A exposição
Reflexões Plásticas, de Valdir Rocha: uma enorme variedade de esculturas, pinturas
e fotografias das mais variadas formas, cores e influências (todas, segundo o artista)
é o que vemos ao entrar no salão – uma antologia de 50 anos de trabalho.
Ao longo da exposição, fica evidente a obsessão
(ou fascinação se quiserem) do artista com a cabeça e com a face. É como se o autor
explorasse, através de suas pinturas e esculturas, uma fisiognomia do grotesco,
dado que a grande maioria das pinturas e esculturas expostas retrata rostos estranhíssimos,
retorcidos, de expressão por vezes fantasmagórica e inquietante.
Não se trata, no caso da pintura, de retratos convencionais.
Pelo menos num dos que identifiquei (a obra Os súditos, o rei, a rainha e o seu
consolador, o bobo da corte e o candidato a santo) ocorre a superposição de pinturas
por cima de uma fotografia de Marilyn Monroe. Procedimentos como este, a apropriação
e transformação de obras e imagens, remete aos ready-made dos dadaístas e especialmente
de Duchamp (L.H.O.O.Q. – a Mona Lisa com bigodes). Porém, o que acontece aqui é
a plena superposição que termina por suprimir, tornar irreconhecível, a fonte original.
O procedimento de superposição, aplicado em diversas
obras de Valdir Rocha acaba por conferir às mesmas os traços de ambiguidade necessários
para que a exposição ganhe em sentido e contundência. Por exemplo, em sua, Lição
de Anatomia, uma releitura de Rembrandt, um sem número de incisões de cor branca
assola o quadro tornando este não só uma representação do título, mas uma verdadeira
anatomia da pintura. Perfaz-se, assim, o jogo de espelhos, onde a obra de Valdir
remete à de Rembrandt, enquanto a anatomia retratada é também uma estudo do próprio
quadro enquanto processo – um quadro que é vários.
Há, nessas obras, uma espécie de mascaramento.
De fato, Valdir Rocha, com suas Reflexões, parece jogar o tempo todo com uma poética
das revelações e dos ocultamentos, mostrando e escondendo histórias e personagens
(lembro-me do quadro Esconderijo, que mostra uma das famosas faces prestes a se
ocultar por detrás de uma parede). O jogo real me parece, no entanto, o de um eu
com seu outro, como se os retratos não fossem apenas a subversão das faces, mas
a plena apresentação de um eu interior – o outro, a verdadeira face. Para verificar
esse jogo dual, basta que nos detenhamos sobre os títulos de suas séries e a que
elas remetem.
Por exemplo, em Éden, Hades, a dualidade do eu,
sagrado e profano toma formas demoníacas e sombrias com prevalência das cores quentes;
nas Histórias mal contadas, o “eu” se apresenta na narratividade das expressões
e das formas escultóricas, mas essa narratividade é fragmentada posto que não costuma
chegar ao fim e, quando chega, nos leva a perspectivas ambíguas; suas Notas sobre
anatomia não apresentam um estudo do plano meramente físico, mas sim daquilo que
é imanente ao ser; seus Espectros, fotografias, nos convidam à cumplicidade, para
que vejamos não o que o autor captou na surpresa do momento, mas aquilo que nosso
íntimo projetará.
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A segunda obra é também uma escultura, de nome Confessionário. Trata-se de uma cadeira construída com fragmentos e rebarbas de
bronze retorcidas, em que a pátina dá uma singular tonalidade outonal, como se a
cadeira fosse composta por folhas caídas, prevendo a fragilidade daquele que se
sentaria para confessar os próprios pecados. O jogo aqui ocorre, portanto, entre
deslocamentos de sentido e sobreposição de imagens: estilhaços de bronze que ganham
o frágil aspecto de folhas secas, folhas secas que atestam a queda do eu já exausto
de suas misérias.
A terceira é uma pintura em acrílico transparente,
da série que Valdir chama de Jogo Duplo. Essa tela, na qual o pintor concluiu
uma de suas cabeças com cores bastante opacas, dando à obra um quê de nebulosidade,
gira suspensa por uma pequena fiação mostrando ora a frente, ora o verso. É, portanto
uma obra dupla: vale tanto observar sua frente, onde o artista aplicou tinta e pincel,
quanto seu verso (e aqui ocorre o surpreendente) onde as cores antes opacas ganham
uma vivacidade extrema.
As Reflexões Plásticas, de Valdir Rocha, espalhadas
pelo espaço expositivo, afirmam sua unidade através da multiplicidade. Embora presenciemos
uma miríade de cores, formas, estilos e influências, a busca do artista parece ser
uma só: a do eu profundo que há em nós, o eu profundo com o qual nos deparamos a
indagar o um rosto de bronze retorcido ou de cores lancinantes que nos observa friamente.
De fato, o artista não vem para explicar nada – complica e provoca. É como se Valdir Rocha nos quisesse mostrar que
somos mais vivos naquilo que ocultamos dos outros e de nós mesmos.
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ELVIO FERNANDES
GONÇALVES JUNIOR (Brasil, 1992). Poeta e ensaísta. Autor de O coração em si (2017). Contato: elviofernandes.goncalves@gmail.com. Página
ilustrada com obras de Valdir Rocha (Brasil, 1951), artista convidado desta edição
de ARC.
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● ÍNDICE # 103
Editorial | Os horizontes não param de brotar
ESTER FRIDMAN | Como tornar-se uma obra de arte - a escultura de si mesmo
GABRIEL JIMÉNEZ EMÁN | Algunas variaciones sobre la metamorfosis de Franz Kafka
HAROLD ALVARADO TENORIO Piedra y Cielo 1936-1942
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2017/10/harold-alvarado-tenorio-piedra-y-cielo.html
LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | O teatro de Aimé Césaire: Une saison au Congo
LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | Pier-Paolo Pasolini et l’anthologie de Mario Pinto de Andrade sur la poésie nègre de langue portugaise
MARIA LÚCIA DAL FARRA | Florbela Espanca e Ada Saffo Sapere: Alentejo e Reggio Calábria no feminino
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2017/10/maria-lucia-dal-farra-florbela-espanca.html
OSCAR JAIRO GONZÁLEZ HERNÁNDEZ | En la muerte de Germán List Arzubide (1898-1998)
OSCAR JAIRO GONZÁLEZ HERNÁNDEZ | Meditaciones antimetafísicas
PIER PAOLO PASOLINI | La Résistance nègre
ROXANA RODRÍGUEZ | Rubén Sicilia y el Teatro del Silencio
ARTISTA CONVIDADO | VALDIR ROCHA | ELVIO FERNANDES GONÇALVES JUNIOR | Valdir Rocha, um olhar sobre o abismo
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Agulha
Revista de Cultura
Número
103 | Outubro de 2017
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor
assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo
& design | FLORIANO MARTINS
revisão
de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe
de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
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