal”. Todavia (era necessário compreender) nunca fora seu fito a “construção magnífica”, mas antes o “direito de sentir e de pensar como os impulsos íntimos lhe ordenam”. [10] Ora, nesse contexto tacanha, o argumento cai como mosca no mel. Eram justo os “impulsos íntimos”, a “sensualidade exaltada”, a “embriaguez dos sentidos”, a “vertigem sensual” que semeavam na sua poesia essa suspeição moral. “Bacante dos trópicos”, é como Agripino Grieco a chamara; “tempestades de carne” é como Humberto de Campos denominara seus versos; “bailado voluptuoso”, é como Emílio Moura cunhara sua obra. [11] Ainda assim, faz espécie que seja por tal viés que as cogitações acerca dos frenesis poéticos de Gilka deságuem na sua ancestralidade familiar e na sua tez.
O argumento de que a poetisa era uma “artista nata e impetuosa” [12] entra aqui como consequência de Gilka ser proveniente de uma família de artistas, músicos, poetas e atores, enfim, de gente boêmia. De maneira que (como mexerica o ferino Lindolfo Gomes para o não menos fofoqueiro Humberto de Campos) ela padeceria “da tara da família”, muito embora fosse menos “vítima” do “sangue familiar” que do marido. Este a obrigaria a escrever “aqueles versos escandalosos”, só para tirar disso [sic] “proveito de empregos e de relações”. [13] Ajunte-se a estas ferinas suposições um depoimento não menos empenhado de Afrânio Peixoto a Humberto de Campos, datado de 1930, e ver-se-á do que é capaz a maledicência – contanto que apoie o preconceito.
Todo compungido e tocado pela miséria e pela sujeira da escura “alfurja” [14] onde residia Gilka na Rua da Misericórdia, Afrânio revela ao amigo que Gilka não é “aquela moça branca e vistosa” que se mostra “nos retratos”, mas sim aquela “mulatinha escura, de chinelos, num vestido caseiro” que lhe aparecera então à porta. [15] Só à luz desta citação pode-se entender por que Gilka, na dita entrevista, se refere a Humberto de Campos com tanto rancor, asseverando que se tratava de um inimigo, de um difamador. E a opinião a seguir, que é da lavra dele, possui a bondade de insinuar, para além da mordacidade contumaz, aquilo que Humberto de Campos (e, por que não a intelectualidade brasileira da altura?) entende por “maldito” – acepção divulgada por Verlaine a partir de 1883. Eis o seu veredicto sobre Gilka:

Leal com a sua musa, imaginou a ilustre carioca que poderia externar em versos, impunemente no Brasil, como Lucie Delarue-Mardrus, Marceline Desbordes-Valmore ou a condessa de Noialles, todo o ardor da sua mentalidade de crioula. E foi uma temeridade. Ao ler-lhe as rimas, cheirando a pecado, toda a gente supôs que estas subiam dos subterrâneos de um temperamento quando elas, na realidade, provinham do alto das nuvens de uma bizarra imaginação. Sátiros que andavam soltos acenderam subitamente as narinas, aspirando o ar, com os dentes à mostra. Ignoravam eles, na sua materialidade, que há um vale profundo entre o pensamento e o sentimento, e que o reflexo do temperamento é este, e não aquele. [16]

A citação é dúbia e matreira. O crítico parece tomar o partido da poetisa contra os subdesenvolvidos sátiros da nossa republiqueta de banana, quando, na verdade, se compraz em explicitar o preconceito pela “mentalidade de crioula”, fortalecido pelo “pecado” e associado aos “subterrâneos de um temperamento”. Repare-se também que Campos divide Gilka em duas, dilacerando-a: de um lado, ela é o tal temperamento ardoroso e o sentimento; de outro, a bizarra imaginação e o pensamento – cisão que, aliás, já vem percorrendo toda a fortuna crítica de Gilka, como se verá. No entanto, as poetisas citadas se encontram a salvo, fora do seu alcance e suspeita, e ali se localizam para contrastar com o sub-reptício primitivismo intuitivo de Gilka. Elas não são brasileiras – escrevem em francês (e imediatamente, aqui, a mítica geográfica entra em ação). Assim, embora externem em versos suas “mentalidades” femininas (e, certamente Lucie Delarue-Mardrus lhe fizesse espécie), ficam impunes, fora da sua jurisdição, visto que só Gilka, dentre elas, é “crioula”. Dentre as três estrangeiras, já se sabe, há uma “maldita”: a loura Marceline Debordes-Valmore.
Ingressa em 1888 na coletânea de Verlaine, Marceline é a única mulher a figurar dentre os seis “malditos”, por “son obscuritée aparente et aussi absolue”. [17] Ao contrário do que se passa com Gilka, Marceline é estimada por seu crítico, que a leu via Rimbaud. Segundo saberemos mais tarde, Rimbaud se apropriara, em 1872, de um dos versos do poema “C’est moi”, escrito em 1825 por Marceline, e que era assim: “Prends-y garde, ô ma vie absente!”. [18] Tal frase, transcrita pela sua pena, vai fazer todo o sentido na poética rimbaldiana, a ponto de ser tomada, dentre outras, como simbólica própria. Reformulada por Rimbaud, ela ficará convertida em “la vraie vie est absente”. [19]
Marceline Desborde-Valmore, além de ter vivido num hemisfério diverso do de Gilka, também existiu num outro registro temporal; os contextos histórico-literários de ambas são muito diferenciados. A francesa vem do classicismo e percorre o romantismo francês, enquanto Gilka sai do parnasianismo e penetra no simbolismo-decadentismo, naquela zona difusa do pré-modernismo brasileiro. Marceline morreu quase quarenta anos antes do nascimento de Gilka, que veio ao mundo em 1893 e o deixou em 1980, com 87 anos. Marceline nasceu ainda no século XVIII, em 1786, e faleceu na primeira metade do XIX, em 1856, com 73 anos. Tão distantes as duas poetisas e, no entanto, com tantos pontos de contato biográficos!
Marceline vem, como Gilka, de uma família de artistas e vai trilhar a carreira de atriz, cantora e dançarina de teatro para se sustentar. Sua história pessoal é igualmente coalhada, do início ao fim, de misérias, sacrifícios, de trabalhos domésticos à beira do fogão, de costuras e da dura disciplina de copista dos papéis dramatúrgicos; vida madrasta repleta de desgraças e perdas, que lhe valeu o epíteto final (fornecido por Lucien Descaves) de a Notre-Dame-des-Pleurs. Marceline levou uma existência errante, de Douai a Guadalupe, ao Havre, a Lille, a Paris, a Bruxelas, a Milão, a inúmeras cidadezinhas da província francesa. Só na Paris dos seus derradeiros tempos, mudou-se catorze vezes de morada, vitimada pela carência de recursos, muito embora socorrida por pensões governamentais, insuficientes, no entanto, para arcar com a família e o desemprego final do marido, Prosper Valmore, que também era ator. Como Gilka, Marceline não brilha pela cultura e menos ainda pelo conhecimento aprofundado do ofício poético, posto que quase não leu e que teve apenas uma formação mediana. Era autodidata e sua ortografia se manteve sempre abaixo da média:

je ne suis pas plus instruite que les arbres qui se dressent et se penchent sans savoir pourquoi [20]

diz ela. Marceline também sofreu, como Gilka, o descaso dos editores, ela que, segundo consta, também teria negligenciado sua obra. [21] Como Gilka, Marceline escreveu sobre os filhos e se dedicou, com rebeldia, a denunciar os maltratos e injustiças sofridos pelos humildes e desvalidos. Em “Dans la Rue par un jour funèbre de Lyon”, a “mulher”, personagem do poema, reclama:

Nous n’avons plus d’argent pour enterrer nos morts.
Le prêtre est là, marquant le prix des funérailles ;
Et les corps étendus, troués par les mitrailles,
Attendent un linceul, une croix, un remords. [22]

A desconfiança que paira sobre os versos de Gilka e que atinge a sua biografia – paira igualmente sobre a vida de Marceline, mas não sobre seus versos. No caso desta, devido a um episódio de sedução que redundou em desprezo imposto pelo amante, na existência e na morte prematura do filho dessa união. Todavia, desconfianças sobre à continuidade desse relacionamento clandestino depois do casamento de Marceline com Valmore, acabaram dando trela a várias especulações. O bisbilhoteiro de plantão é agora Sainte-Beuve, que não mediu esforços para tentar decifrar o enigma do “Olivier” que comparece nos versos de Marceline. O crítico francês, que também pretendeu casar-se com uma das filhas da poetisa, suspeita que o sedutor da mãe tivesse sido o poeta Henri de Latouche, o conhecido “Loup de la Vallée”, com quem o casal Valmore manteve amizade durante vinte anos. Há, inclusive, uma deplorável versão de ruptura entre o casal e Latouche, que envolve a pretensão do Lobo de seduzir a filha de Marceline – de quem (se supõe) seria… o próprio pai.
Mas se entro nessas minudências biográficas mesquinhas e nessas suposições picantes, é simplesmente porque, no caso de Marceline, há uma expandida crença de que sua vida é sua poesia, de que toda a sua história pessoal de vicissitudes e sofrimentos pode ser lida, capítulo a capítulo, na sua poesia, que não passaria, afinal, de um documento inestimável sobre ela. Por isso referem tanto a espontaneidade da sua obra quanto a franqueza e a honestidade de sua pessoa, que jamais se censura, correndo até um risco quase perigoso. Compreende-se, nessa linhagem interpretativa, que o ritmo e a melodia ímpar de seus versos advenham, então, do abandono da sua carreira musical, visto que, deixando o canto, entregar-se-ia Marceline ao domínio da palavra escrita. Stefan Zweig, um de seus biógrafos, afirma que “é
sem exemplo, na literatura universal, esse delicioso milagre de uma sinceridade sem reservas, graças à qual, com a ajuda de pequenas canções, linha por linha, pode-se retraçar um destino feminino, edificar toda uma biografia sobre as poesias, sem que se encontre ali uma mentira ou uma hipocrisia”. De maneira que não há intervalo entre o que ela sente e o que ela escreve, e a sua poética, como o quer Jeanine Moulin, encerra “uma poesia do imediato, toda vibrante ainda do transe que a fez brotar”; daí a propalada “autenticidade” da obra da poetisa francesa.
Marceline parece de fato cooperar para tanto. Lendo-a, a gente se sente tentado a montar os vários quebra-cabeças que seus poemas vão desenhando ao longo de cada livro, graças ao clima de meias-palavras, segredos, mistérios e enigmas semeados, que funcionam como eficaz chamariz para o leitor vir a conferir o próximo desenrolar. De uma feita é o desafio de compor o nome verdadeiro do amante por meio do seu próprio; de outra, dele são fornecidos alguns índices, idade, viagens, fortuna poética; e assim por diante, num desfile de ingredientes pitorescos, sedutores e dramáticos, que atraem o leitor, como se ele se encontrasse diante de… um folhetim lírico – o que talvez explique simultaneamente a sua popularidade e a obscureza que atrai Verlaine:

Ma soeur, il est parti! ma soeur, il m’abandonne!
Je sais qu’il m’abandonne, et j’attends, et je meurs,
Je meurs. Embrasse-moi, pleure pour moi… pardonne (…)
Mais retiens tes sanglots. Il m’appelle, il me touche,
Son souffle en me cherchant vient d’effleurer ma bouche.

Se os três primeiros versos ilustram as cenas teatralmente românticas que apontei, os dois últimos expõem o cerne da afirmação de Humberto de Campos a propósito da legitimidade cultural em se “externar em versos”.
Mas, com Marceline, acontece o contrário de Gilka. Pintada por Goya, fotografada por Nadar, críticos e escritores de renome são seus fãs: Rilke, Balzac, Victor Hugo, Lamartine, Baudelaire, Sainte-Beuve, Vigny, Samain, Anatole France, Alexandre Dumas, e até mesmo o misógeno Barbey d’Aurevilly, sem falar em Rimbaud e em Verlaine. Tais apreciações tão unânimes esconderiam talvez algum travo da “complacência” masculina diante de uma mulher escritora tão modesta, ingênua e infortunada? Stefan Zweig conclui com uma asserção que pode botar lenha na fogueira. Segundo ele, Marceline “reconhece que a mulher, apenas pelo sofrimento e não pela alegria, desempenha seu papel na grande comunidade humana”.
Por seu turno, a interpretação de Verlaine não fica longe das versões mecanicistas de que a obra é vida e vice-versa. É verdade que ele puxa a questão para o nível formal, comentado que não há em Marceline nada de ênfase, de afetação ou de má-fé, e que seu grande mérito teria sido o de ter empregado com maior fortuna os ritmos desusados, sobretudo o de onze pés. Todavia, ele a apresenta por meio de transcrição de trechos de poemas, como num álbum biográfico: a mãe, a filha, a moça, a inquieta e sincera cristã, a jovem romântica, a grande amiga, a mulher de paixão mais casta e discreta, a mulher terna e altiva – conjunto de poemas que extrai dele vivas lágrimas. Também a aproxima de Évarist de Parny – como se sabe, autor de Poèsies erotiques, de Elégies, de Chanson Madécasse. Verlaine a vê como um “casto Parny” – o que é, aliás, um notável paradoxo. E postula: com George Sand (com quem não simpatiza), Marceline Desbordes-Valmore “é a única mulher de gênio e de talento deste século, e de todos os séculos, em companhia de Safo, talvez, e de Santa Teresa.”
Se, entretanto, Marceline não parece incomodar ninguém com o seu choro e os seus gritos de dor, conformando-se com o lugar que lhe foi oferecido socialmente como feminino, o que se vê em Gilka é bem o contrário. A maioria de seus comentadores atenta para o dado bizarro que patenteia sua obra (e de que ela seria a pioneira no Brasil): a “inversão de papéis” de gênero. Agripino Grieco se dá conta de que ela se apressa a dizer aos homens, como poetisa, “certas coisas que devia esperar que eles lhe dissessem primeiro.” [23] Medeiros e Albuquerque, refletindo que é muito “embaraçosa” a posição das mulheres, sobretudo quando se põem a cantar o amor, repara que Gilka tem coragem de “confessar certas inclinações que, em geral, as poetisas escondem”. Esse privilégio, que ela se arroga para si, de aludir ao sentimento amoroso descendo às “minúcias descritivas”, seria própria dos homens que, aliás, se comprazem com tais delícias. E conclui ele: “Até hoje pelo menos não se tem permitido” às mulheres fazerem o mesmo: é “impróprio o elogio do corpo masculino pela mulher, pois parece coisa brutal, luxuriosa, cínica”. [24]
Mas, para tentar explicar tal “inversão” sem constranger ainda mais a vitimada poetisa, aparece com propriedade a assacada cisão interna, aliás, uma vênia estratégica. Bem na contramão do que ocorre com Marceline, se olharmos para a fortuna crítica de Gilka, concluiremos que ela se empenhou em assegurar que a vida pessoal da poetisa não tem vínculo algum com a sua poesia. Assim, a mulher que comparece nos seus poemas não é aquela que os produz. Esta última, a crer ainda em Humberto de Campos, era “a mais virtuosa das mulheres” e “a mais abnegada das mães”. [25]
Agrippino Grieco também não faz diferente. Para ele é premente o ditame de advertir aos leitores de Gilka que as atitudes da poetisa pertencem apenas à esfera do “domínio da arte”, o que significa que são, em verdade, mui diversas daquelas que Gilka, a autora, desempenhava na sua “vida”, real, que ele qualifica, então, como “modesta e altiva”. [26] E é notável como Gilka, sempre em interlocução interna com a sua crítica, tematiza essa mesma divisão – mas enquanto prerrogativa feminina.
Num soneto de Meu glorioso pecado, Gilka expõe a sua existência de permeio, exibindo uma vida que se desenvolve num entre-lugar de si mesma. Esse eu, assim apertado, e que floresce apenas num intervalo, se manifesta com a inconveniência de uma tara, como uma existência fantasmática. Todavia, tal mulher espremida, apertada dentro da outra, é aquela que a seu lado se debate na cena sexual, protagonizando o outro lado do feminino, pois que nesse ato que se chocam, face a face (e em litígio), a mulher de carne e a mulher de espírito. Eis o soneto:

A que buscas em mim, que vive em meio
de nós, e nos unindo nos separa,
não sei bem aonde vai, de onde me veio,
trago-a no sangue assim como uma tara.

Dou-te a carne que sou… mas teu anseio
fora possuí-la – a espiritual, a rara,
essa que tem o olhar ao mundo alheio,
essa que tão somente astros encara.

Por que não sou como as demais mulheres?
Sinto que, me possuindo, em mim preferes
aquela que é o meu íntimo avantesma…

E, ó meu amor, que ciúme dessa estranha,
dessa rival que os dias me acompanha,
para ruína gloriosa de mim mesma!

Focando este poema, parece-me, ao fim e ao cabo, que aquela frase de Marceline, surrupiada por Rimbaud, não era sintomática apenas da modernidade desse poeta maldito. Pleiteiam-na, no contexto das relações entre vida e obra (afinal sempre à mercê da conveniência dos entornos), tanto Marceline Desbordes-Valmore quanto Gilka Machado, posto que nessa equação feminina alguma vida fica sempre ausente. 


NOTAS
1. Cf. CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Em 1932, Nelson pede a mão de Eros à Gilka, que a recusa.
2. Eros é a pesquisadora e a criadora da chamada dança brasileira, extraordinária bailarina de formação clássica que interpretou, em registro mestiço, desde Zequinha de Abreu a Villa- Lobos. Primeira mulher latina a ser capa da Life americana (em 1941), fora para ela que Carmen Miranda pedira licença para adotar sua definitiva coreografia de bahiana hollywoodiana.
3. Declaração de Gilka na entrevista à Nádia Batella Gotlib e a Ilma Ribeiro, em final de 1979, e transcrita em GOTLIB, Nádia B. “Gilka Machado: a mulher e a poesia”. Mulher & Literatura. 5º. Seminário Nacional Mulher e Literatura (org. Constância Lima Duarte). Natal: UFRGN, Ed. Universitária, 1996, pp. 17-30.
4. De fato, em 1933, a revista O Malho do Rio de Janeiro, realizou um plebiscito, e Gilka foi eleita a “maior poetisa brasileira”.
5. Cf. MARTINS, Wilson – História da inteligência brasileira, vol. VI (1915-1933). São Paulo: Cultrix, 1978, pp. 32-38.
6. Cit. por BRITO, Cândida. Antologia feminina. Rio de Janeiro: Edição de “A Dona de Casa”, 1937, 3ª. ed. , p.18. | ESTRADA, Osório Duque – (1937)
7. CF. CAMPOS, Humberto. Crítica. Rio de Janeiro: José Olympio, 1935, 2ª. série, 1ª. ed., pp. 314-315.
8. Uso a edição de Gilka Machado. Poesias Completas. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial Ltda, 1992, apres. de Eros Volúsia Machado. A partir daqui cito as páginas em seguida à transcrição do poema.
9. Cf. “Gilka Machado”. O Globo. Rio de Janeiro, 8 de julho de 1928. É Nestor Vitor quem nos fornece tais informações sobre o procedimento da Livraria Azevedo/Erbas de Almeida & Cia Editores do Rio de Janeiro.
10. Informação prestada pela revista carioca Terra do sol. Revista de Arte e Pensamento, n. 7, de julho de 1924, por meio de um comentário não assinado acerca das “Mulheres poetas do Brasil”. Trata-se de um texto publicado em 1924 na revista carioca Sol Poente.
11. MOURA, Emílio. “Poetisas (do “Esfinges” ao “Nunca mais”)”. Revista Terra de Sol, agosto de 1924, nº.8 (vol. 3), pp. 197.
12. Cit. por GÓES, Fernando. “Gilka da Costa Melo Machado”. Panorama da Poesia Brasileira (O Pré-Modernismo). Vol. V. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1960, pp. 165-175.
13. O verrino comentário citado por Humberto de Campos, no seu Diário Secreto .Vol.II (Rio de Janeiro:José Olympio Ed., 1954, p.63), teria ocorrido em 4 de junho de 1919, a propósito da publicação de Estados de alma.
14. O leitor estranhará o termo, para o qual há estas acepções: pátio interno descoberto, destinado a ventilar e iluminar os aposentos de uma casa; rua estreita, ou qualquer área, onde se atirava o despejo das casas; monte de detritos, de objetos velhos ou gastos, sem préstimo; monturo; lugar freqüentado por gente desclassificada; antro. Dentre todas podemos eleger aquela escolhida por Afrânio Peixoto.
15. Afrânio teria lhe revelado tais fatos em 18 de agosto de 1930. Cf. Diário Secreto, Opus Cit.p. 50.
16. CAMPOS, Humberto. Crítica. Opus Cit. p. 400. Os negritos são meus.
17. Uso ambas as edições: VERLAINE, Paul – Les poètes maudits. Paris/Genève: Ressources, 1979 e Los poetas malditos. Buenos Aires: Editorial GLEM, 1942 (traduzido a partir da edição de 1888, por M. Bacarisse). A citação pertence à ed. de 1942, p. 59.
18. Élégies et poésies nouvelles, Paris, Ladvocat, 1825. Cf. OEuvres poétiques de Marceline Desbordes-Valmore.Grenoble: Presses Universitaires, t. I, 1973, p. 111-112. ed. de Marc Bertrand.
19. Cf. Bivort Olivier, « Les « vies absentes » de Rimbaud et de Marceline Desbordes-Valmore”, Revue d'histoire littéraire de la France, 2001/4 Vol. 101, p. 1269-1273.
20. Cit por ZWEIG, Stefan. Marceline Desbordes-Valmore. Paris: Éditions de la Nouvelles Revue Critique, 1945, p. 51.
21. O parecer é de Jeanine Moulin, em Marceline Desbordes-Vamore (une étude par Jeanine Moulin, inédits, oeuvres choisies, bibliographie, fac-similé, portraits, documents. Paris: Seguers Éditeur, 1955, p. 10). Ela reclama por edições recentes, pois que nada mais foi editado até aquela altura. Não esquecer, entretanto, que Marceline é a primeira mulher a fazer parte da “Galerie Seghers”.
22. Cit. na antologia de MOULIN, Jeanine. Opus Cit, pp. 187-188.
23. GRIECO, Agripino. Evolução da poesia brasileira. Rio de Janeiro: José Olymío, 1947, 3ª. ed., p. 93
24. ALBUQUERQUE, Medeiros e. Páginas de crítica. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro Maurillo, 1920, p. 67.
25. CAMPOS, Humberto de – Crítica. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre, W.M. Jackson, 1945, 2ª ed., p. 400.
26. GRIECO, Agrippino – “As poetisas do Segundo Império”. Evolução da poesia brasileira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1947, 3ª ed. rev., p. 93.


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MARIA LÚCIA DAL FARRA (Brasil, 1944). Poeta e ensaísta. Foi professora da Usp, da Unicamp, da Universidade da Califórnia (Berkeley) e aposentou-se como titular da Universidade Federal de Sergipe, onde foi pró-reitora de Pós-Graduação e Pesquisa. Continua trabalhando como pesquisadora do CNPq e tem publicados sobre Vergílio Ferreira, O narrador ensimesmado (São Paulo: Ática, 1978), sobre Herberto Helder, A alquimia da linguagem (Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1986) e tem sete obras sobre Florbela Espanca, publicadas no Brasil e em Portugal. Autora de ficções, Inquilina do intervalo (São Paulo: Iluminuras, 2005) e poesia: Livro de auras (1994), Livro de possuídos (2002) e Alumbramentos (2011), todos pela Iluminuras de São Paulo. Página ilustrada com obras de Arcangelo Ianelli (Brasil), artista convidado desta edição de ARC. Página ilustrada com obras de Tita do Rêgo Silva (Brasil), artista convidada desta edição.

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● ÍNDICE # 99

EDITORIAL | A pronúncia esquecida da realidade

ALICIA LLARENA | Agustín Espinosa: Lancelot 28º - 7º

CARLOS OLIVA MENDOZA | Erotismo, pornografía y felicidad

ESTER FRIDMAN | Quer a humanidade ser livre?

FLORIANO MARTINS | Valdir Rocha e o mito transfigurado

GABRIEL JIMÉNEZ EMÁN | Leonora Carrington y surrealismo novelado, por Elena Poniatowska

JORGE ANTHONIO E SILVA | A poética na esquizofrenia

MARIA LÚCIA DAL FARRA | Gilka Machado, a maldita

PEGGY VON MAYER | Volver la mirada a Ninfa Santos

RIMA DE VALLBONA | Indicios matriarcales en las comunidades chorotegas

SOFÍA RODRÍGUEZ FERNÁNDEZ | Homenaje a Max Rojas

VIVIANE DE SANTANA PAULO | Tita do Rêgo Silva e o mundo fantástico, faceiro e colorido da xilogravura

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Agulha Revista de Cultura
Número 99 | Junho de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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