Em Cartas a Sandra, derradeiro livro de Vergílio Ferreira, ele desbastava
outra modalidade para a sua ficção: a de formalmente ligar entre si os romances,
à maneira de um ciclo. Era assim que este fecundo e alentado escritor português
inaugurava, aos oitenta anos, e às vésperas da sua morte, uma vertente nova e um
futuro outro para a sua escrita. No seu universo ficcional, essa obra pertence à
lavra do mesmo romancista de Para sempre, ou seja, do bibliotecário Paulo que, confinando-se
no final da vida na antiga casa da aldeia de origem, falece subitamente no ato mesmo
de escrever as cartas, a ponto de deixar incompleta a palavra onde a morte o aguardava,
emboscada. A vida que, entretanto, não cansa de imitar a arte, tratou de se incumbir
de escrever para Vergílio Ferreira, e na medida exata do seu gosto romanesco, o
mesmo gesto-limite que ele providenciara para o narrador desse seu último romance.
Através desse surpreendente enredo mirabolado pelo Fatum que, na sua precisa fusão de heróico e patético, faria inveja
ao próprio escritor – aquilo que se chama realidade acabaria por identificar, decididamente
(e já agora por inteiro), o romancista com seu narrador.
Se a emblemática do elo particularizara
a obra ficcional de Vergílio desde a origem, como uma marca de nascença, desenhando
interlocuções e ressonâncias entre a produção literária e a reflexão ensaística
(a ponto de a crítica referir-se à sua ficção como “romance-ensaio”), este último
volume, vindo à luz no ano do seu desaparecimento, se empenhava, de propósito e
explicitamente, num transbordamento de um para outro livro, executando tal irradiação
como condição sine qua non para a sua
existência. A propósito, é bom que se lembre que tal contiguidade entre suas produções
sempre lhes foi intrínsica, já que, a bem da verdade, foi Vergílio o escritor de
uma única obra, de uma obra, como o diz Eduardo Lourenço, que é a “encenação de
uma única história”, história que é “a lenta emergência, depurada de livro em livro,
do eterno conto de amor e morte.” [1]
A meu ver, é essa história do mesmo que Cartas a Sandra interrompe e sela como inacabada.
E é o caso de se perguntar: mas de que modo conceber como inconcluso um conjunto
romanesco tão frondoso e recorrente, cerca de dezoito tomos girando em torno de
um mesmo eixo? Atravessa, entretanto, este romance, uma inquietação que cria e encena
uma ruptura (e que só agora pode ser lida como o ritual antecipatório da própria
morte de Vergílio), que nos obriga a sondar as conseqüências que tal interrupção
(deveras absoluta!) acarreta ao destino da sua restante produção.
Não posso, pois, me esquivar
de reparar que estas Cartas (queiramos
ou não) metaforizam, como um oráculo, a situação do escritor que, desaparecendo,
lega-nos não só a obra publicada (cujo destino permanece sendo decidido por seus
leitores) mas também a inédita, cujo devir, para se efetivar, terá de passar antes
pelo crivo dos seus herdeiros. Coincidência ou não, o que sem dúvida mais encantaria
ao nosso autor neste seu cruzamento predileto de ficção e biografia, é que o proposital
corte imposto por Vergílio a Paulo autoriza ainda (como se prevê por meio da voz
da herdeira Xana) especulações que pedem o concurso fantasioso do leitor e que abrem
o conjunto da obra (do personagem, do seu
autor?) para uma indeterminação instigante. No caso específico da produção do bibliotecário-personagem,
obra que inclui, além do citado romance, outros dois inacabados e um longo ensaio,
seria preciso cogitar qual o espaço reservado para essas Cartas dentro desse plano mais vasto, qual o lugar em que elas se encaixariam
nesse corpus, ao qual, seguramente, irão
conferir outra feição. O mesmo se passa com esta obra no contexto dos outros romances
vergilianos.
Suponho que se compreenda, assim, com mais clareza, por que este
livro derradeiro antecipa a quebra que a morte viria imprimir à escrita de Vergílio,
no exato momento em que ele principiava uma nova trilha. A construção de um ciclo
que em Cartas a Sandra se origina, recuperando
outro romance publicado há treze anos, o Para
sempre (que deste modo se torna investido de sinais que se reatualizam à luz
desta epistolografia, permitindo-se uma leitura já num outro diapasão), aponta,
também da parte de Vergílio Ferreira, e dentro dessa “única história”, uma tentativa
inaugural que, sem dúvida, a morte frustrou impondo também à sua própria obra o
lacre de inconclusa – qualificação que, aliás, honra a todo e qualquer escritor
produtivo.
Tal como Vergílio, Paulo é um autor que se sobreviveu. Em Para Sempre, ele se recolhia, idoso, viúvo
e só, num movimento uterino de regresso à desativada casa de infância, a fim de
ajuntar suas lembranças e recompor-se uno diante da certeira morte. Mas é justo
esse gesto de inteireza que, ao prepará-lo unicamente para o fim, reconstrói-lhe
a vida, existência tecida com cautela dia a dia e sustentada por um projeto do qual
Cartas a Sandra dá conta até o momento
em que se suspende.
Há, portanto, de um para outro romance, uma demanda de inteireza,
de integridade, que ascende o homem para além dos limites contingentes da vida ou
da morte, extraindo dele a sua relatividade, por assim dizer. E é esse traço que
me interessa descerrar em ambos os livros.
Numa obra escrita há vinte
e sete anos, [2] eu perseguia, nos romances
de primeira pessoa de Vergílio Ferreira, a maneira paulatina de ascendência do narrador
sobre o personagem, cujo percurso acabava desembocando numa intersecção discurso-narrativa,
muito ao sabor do conjunto “Chuva Oblíqua” de Pessoa, onde eu localizava (quem sabe?)
a sua referência mais próxima. Fundando, pois, um modus operandi resultante do embate do passado sobre o presente (e vice-versa)
durante o próprio ato de escrita, tal procedimento (à falta de melhor termo) fora
designado de “escritura”. O livro se compunha, então, de um estudo que, iniciando
com Manhã Submersa, abarcava cronologicamente
os romances contidos entre este e Nítido Nulo.
De lá para cá, acompanhando o florescimento cada vez mais acirrado desse mesmo processo
na obra de Vergílio Ferreira – que, aliás, ocorre sempre em circunstâncias instituídas
pela presença de um narrador-personagem em atividade de registro da sua própria
história, à mercê do assalto das lembranças que invadem o seu discurso e também
da projeção do seu estado atual sobre o passado – me dei conta do quanto tal escritura
trabalha por transcender os limites contingentes da vida e da morte, numa tentativa
(digamos, filosófica) de absolutização do homem.
Ora, em Para sempre, essa escritura é praticada à
exacerbação, juntando fragmentos da narrativa a um condensado e também entrecortado
discurso, que não tem sequer como duração presente mais que tempo do transcorrer
duma tarde. A contaminação semântica entre narrativa e discurso alça essa escrita
a uma perda de referências temporais e espaciais, e acaba por pô-la a salvo de quaisquer
contingências ou marcas propriamente históricas. A cronologia de base também se
esfiapa, porque é antes naquilo que o narrador chama de “desejo do discurso” que
reside o comando dos fatos – e de maneira muito imperiosa.
Assim, por exemplo, a propósito
de Sandra, a finada esposa de Paulo, apetece ao “discurso”, na sua poderosa vontade,
fazê-la existir antes que, de fato, tivesse existido, o que, nesse tipo de escrita,
não é difícil de ser praticado. Apetece-lhe também que ela tenha cabelos loiros
e não pretos, como de fato os teria, que morra de aneurisma e não de câncer, como
de fato morreria, e assim por diante. Por outro lado, Paulo pode, como executor
desse “desejo”, também criar-se em duplo, de maneira que se defronta consigo mesmo
em diferentes idades, em circunstâncias diversas. Desta maneira, e enquanto narrador,
ele pode dar-se ao cúmulo de dialogar com tais personagens, seus sósias: com o Paulo-menino,
com o Paulo-rapaz, com o Paulo-caquético (ainda mais velho que o narrador e acompanhado
do cão Matraca, ambos apedrejados pelos meninos de rua) e até mesmo com o Paulo-morto
(cujo enterro acompanha).
Sendo que esse “discurso
desejante” embaralha todas as marcas temporais e espaciais ou contamina passado
e presente no ato de inscrever-se, aquilo que é narrado em Para sempre acaba por livrar-se dos traços da contingência, pendendo
para uma dimensão transcendente ao abrigo da vida e da morte, muito própria de quem
abandona a história e ingressa no mito – vontade de absoluto contra o permanente
desgaste das coisas que, aliás, o título do romance preconiza. Por sua vez, a intersecção
instaura sobre os acontecimentos um tipo de iluminação
semelhante àquela do milagre, da aparição, do flagrante das evidências, como se, através dessa força
que dota a linguagem, os fatos pudessem de novo se revelar inaugurais, emergindo
de um tempo aberto, sem limites – de um tempo
de origem, como sempre o desejou Vergílio Ferreira.
É o que acontece quando o
solitário Paulo regressa ao viveiro de lembranças que é a casa vazia da aldeia primeva,
entulhada de símbolos da infância. O passado morto lhe salta, a cada passo, diante
da vista e das emoções, em instantâneos, em fiapos de vozes, em fragmentadas fulgurações
– por meio da própria prática da escritura – com impacto notável. A velha e ampla
casa se torna, assim, um baú de guardados, um criatório de coisas velhas que fermentam
asfixiadas à espera de oferecerem a graça da sua revelação, espécie de sepulcro
latejante do antanho, de refúgio matricial, onde o passado se esconde para atocaiar
nosso narrador em cada cômodo, em cada gaveta, em cada traste. A casa é o outro de Paulo, ambos imagens do antigo,
do inútil, do ultrapassado, do falido, do que perdeu o uso, ao mesmo tempo em que,
meritoriamente, ambos são vivos repositórios do que feneceu e desapareceu, pois
que guardam e retêm, tal qual uma cripta, o irrecuperável.
O espaço presente, vazio
e imobilizado da casa, se encena, pois, como um lastro que desperta o passado, desértico
e único lugar onde a memória involuntária pode ainda se exercer
por meio de flashs, de cenas mudas, de
congelamentos de atos e súbitos desencadeamentos, de pontos-de-vista interceptados
pela presença de um objeto bloqueador do campo visual, de definitivos congelamentos
de personagens em cenas de blocos de cera.
[3]
Como se vê, expulsa do mundo
do cotidiano veloz pelos choques da vida contemporânea, a experiência sobre as coisas e a gratificante apreensão do fluir do tempo
tornam-se cada vez mais raras e não se executam mais generosamente enquanto absorção
continuada do universo onde nos inserimos ou como prolongamento aprazível de um
tempo no qual nos reconheceríamos. A experiência
pulsa em Para sempre apenas em jatos de memória puramente involuntária, aos trancos,
aos estilhaços e ao acaso. De maneira que estas bruscas e desenfreadas aparições
do passado manifestam, a meu ver, o quão fragmentada se encontra a aura das coisas num tempo de vivências – conceito que Walter Benjamim
contrapõe ao de experiência – e que, neste
romance, fica metaforizado pela instantânea ideologia da geração futura, pela de
Xana, a única filha de Paulo, aquela que aos vinte e um anos abandonou por completo
a casa paterna. [4]
Do ponto de vista dela, pois,
a atividade do pai bibliotecário e escritor pertence ao domínio do arcaico, do fora
de circulação, do morto, da memória do que se finou e não interessa: é mofo, é bolor.
O livro, matéria-prima do escritor e objeto de trabalho do bibliotecário, se insere
na esfera daquilo que a sociedade ultrapassou, na zona do artesanato, do tempo dos
vagares, da morosidade, e está em definitivo sepultado no magnífico monumento-mausoléu
que é a biblioteca. Em contrapartida, é o jornalismo aquilo que melhor significa,
em termos de escrita, a atualidade, a geração pós-moderna e a agilidade do pensamento
e do consumo, enfim, a pressa, onde a palavra nada guarda do sagrado que um dia
a prodigalizou. Assim, a crer na filha de Paulo, escrever para um jornal é dedicar-se
fortuitamente a uma necessidade puramente instantânea, logo substituída por outra,
sinal progressivo dos novos tempos. E não é nem um pouco pejorativo que o uso do
jornal, mesmo quando reduzido apenas a papel, se encontre em igual patamar, pois
que a palavra de ordem se reduz apenas ao “momento”.
Experiência e vivência, literatura
e jornalismo se embatem, e dessa forma configuram, em Para sempre, o choque entre duas gerações, a ser, depois de uma dúzia
de anos, dissolvido em Cartas a Sandra,
pois que aqui Xana, ela mesma, mais madura e exercendo já então a ingrata tarefa
de sobrevivente, há de publicar e prefaciar, quem sabe nostálgica da experiência
que desprezara, a literatura do pai morto.
Se, todavia, é apenas a aura
triturada e estraçalhada pelo desgaste do tempo a visão que o presente pode desentranhar
do passado, a vontade do narrador se dirige toda num esforço de preservação daquelas
cargas afetivas, buscando apreendê-las, agora, numa feição em que escapem do inexorável,
a salvo da ruína certeira do devir. Essa labuta contra a fragmentação da vida se
corporifica na procura de inteiração de si mesmo, nesse momento crucial de limite,
na iminência da morte. Paulo descobre, então, que para ser perfeito na sua totalização,
para afirmar categoricamente a sua presença no mundo como algo definitivo, deverá
reentender a vida em cada pequena cintilação, nada desperdiçando de tudo quanto
a habitou, integrando em si as evidências que um dia o iluminaram.
A prática da escritura e
a recorrência à experiência provocam, pois, a fulguração instantânea da lembrança,
pois que ambas fazem parte desse projeto de resgate da virgindade do ser, de recuperação
do contínuo inaugurar da vida, esforço comovente em toda a obra de Vergílio. Assim,
aliada a tais recursos, e contra o olhar gasto sobre o mesmo, escritura e experiência
fundam uma verrumação que permite fazer com que o objeto se transfigure e que ostente,
diante de nós, a sua alma, por assim dizer. Para tanto (e no idioleto vergiliano)
é preciso reparar vivissimamente, vivacissimamente nas coisas, até surpreender nelas
o instante em que nos afetam com a sua realidade misteriosa, com o seu maravilhamento,
com o seu milagre, no momento infinitesimal em que nos aparecem como algo novo por
inteiro, fantástico e deslumbrante. E eis (para falar em termos benjaminianos) a
forma de forçar as coisas a nos revelarem a sua aura – a manifestação irrepetível
de uma distância (por mais próxima que possa estar). [5]
Mas esse flagrante de absoluto,
que constrói um momentâneo de perenidade dentro do gratuito da nossa existência,
é, segundo a literatura vergiliana, privilégio da arte ou do sentimento estético.
Assim, na medida em que escreve um romance, Paulo trata da palavra, da que escreve
e da que procura: a primordial, a essencial, a que não seja coisa vã, a que tenha
um significado tão amplo a ponto de tudo nela significar, aquela que, como nos assegura,
apenas “a sabem os artistas, o poeta, o músico, o pintor, ou seja, os que não dizem
o que dizem, mas dizem apenas o silêncio primordial”. [5] E é na busca deste silêncio
através da palavra, na medida em que, pela escrita, ele recupera a vida, tomando
posse do seu destino como um ser que se unifica (muito embora para ser destruído!),
que Paulo obtém tal instantâneo de eternidade.
De igual forma, na casa vazia,
coadjuvando apenas com seus fantasmas, quando abre as janelas para o espaço deserto,
Paulo é assediado por duas grandes entidades que lhe despertam tal emoção fundante:
a imponente e grandiosa montanha, que ocupa todo o seu campo visual, batida pelo
sol e pela luz fulminante do mistério, e um intermitente canto longínquo, uma voz
de mulher, que ecoa não se sabe donde, e que é anúncio de uma alegria imorredoura.
O canto penetra e se imiscui por todo o romance e nele ressoa, do começo ao fim,
como a “voz da terra”, daquilo que está do lado de lá da vida, como o lugar onde
“Deus mora”, como “um ritmo de eternidade” e, ao mesmo tempo, como “a força selvagem
da germinação da terra”. E essa força telúrica que o canto abriga, de “escuridão”
e de “raízes”, é suficiente para, a cada entoação, salvar Paulo da certeza do perecimento,
redimindo-o em bem e em absoluto.
Já a vastidão colossal da
montanha situada à frente da casa desabitada permeia, por sua vez, todo o horizonte.
Ardendo a sua “combustão mineral”, esta força magna, majestosa e extática, tem o
peso hierático do imperecível, da infinitude, do inominável – diante da gratuidade da vida. Ela une o céu à
terra, retendo “a cor escura da idade do cosmos” enquanto apenas “potência nula
de ser”.
Do passado emerge, por sua
vez, uma música, a do piano, a das guitarras, a executada pela tuna da adolescência,
e a do violino, que ele volta a tocar assim que o retira da sua tumba – do caixão
preto onde desde então jazia. Tal música o confronta com o secreto e o terrível,
e, todavia e ao mesmo tempo, com o doce e o fascinante, num sentimento que o abeira
do sagrado. Provoca nele uma “ascensão”, um “esvaimento” e “uma força humana” que
se concretiza, por fim, numa “irmanação divina”.
Em Cartas a Sandra, Paulo também tem diante de si o poder benfazejo dessa
montanha que se enraíza diante da mesma casa que ele passou a habitar, povoada por
seus fantasmas; e é no devaneio de escalá-la e de dominar a sua força feminina que
encontrará a morte.
A instância narrativa destas
Cartas é um tanto bizarra, pois que Paulo
se endereça a uma receptora morta, a sua mulher, no aguardo de que, invocando-a
e recriando-a dessa maneira, Sandra volte a existir na sua escrita. Já aqui é bem
o caso de repetir, com Freud, que “a escrita foi, em sua origem, a voz de uma pessoa
ausente”. [7] E, de fato, pois que também
para Paulo a escrita em que reinventa Sandra é a sua maneira de continuar a existir.
Enquanto essa mulher encena
a vida resgatada através do verbo, da palavra, ela é, ao mesmo tempo, a figuração
da Morte, com a qual Paulo dialoga, deixando-se, passo a passo, arrebatar pelo seu
fascínio de fêmea, ao qual por fim se renderá por inteiro no transcorrer da décima
carta. Afinal a Morte, muito diversa da Sandra de Para sempre, imperativa, difícil e contestativa, é um idealizado onde
Paulo se mira e se reconhece, sem o malestar de ver-se questionado nas suas certezas,
já que Sandra, agora, subjugada pela escrita em que a aprisiona, em nada pode interferir
dentro da imagem em que a converteu. E se a casa é o refúgio materno, o regresso
ao útero, a Morte – e, por decorrência, a visão construída de Sandra – reitera o
mesmo abrigo, não mais enquanto função pré-natal, mas pós-agônica. Neste caso, o
abraço da Morte, que o enlaça no clímax do devaneio da entrega amorosa à Sandra,
se assemelha ao incesto primordial. No alto da montanha, na distância do mundo,
sob um vento genesíaco, numa comunhão com a Terra e com o Universo, o amor por Sandra
é a meritória passagem para o nada, para a reintegração com o cosmos, para o encontro
do Um.
São estas Cartas, portanto, pulsões de amor e morte,
ao longo do tempo em que Paulo continua aguardando seu fim, dilatando-o através
da escrita. E, nelas, o amor se equipara às prerrogativas redentoras da arte e à
nostalgia da aura. A maneira de apreensão de Sandra é muito próxima daquela do perscrutar
vivacissimamente. Ele a invoca até que ela venha a se manifestar, diante dos olhos
de Paulo, como a imagem impossível da soma de todos os momentos favoráveis que a
compuseram, flagrante que nenhuma fotografia pode registrar, já que nessa recriação
Sandra se encontra excluída de quaisquer traços de contingência, idealizada – tornada
legenda. E é desta forma que ela ascende à dimensão do incorruptível. Suas aparições
(tais como o invisível que, incrustrado no real, só muito raro se deixa ver e tão-somente
como milagre) encerram momentos de pacificação e de graça, como a visão dos místicos
e a inspiração dos artistas.
Para alinhavar esta notas
sobre Vergílio Ferreira, lembro apenas que, da sua perspectiva existencialista,
ele sempre persistiu em abrir, na sua obra, um oásis de transcendência onde o homem
pudesse se regozijar. Nela, o transcendente não é um valor preconizado para o depois,
postergado para a morte e confinado a uma esfera de alienação do indivíduo. Por
meio da arte, do sentimento estético e do amor, ele nos é prodigalizado no próprio
âmago da vida, onde ocupa o lugar de fonte perpétua de reatualização das evidências
da nossa contingência e, paradoxalmente, de sinal constante do emanar da eternidade.
Através da obra de Vergílio Ferreira, ao homem é dado a conhecer o perene, o transcendente
e o absoluto dentro de si mesmo – e isso é o que, de certeza, temos de agradecer-lhe
a mais.
NOTAS
1.
Eduardo Lourenço, “Na ausência de Vergílio” em Jornal de Letras (Lisboa, 13 de março de 1996).
2.
O narrador ensimesmado é refundição da
minha tese de mestrado defendida em 1973 na Usp, com o título de O discurso à procura do discurso (estudo dos
romances de primeira pessoa de Vergílio Ferreira).
3.
Sublinho a adoção, aqui, de certas técnicas de natureza cinematográfica, marcadas
por um estilo fragmentário.
4.
A experiência está relacionada, em Benjamin,
ao conceito de memória pura em Bergson,
à memória involuntária proustiana e à
memória freudiana. Conquistar a experiência é tornar possível o encontro
de elementos depositados como lastros inconscientes na memória, que afluem trazendo
o sinal do seu tempo, transportando o indivíduo àquele estágio do passado que ele
pode agora vivenciar (nesse sentido, não
há barreiras entre experiência e vivência). A experiência acarreta uma suspensão de tempo, justamente porque faz emergir
aquele retido pela memória. O célebre exemplo é o da madelaine proustiana.
Considerada
num sentido estrito, a experiência faz
coincidir certos conteúdos do passado individual a outros conteúdos do passado coletivo,
donde nascem as suas características de distância, irrepetibilidade e inacessibilidade,
por meio das quais Benjamin a integrará posteriormente à aura. A vivência, ao contrário,
seria o estado em que o indivíduo se encontra frente ao choque domado pela consciência
alerta. Quanto menos o estímulo se acomoda à experiência, tanto melhor se realiza o conceito de vivência, que advém da incorporação imediata
do estímulo ao registro da recordação consciente.
Cf.
Walter Benjamin, “Sur quelques thèmes baudelairiens” em Poésie et révolution (Paris,
Denoël, 1971, trad. Maurice de Gandillac, pp. 225-275).
5.
A citação é retirada de “L’oeuvre d’art à l’ère de sa reproductibilité téchnique”
em Poésie et révolution.
6.
Vergílio Ferreira, Para sempre (São Paulo,
DIFEL, 1983). Consulte-se igualmente Cartas
a Sandra (Lisboa, Bertrand, 1996).
7.
Citado por Ruth Silviano Brandão, em Mulher
ao pé da letra (Belo Horizonte, Editora da Universidade Federal de Minas Gerais,
1993).
***
MARIA LÚCIA
DAL FARRA
(Brasil). Poeta e ensaísta. Este texto foi publicado em In Memoriam, de Vergílio Ferreira, Org. Maria Joaquina Nobre Júlio, Lisboa, Bertrand, 2003, e aqui o
reproduzimos com autorização da autora. Página ilustrada com obras de Wolfgang Paalen
(Suíça, 1905-1959), artista convidado desta edição de ARC.
ÍNDICE
# 102
EDITORIAL
| O amor pelas palavras
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2017/09/agulha-revista-de-cultura-102-setembro.html
ALFONSO PEÑA | Cali Rivera & el arte para ser libres
HAROLD ALVARADO TENORIO | Los Nuevos y León de Greiff
JACOB KLINTOWITZ | Click – a arte da inclusão
JACOB KLINTOWITZ | Marcos Coelho Benjamim
JOSÉ ÁNGEL LEYVA | Eduardo García Aguilar, extranjero y
sin banderas, el mundo es la raíz
MANUEL MORA SERRANO | Tres
fabulillas
MARIA
LÚCIA DAL FARRA | Da bike ao helicóptero: Vergílio Ferreira e Herberto Helder
MARIA LÚCIA DAL FARRA |
Vergílio Ferreira e a nostalgia da aura
RAFAEL RUILOBA | Rogelio Sinán
y sus voces mágicas
ARTISTA CONVIDADO |
WOLFGANG PAALEN, por Aldo Pellegrini
***
Agulha Revista de Cultura
Número 102 | Setembro de
2017
editor geral | FLORIANO MARTINS
| floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO
SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO
MARTINS
revisão de textos & difusão
| FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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