Se não me engano, a única vez que toquei no
nome de Herberto com Vergílio foi numa carta em início de 1974, quando lhe revelei
que me dedicaria à obra do poeta da Madeira no meu futuro doutorado (na Universidade
de São Paulo). [1] E, de fato, em 1979,
esse empenho resultaria num livro (publicado apenas em 1986 pela Imprensa Nacional/Casa
da Moeda) – o Alquimia da Linguagem (Leitura da Cosmogonia Poética de Herberto Helder).
Porém, naquela altura, eu havia acabado de defender (na mesma USP) o meu mestrado,
cujo título era O Narrador Ensimesmado
(O Foco Narrativo em Vergílio Ferreira)
– e Óscar Lopes havia demonstrado interesse em publicá-lo pela Inova. Discutíamos
justo tal possibilidade na nossa correspondência: se o original deveria seguir para
o Porto ou para São Paulo (no caso, para a Ática, onde foi deveras editado em 1978),
quando lhe dei a notícia sobre o Herberto.
Vergílio recebeu bem a minha escolha mas,
como me confessou, teria preferido que, em lugar de Herberto, eu me dedicasse à
poesia de António Ramos Rosa, seu muito próximo amigo. E ele me afiançava em carta
de 13 de Março desse ano que, “se Herberto Helder é um grande autor, o Ramos Rosa
não o é menos – e para mim é mesmo maior (o que sem dúvida tem apenas que ver com
uma questão de gosto pessoal).” Aliás, mais tarde, no Conta Corrente, ele sublinharia essa mesma preferência.
Estudiosos já sondaram
a presença de Ramos Rosa em Vergílio e vice-versa, e vislumbraram uma íntima cumplicidade
entre romancista e poeta, numa verdadeira conversa entre obras. Luís Mourão, por
exemplo, lê o romance de Vergílio, Em Nome
Da Terra, através de O Não E O Sim,
do poeta seu amigo, ambos publicados em 1990. [2] Tanto um quanto outro autor (segundo o ensaísta) teriam dado os seus
próprios “passos místicos” que, por pura convicção, se desviavam igual e coincidentemente
de quaisquer laivos divinos. Ana Paula Coutinho Mendes também lidou com essa proximidade
e pontua que cada um deles representava, para o outro, um “horizonte ou estímulo
de escrita”, ancorado numa “atração mútua pelo discurso da Filosofia”. Em textos
de Vergílio sobre Rosa ou de Rosa sobre Vergílio fica evidente que cada qual reflete,
na verdade, a si próprio e escreve sobre si mesmo na medida em que reconhece a obra
e os ditames estético-filosóficos do respectivo amigo. [3]
Sobre Vergílio
e Herberto, no entanto, o que me consta é que este assinou e dedicou pessoalmente
ao romancista cerca de treze dos volumes da sua obra, como se pode constatar pelo
Espólio depositado na Biblioteca Nacional de Lisboa. Os mais antigos registros datam
de 1961, os de Poemacto e de A Colher na Boca, muito embora O Amor em Visita, obra inaugural de Herberto
lançada em 1958, também esteja presente no acervo de Vergílio, mas com anotação
de 1974 e, como as outras, ostentando uma dedicatória do autor. O que indicia, da
parte de Herberto, um contínuo apreço ao romancista que, por sua vez, teria tomado
contato com a poesia dele pelo menos desde que o amigo Ramos Rosa lhe consagrara
um estudo em julho de 1961. Trata-se do texto “Poeta Órfico”, publicado no Diário de Lisboa e, no ano seguinte, no livro
Poesia, Liberdade Livre, de Ramos Rosa.
No entanto, em
Conta Corrente, Vergílio se declara desencantado
com Herberto logo após o 25 de Abril, a quem, como assegura ali, considerava de
fato o maior poeta do seu tempo, “logo a seguir ao Ramos Rosa”. Ele supõe então,
com certa ingenuidade ou malícia, que Herberto tenha deixado crescer a barba para
encampar o tipo oficial dos camaradas do Partido Comunista Português que, aliás,
na altura, contrariamente ao que especula Vergílio, Herberto desbancava em carta.
[4]
Vergílio era atacado
deveras por tais fantasias quando se tratava da esquerda, que lhe havia desferido
profundos e injustos golpes, e acabava se maltratando e se ressentindo com suposições
políticas equivocadas que dum momento para outro se transformavam em paixão exacerbada
e cega ou então em muxoxos ranzinzas, dos quais não escapavam nem mesmo os amigos
mais próximos – Eduardo Lourenço incluído. Aliás, Vergílio se mostra sempre susceptível.
Na sua correspondência com Jorge de Sena, não se intimida (em Agosto de 1964) de
revelar-se muito desgostoso e melindrado com o poeta exilado no Brasil, simplesmente
porque levara a sério (e de modo exaltado) um burburinho maledicente em que constava
ter Sena afiançado ser Vergílio um escritor “medíocre” – fato que ele situa nas
tramas de “uma conjura” que se montou contra ele, “através da querela do defunto
‘neo-realismo’”. [5] Sena, em contrapartida,
lhe redargüe interrogando (atônito) se também ele “vai deixar que o lixo o submerja”.
Tal argumento foi, ao que tudo indica, suficiente para fazer Vergílio voltar finalmente
a si.
Não é o caso, agora,
de defender de tais acusações injustificadas o Herberto (também ele desiludido com
o PCP, conforme me relata na sua correspondência de então, apodando-o de “estalinista”),
mas tão somente de apontar alguns encontros – talvez fortuitos e em registros muito
diversos – entre uma e outra obra.
Penso numa peça
de Os Passos Em Volta (1963), em que o
narrador nos ensina, em primeira pessoa, como adquiriu o seu “Estilo” – esse o título
do conto que, aliás, abre o volume. A questão urgente da existência, a “desordem
estuporada da vida” nos obriga, diante de experiências torturantes e contínuas,
transbordadas sobretudo em noites vazias e sem remissão, a buscar um jeito de suportar
o peso dessa evidência. Infelizmente, nenhum recurso é oferecido pelo médico, que
só pode nos receitar “barbitúricos”, e nem mesmo pela lição alheia – há gente, por
exemplo, que cultiva orquídeas e que se salva por essa via. O fato é que urge encontrar
um “estilo” para não darmos “em pantanas”.
Pois bem, nessa
cruzada, o narrador ouve Bach, pratica matemática, descobre a parecência entre a
música e as equações a incógnitas que ele se põe a resolver nas insônias, o que
lhe nutre certo fôlego para enfrentar o terror noturno quando “as grandes sombras
incompreensíveis” erguem-se no meio do quarto, quando “a imensa melancolia do mundo
parece subir do sangue com a sua voz obscura.” [6]
Todavia, o que
verdadeiramente o acode e o socorre é o “processo de esvaziar as palavras”. Ou seja:
ele escolhe uma palavra “fundamental” – não por acaso “Amor, Doença, Medo, Morte,
Metamorfose”. Depois, passa a articulá-la em voz baixa, uma, duas, três – vinte
vezes. Ao fim desse exercício, a palavra resulta como que desencarnada do seu significado,
tornada alheia, sem sentido, de maneira que ele pode se apropriar dela à vontade.
Essa é, segundo o narrador, uma das maneiras de obtenção do estilo, meio de se safar
da loucura: de conquistar “aquela maneira subtil de transferir a confusão e violência
da vida para o plano mental de uma unidade de significação”.
Ora, a escrita
da poesia também compreende uma aquisição semelhante, do mesmo naipe. E isso porque,
na poesia (na Arte), o poeta se livra das contingências, delegando-as às criaturas
que a habitam. Assim, se no poema “Elegia Múltipla VI” de A Colher Na Boca (que Herberto cita nesse conto), as crianças enlouquecem
– são elas que perdem a consciência e não o poeta! Elas é que não conseguiram, afinal,
descobrir o seu próprio… estilo.
Acontece que, malgrado
a posse desse “estilo” (que, em contrapartida, pode nos encher de “parcimónia”),
nunca se deve abdicar da insanidade, da “tenebrosa e maravilhosa loucura” – essa
sim mais condizente com a nobreza e com “o segredo da nossa humanidade”! De modo
que, muito embora o poeta se esforce por discernir para si um esquema, um teorema
de apaziguamento que lhe conceda enfrentar os avessos e desencontros da vida, evitando
naufragar na desmesura e no desvario – ele, sem tal poderoso combustível, jamais
produzirá, afinal, coisa alguma digna da sua condição de homem.
O conto, como se
constata, se prima pelo paradoxal. Por um lado, dá a receita para se buscar, se
encontrar e, por fim, simplesmente desprezar o notável achado que pode redimir o
homem da dor, do tormento e da alucinação, uma vez que sem estes tudo se desvaloriza
e se torna desprezível. Vê-se, pois, como tal posição, expressa nessa peça de Os Passos Em Volta, esclarece o caminho
trilhado pela própria poesia de Herberto, a sua maneira rigorosa de dizer o arbitrário,
suas obliqüidades e descontínuos, seu modus rimbaldiano de fazer a “alma monstruosa”
– a sua prática poética de “assassino assimétrico”.
Não esquecer, por
exemplo, que, em O Bebedor Nocturno (1968),
também tal “estilo” de esvaziamento das palavras é cultivado como maneira de “tradução”
poética. Herberto refere aí essa habilidade de pegar da palavra e vertê-la para
quinze línguas diferentes. Tal ocupação acaba dotando o significado de uma velocidade
impossível, transformando a “coisa”, que a palavra era, em uma “colorida e abstracta
proliferação sonora”, que, assim transubstanciada, vai viver em permanente “estado
de Babel”.
Na mesma linhagem
do poeta de “Estilo”, o poliglota de Herberto é agora concebido: “o seu pensamento,
partindo do hebraico, dá um salto quase místico no latim e cai de cabeça para baixo
no grego antigo. (…) Faz disparates destes: verte de nauatle para esquimó, emocionando-se
em banto e pensando em chinês, um texto que o interessou por qualquer ressonância
árabe.” [7] Esse processo aparentemente ingênuo de “estilo”
pode, pois, explicar não só a linhagem das
suas “versões” como também da sua poética.
Em Aparição (1959), há como que uma exposição
dramática e à flor da pele dessa mesma contradição encontrada em Herberto que, aliás,
também alimenta o filme Teorema, de Pier
Paolo Pasolini (1968). Chama a atenção que o título da obra do extraordinário diretor
italiano, sendo posterior à de Herberto, possua uma acepção tão semelhante à que
este faz transitar no seu conto, e sabe-se lá (já agora então!) a quê incógnita!
Em lugar do comedimento
e da circunspecção doados pela prática de um “estilo”, o que se vê em Vergílio e
Pasolini é o desregramento e o desvario ditados pela descoberta da ausência de razoamento
da vida – seja numa dimensão filosófica que, no entanto, traz seqüelas graves e
palpáveis, como ocorre em Aparição, seja
em termos sociais, quebrando tabus, como acontece em Teorema. A presença de um estranho que penetra num ambiente familiar
burguês descerrando valores que submergiam escorados na sombra e na mudez, passa
a decretar, da parte das pessoas concernidas, comportamentos díspares, desencontrados
e inesperados, que afetam sobremaneira as suas relações pessoais e sociais, alçando-as
a um absurdo paroxismo.
Em Aparição, é o ingresso de Alberto Soares
como professor na sociedade tradicionalista de Évora que, com suas inquietações
metafísicas, desencadeia uma reviravolta de valores e um atordoamento de direções,
incluindo patéticas fatalidades. Diante da descoberta da evidência da morte, Alberto
sente a necessidade de incorporá-la à plenitude da vida, e essa mensagem, tão óbvia
e ao mesmo tempo tão inocente e meritória, há de desarvorar as pessoas a sua volta.
Porque, ele constata (no diapasão vergiliano que, para o caso, é muito semelhante
ao do narrador de “Estilo”) que o flagrante
da vida que em nós se asila nos assusta,
como se fosse uma espécie de “vulcão brutal que sai de nós, o jacto do deus
que nos habita”, uma espécie de “monstruosidade que nos adormecia dentro”. Ora,
para sanar tal atrocidade, faz-se necessário, na nomenclatura de Herberto, enfrentar
essa “desordem estuporada”, ou, no registro de Vergílio, “justificar a vida em face
da inverosimilhança da morte” – o que obriga tais personagens a inaugurarem um “estilo”…
E, interessa-me aqui, particularmente, a maneira como Carolino, vulgo Bexiguinha,
monta a sua equação, o seu teorema diante dessa “aparição”.
Botando-se no centro
de si mesmo, crê Carolino que pode ver-se e sentir-se “de dentro para fora”, pode
descobrir “a pessoa” que está nele, que é ele. Carolino relata ao professor Alberto,
então, a sua “experiência” destinada à obtenção de tal fim. É a de “mastigar as
palavras” – e constate-se como ela é muito semelhante à do poeta de “Estilo”! Explica
então o jovem aluno ao professor:
- Bem… É assim: a gente diz,
por exemplo, pedra, madeira,
estrelas ou qualquer coisa assim. E repete:
pedra, pedra, pedra. Muitas vezes. E depois,
pedra já não quer dizer nada.
Carolino, no entanto,
acabará por enveredar na sedução da “loucura” que, ao contrário do que se passa
com o narrador de Herberto, não o fará desembocar produtivamente na poesia ou na
criação artística.
No rumo dessa atração,
Carolino há de chegar a concluir que, se já não há mais deuses para criarem, o homem
é quem deve ocupar esse posto vacante. Como o homem não pode criar, pode, no entanto,
matar, o que seria um gesto tão poderoso quanto o do Todo Poderoso. De modo que
Carolino se transforma em “deus” através do patético assassinato de Sofia. Matando-a,
ele supõe recuperar para si (canibalisticamente) o poder que ela detinha, a grandiosidade
do que ela era, a sua magnitude. Assassinando-a, ele se alça a uma altura que a
ultrapassa! E é assim que tal método acaba por destruí-lo, em lugar de o redimir.
Mas o curioso nessa
aproximação entre ambos os autores é que o processo descrito nas duas obras, buscando
para o absurdo da vida e da morte uma solução – é exatamente o mesmo: o de esvaziar
as palavras, o de mastigar as palavras, o de perscrutar aquilo que as palavras ignoram
a respeito do que há dentro de nós!
Outro componente
que surpreendo tanto em Vergílio quanto em Herberto diz respeito ao uso desportista
da “bicicleta”… Em Herberto, esse meio de locomoção busca dar familiaridade a uma
perscrutação espacial e semântica completamente desprovida de perspectivas e de
módulos referenciais – a esmo, desorientada e vagante. Ou seja: a bicicleta em Herberto
é a maneira de o poeta demonstrar que não pilota uma bike, que é ela quem
o dirige e maneja o poema para avançar pela lua, pelos satélites, pela memória,
pela neve – pelo nome:
A bicicleta pela lua dentro – mãe, mãe –
ouvi dizer toda a neve.
As árvores crescem nos satélites.
Que hei-de fazer senão sonhar
ao contrário quando novembro empunha –
mãe, mãe – as telhas dos seus frutos?
Novembro – mãe – com as suas praças
descascadas. [8]
Num processo combinatório
ao gosto de A Máquina De Emaranhar Paisagens
(1964), de Comunicação Académica (1965),
este poema de Electronicolírica (1964),
nascido sob a égide de sua versão anterior em A Máquina Lírica (1963) – utiliza, como esclarece o próprio Herberto,
“um limitado número de expressões e palavras mestras”, a fim de promover “a sua
transferência ao longo de cada poema”.
Reparo que os textos
desse livro são produzidos por meio de signos submetidos a uma dissolução semântica
que ocorre graças ao jogo de permutações entre tais elementos constitutivos. Ora,
voltando aos termos do narrador de “Estilo” ou aos de Carolino de Aparição, trata-se, de novo, do processo
de esvaziamento de palavras, do processo de mastigação delas. O fito do poeta de
Electronicolírica é, de novo, fazer as
palavras perderem o seu significado, deixar vagar nelas o significante em busca
de um novo sentido. E é assim que, depois de a “bicicleta” de Herberto percorrer
ao léu grandes espaços de significantes alheios, inusitados e dissonantes, ela acabe
se vergando ao peso – desculturalizado! – de um “grande atum negro”. De maneira
que um outro e inaugural significado nasce cavalgando o significante “bicicleta”,
depois de esta errar pelas distâncias entre palavras, versos, estrofes, exibindo
saltos de obstáculos pelos planetas e pela memória (no transcorrer das veredas selvagens
do poema). E esse novo significado, atingido pelo esvaziamento do significante é,
de fato, absolutamente insólito e imperscrutável, porque, então, a “bicicleta” se
transforma nesse grande e negro “peixe”. Curioso como “um grande atum negro” pilotando
uma “bicicleta” nos remete de imediato a um Hieronymus Bosch da palavra – e tão
contemporâneo!
Dessa forma, tal
como o constata já um outro poema intitulado decidicamente “Bicicleta” (e que está
em Quatro Canções Lacunares que, em 1965,
eram Cinco) – lá “vai [deveras] a bicicleta
do poeta em direcção/ao símbolo”, em direção “aos seus sinais”:
De
pulmões às costas e bico
no ar, o poeta pernalta dá à pata
nos
pedais. Uma grande memória, os sinais
dos dias sobrenaturais e a história
secreta da bicicleta. O símbolo é simples.
Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais
–
lá vai o poeta em direcção aos seus
sinais. [9]
Já em Vergílio, a “bicicleta” não é índice
dessa velocidade que adquire em Herberto, vertigem que vai triturando e modificando
o significado. Ao contrário, é movimento sim, mas muito mais um bulício interno,
de rememoração e de reinvenção, muito mais vagar, mergulho lento na paisagem e na
memória – morosidade que vai colocar, em Para
Sempre (1962), Alexandra contra Paulo. A jornalista Xana, enquanto representante
da contemporaneidade, há de envergar a bicicleta, então, como o símbolo que a distancia
do seu pai (Paulo), arqueado, segundo ela, sob o peso do passado. Este é bibliotecário
e, ao mesmo tempo, narrador do romance em pauta e também alvo da virulência jocosa
e das chacotas da filha modernosa, que se dizia pertencer a outro universo cultural,
mental e temporal que não o dele. No dela, há pressa, há urgência. No de Paulo (via
Xana), há apenas excessivo vagar.
Só que a preponderância desse exercício moroso
em Vergílio Ferreira dá-se como mola para as verrumações estéticas e humanistas
que caracterizam o teor pessoal e único do seu romance lírico-problemático. Como
diz Luís Mourão, se de fato há alguma “velocidade” em toda a obra do Vergílio, esta
se deve antes a uma “metafísica dos meios de transporte”. Em Para Sempre, a “bicicleta” é a “emblemática
do andamento silencioso e despojado”, que funciona como o seu modo específico de
conhecimento das coisas e do mundo. [10]
Para Xana, no entanto, a bike do pai não passa
de uma versão do… carro-de-bois! Ela se crê, diferentemente dele, representante
de um mundo “revolucionário”, do presente e do agora, que empunha como garantia
de realidade o “gravador” e aquilo que este relata e comprova. Essa técnica se encontra
no lugar do testemunho dado pela memória meritória que o perpetua, e da qual se
vale o narrador de Para Sempre, assim
como o emissor das Cartas a Sandra (1996)
– o mesmo Paulo bibliotecário, o pai de Alexandra.
Enquanto Paulo deplora intimamente em Xana
um ar “fadista” de desleixo e displicência, assumido por ela no agito de trabalhar,
como jornalista, em algum inquérito ou reportagem, ela o acusa caricata e risivelmente
de “múmia”, de recender “a mofo”, de ter a alma em “in-fólio”, de expor uma “vida
trabalhada a traça e a bafio”. E isso porque a filha acredita que a escrita do pai
nasça do hermetismo dum gabinete tumular, rodeado de quadros e de livros, de estantes
que não passam de cadáveres “em jazigo”, onde ele, sequer, pode se dar conta do
que ocorre para além daquelas paredes.
O tempo do livro, ao qual o pai se dedica,
escrevendo ou trabalhando, é, para ela, “o tempo da morte”, do “candeeiro de petróleo”,
“do óleo de fígado de bacalhau”, “dos botins, das cuias, dos palitos”, das “perucas,
das lamparinas e dos penicos”. Todavia, os
“modernos”, segundo Xana, os seus pares, estão “vivos e cheios de coisas a fazer.
O tempo do livro é o da imaginação trabalhosa e nós estamos cheios de realidade.
(…) O tempo do livro é o do carro de bois”. [11]
Como se constata, do ponto de vista de Alexandra,
o que Paulo produz não vai além de uma atividade ultrapassada, emanada do domínio
do arcaico, do que saiu fora de circulação e que não mais interessa, pois que caducou
– inútil demodé. O pai representa o que
a sociedade refugou, o que se situa no estágio antigo do artesanato relegado às
traças, ao tempo dos vagares, e está em definitivo sepultado no magnífico monumento-mausoléu
que o representa: a Biblioteca. Em compensação, para Xana (e ela se ufana disso),
escrever
É
diferente. Escreve-se um artigo como se toma um café. As pessoas lêem e deitam fora.
Se alguém o apanha, é para uma necessidade de momento. Para embrulhar castanhas.
Para utilizar na retrete, quando não há papel.”
Ela se dedica a uma necessidade instantânea,
fortuita, logo substituída por outra, índice do sinal fluido da modernidade. E não
é nem um pouco pejorativo, para ela, que o uso do jornal, mesmo quando reduzido
apenas a papel, faça parte da latrina ou do lixo. Tudo nela diz respeito ao “momento”,
ao que se usa e se joga fora – ao consumo. A sua geração é a “contemporânea”, visto
que se move pela agilidade do pensamento, em ritmo de pressa para acompanhar o compasso
dos tempos que seguem, em que a palavra nada guarda do sagrado que um dia a prodigalizou.
Ocorre que Xana não se dá conta de que, praticando esse ritmo de “bicicleta”, seu
pai escreve da maneira a mais “contemporânea” possível!
Em Vergílio, a situação do narrador é quase
imóvel, porque ele sempre se encontra, no presente, em estado de rememoração e de
escrita. Lembro que este se acha, por exemplo, “num quarto nu” (em Manhã Submersa), numa “sala vazia” (em Aparição), numa “cela de prisão” (em Estrela Polar e em Nítido Nulo), na aldeia vazia (em Alegria Breve), na casa vazia da infância (em Para Sempre e em Cartas A Sandra),
num “Lar” (em Em Nome Da Terra) e assim
por diante. É a posição solitária de ensimesmamento, de aparente paralisia física,
temporal e espacial que lhe propicia a mistura (quase imperceptível e, em seguida,
progressivamente indiscernível) do presente e do passado rememorado (e mesmo de
um futuro a projetar-se), graças à comoção que a revivescência provoca sobre a escrita,
mercê das conseqüentes distorções que a narrativa acaba exercendo sobre o discurso.
Esse encontro de escritas produz aquilo a que chamei (em 1973) de “intersecção entre
discurso e narrativa” – de “escritura”. E creio que vem daí – para definitivamente
polemizar com Xana! – o caráter invulgar e vanguardista
da sua escrita!
Vergílio Ferreira é o responsável, no moderno
romance português, pela adoção inovadora e atualizadora (em prosa) daquilo que Fernando
Pessoa supôs e executou em verso – da sua lição de “estilo”, da sua “chuva oblíqua”.
E, nesse sentido, a escrita de Vergílio ganha uma dimensão supersônica – quebra
a barreira do sentido. A bem da verdade, nem sei dizer que tipo de jato Vergílio
pilota já então. Um “mirage”? Uma miragem, um milagre!
E
uma solidão angustiante – como pude admitir que me esperassem? – sufoca-me quando
chego à cidade. Subitamente, na noite imensa. Tráfego cego, submerso, como periscópios
as luzes, traçam à superfície as linhas, o emaranhado da sua procura. Os reclamos
luminosos no ar crepitam, fazem sinais à noite, fazem sinais ao silêncio, cintilam
no mar, miríades de partículas de sol. Ouço a música ainda – ouço-a ainda? para
lá das arribas marcando o ritmo da ondas, balanceando na noite e a minha solidão.
Como a obsessiva memória do que nos feriu, cresce, independente, vem à superfície,
mergulhamo-la à força, vem à superfície como um pedaço de cortiça. Por fim resigno-me
vou com ela pelas ruas atrás de mim como um cão – o cão desapareceu no extremo da
praia. [12]
O fato é que a
capturação do real continua sendo um grande mistério! Em Photomaton & Vox (1979), Herberto nos explica que essa idéia da
“bicicleta” já estava, há séculos, em Fra Angelico. Na Anunciação, o Arcanjo São Gabriel está pilotando uma bike: como não se vê, o fato de pedir desculpas com
muitas cores (em azul, ouro e prata), mostra que o pintor está manipulando a metáfora
das asas nas costas do anjo para o anúncio da gravidez de Maria, ou seja, para a
“subversão da natureza”. Segundo Herberto, foi preciso decifrar completamente esta
metáfora para inventar a bicicleta.
Não esquecer que,
muito tempo depois (em Hollywood), Marilyn Monroe haveria de assegurar que é de
cima de uma bicicleta que se pode ver melhor a natureza… Tal como o poeta de Herberto
que, por sua vez, da bike passará para o skate, e deste, atravessando já convicções
motociclistas e automobilísticas, irá desembocar no tráfego aéreo verticalizado:
tudo num enorme esforço de “contemplar” a natureza, de capturá-la. Ah, o “estilo”! [13]
O fato é que Herberto
acaba saltando da “bicicleta” para o “helicoptère ivre”, adotando-o para si: afinal,
convenhamos, o real torna-se a cada dia mais arisco! De maneira que, no afã de atualizar
Rimbaud (esse grande inventor da visão abissal), tornou-se urgente, para Herberto,
substituir o tal “bâteau” por essa máquina tão poderosa quanto mais bêbada estiver!
NOTAS
1.
As trinta e quatro cartas de Vergílio a mim endereçadas foram depositadas nos reservados
da Universidade de Évora.
2. MOURÃO, Luís – “Em Nome da
Terra Ou O Não E O Sim”. Vergílio Ferreira:
Excesso, Escassez, Resto. Braga: Angelus Novus Ltda, 2001, pp. 15-22.
3. MENDES, Ana Paulo Coutinho
– “Vergílio Ferreira e António Ramos Rosa: o encontro entre o romancista e o poeta”.
Revista
da Faculdade de Letras — Línguas e Literaturas, II Série,
vol. XXII, Porto, 2005, pp. 271-290.
4. Carta datada de 27/07/1975.
O espólio das cinquenta e duas peças de Herberto Helder a mim endereçadas foi depositado
nos reservados da Universidade da Madeira.
5. Correspondência Jorge de Sena-Vergílio Ferreira. Org. e not. de Mécia
de Sena, intr. Vergílio Ferreira. Lisboa: IN/CM, 1987.
6. HELDER, Herberto – “Estilo”.
Os Passos Em Volta. Lisboa: Assírio &
Alvim, 1985.
7. HELDER, Herberto – O Bebedor Nocturno. Lisboa: Portugália, março
de 1968.
8. HELDER, Herberto – “A bicicleta
pela lua dentro – mãe, mãe –“. A Máquina Lírica.
Poesia Toda. Lisboa: assírio & alvim, 1990.
9. HELDER, Herberto – “Bicicleta”.
Quatro Canções Lacunares. Poesia Toda. Opus
Cit.
10. MOURÃO, Luís – Vergílio Ferreira: excesso, escassez, resto.
Opus Cit.
11. FERREIRA, Vergílio – Para Sempre. Lisboa: DIFEL, 1983.
12. FERREIRA, Vergílio – Nítido Nulo. Lisboa: Portugália, 1971.
13. HELDER, Herberto – “(motocicletas
da anunciação)” e “(a paisagem é um ponto de vista)”. Photomaton & Vox. Lisboa: Assírio & Alvim, 1979. O segundo texto
foi publicado antes com o título “Declaram que…” no Nova 1 (Magazine de Poesia e Desenho). Lisboa: Jornal do Fundão, inverno
1975-1976.
***
MARIA LÚCIA DAL FARRA (Brasil). Poeta e ensaísta. Página ilustrada
com obras de Wolfgang Paalen (Suíça, 1905-1959), artista convidado desta edição
de ARC.
ÍNDICE
# 102
EDITORIAL
| O amor pelas palavras
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2017/09/agulha-revista-de-cultura-102-setembro.html
ALFONSO PEÑA | Cali Rivera & el arte para ser libres
HAROLD ALVARADO TENORIO | Los Nuevos y León de Greiff
JACOB KLINTOWITZ | Click – a arte da inclusão
JACOB KLINTOWITZ | Marcos Coelho Benjamim
JOSÉ ÁNGEL LEYVA | Eduardo García Aguilar, extranjero y
sin banderas, el mundo es la raíz
MANUEL MORA SERRANO | Tres
fabulillas
MARIA
LÚCIA DAL FARRA | Da bike ao helicóptero: Vergílio Ferreira e Herberto Helder
MARIA LÚCIA DAL FARRA |
Vergílio Ferreira e a nostalgia da aura
RAFAEL RUILOBA | Rogelio Sinán
y sus voces mágicas
ARTISTA CONVIDADO |
WOLFGANG PAALEN, por Aldo Pellegrini
***
Agulha
Revista de Cultura
Número
102 | Setembro de 2017
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor
assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo
& design | FLORIANO MARTINS
revisão
de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe
de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os
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os
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