Li recentemente [1] em um jornal paulistano – um pouco pasmado com a peremptoriedade
de quem o escreveu – que a figuração está definitivamente banida do universo da
arte contemporânea. É tão inexata quanto aquela outra morte, tantas vezes anunciada,
a da própria arte – que no entanto jamais se consumou. Revela antes de mais nada
a desinformação do autor sobre o comportamento cíclico das linguagens artísticas,
seu ir e vir entre pólos opostos que se alternam. Dizer que a figuração está esgotada
é desconhecer que ela, assim como sua antítese, a abstração, repontarão sempre no
tempo, aqui e acolá, igualmente legítimas e sem qualquer hierarquia, em culturas
diferentes, em lugares diferentes, mas sempre perenes.
Além de figurativo, o
desenhista Jair Glass está ligado à tradição da arte fantástica, na qual – como
escreveu Goya numa de suas gravuras da série dos "Caprichos" –, "o
sono da razão engendra monstros". Isso o põe definitivamente fora de moda,
pelo menos no Brasil dos anos 1990, onde as forças formadoras da opinião estão a
serviço de um tipo de arte diametralmente oposto. O que se determina hoje como contemporaneidade
– se não como modelo hegemônico – é uma espécie de neo-minimalismo ligado à geometria
e construído só com a cabeça. Mas – de novo –, nenhuma arte, só por sua opção estilística,
pode ser decretada como a melhor, a desejável, a que deve ser estimulada. Não existem
regras a priori para que um modelo de linguagem seja bom e o outro ruim. Pode-se
ser bom sendo Mondrian ou Jackson Pollock, Mira Schendel ou Farnese de Andrade.
Não é por acaso que cito
o nome de Farnese, pioneiro da box form entre nós, que mereceria figurar
internacionalmente ao lado de um Joseph Cornell – de quem aliás ganha, em matéria
de profundidade dos universos tratados e densidade da poética. Farnese também não
está na moda, [2] justamente por ser
o mais perfeito representante de criador visceral no Brasil de hoje.
A despeito de outros raros
exemplos – talvez uma curta fase de Flávio de Carvalho, algumas aquarelas de Cícero
Dias, quadros pontuais do fim da vida de Ismael Nery, mais tarde a escultura de
Maria Martins –, a vertente surrealista, como se sabe, não prosperou muito por aqui.
Teríamos que investigar com mais calma por que motivos vingaram com muito mais brilho
os movimentos de natureza construtivista, começando pela influência do cubismo sobre
os modernistas, e culminando com o concretismo e o neoconcretismo nos anos 50. Faltando-nos,
pois, uma tradição surrealista, artistas como Farnese – que não é um surrealista,
mas tem algumas afinidades com a corrente – acabam sendo deixados à margem.
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Tampouco Jair Glass é surrealista, nem no sentido estrito (o uso de métodos para liberar a criação inconsciente, o "automatismo psíquico puro"), nem no sentido largo com que a palavra é empregada pelo público, pensando, por exemplo, em Salvador Dali. Pertence à estirpe que nasce, na cultura ocidental cristã, com os anônimos autores de certa estatuária gótica fundamentalmente expressiva e chega até o neoexpressionismo; aquela estirpe que trata com "a noite escura da alma" (para usar a bela expressão de San Juan de la Cruz), da qual é originária e à qual dá vazão. A simplicidade pessoal de Glass e a (pelo menos aparente) espontaneidade de sua produção não sugerem que ele esconda abismos dentro de si próprio – embora eles tenham que, inevitavelmente, existir. Surpreende o contraste entre sua doçura e timidez, a humildade intelectual e espiritual (o que não quer dizer qualquer tipo de ignorância), e sua obra povoada de estranhezas. Quão insondáveis são os desvãos da psiquê humana, provando que continuam verdadeiras ainda hoje – pelos menos nesses casos exemplares – as teorias freudianas (ou delas derivadas) sobre o mecanismo da catarse.
Pois no fundo do Jair
com que convivemos tão amenamente reside uma fogueira escondida, alguma força em
ebulição que ele só consegue controlar botando-a para fora metamorfoseada por sua
fantasia. A criação se torna instrumento particular de equilíbrio para sustentá-lo
no universo; é exatamente o mesmo que acontece com Farnese, Iberê Camargo, Flávio-Shiró.
Isso não basta, porém, para que se faça boa arte. É preciso acrescentar que Glass
possui uma instigante inventividade e grande articulação formal. Depois de ter apenas
desenhado, por muito tempo, nos suportes e formatos habituais dessa técnica, enveredou
nos últimos anos por recortes, colagens, costuras, aplicação de materiais diversos,
quase assemblages: talvez a assemblage se mostre particularmente apta
para estimular e expressar os mecanismos mentais desses ajuntadores obsessivos de
sonhos. Além disso, passou a manipular com certo humor negro imagens preexistentes,
especialmente dos mestres do Renascimento italiano. Faz paráfrases de quadros ou
inclui fisicamente pedacinhos, citações. Não se trata de um projeto erudito e sim
de uma espécie de divertissement de artista pobre, que se formou lendo "Gênios
da Pintura". De qualquer forma, resulta num trabalho de segunda geração.
A seu modo, Jair Glass
é um maneirista neste fim de século – o que não quer dizer, evidentemente, maneiroso
nem amaneirado, mas sim ligado àquela forma de ver e se expressar que se manifestou
entre o Renascimento e o Barroco, e foi assim denominada. Tem dos maneiristas uma
certa volúpia, o encantamento por um discurso meio labiríntico, o capriccio.
Para o homem do maneirismo, "a ordem política e moral do mundo encontra-se
conturbada. Já não se pode dizer que o universo forme um cosmos harmonioso. O mundo
é antes uma terribilità (...). O mundo está repleto de desordens e de angústias,
razão pela qual ele não mais se deixa retratar pelas regras do Classicismo".
[3] Haverá alguma dúvida de que é o mesmo
pano de fundo sobre o qual se move nosso desenhista?
Ainda assim o páthos
de Glass não é doentio, é mordaz; sua fantasia é antes lúdica que mórbida. Ultimamente,
o tempo se tornou também matéria do desenho, as coisas desaparecendo, se deteriorando,
caindo, o papel esgravatado, rompido, como se estivesse entrando em decomposição.
Mas não se trata de nenhuma rendição. A falsa fragilidade das obras esconde a firmeza
da vontade, tudo posto a serviço de uma consciência crítica, dolorida e aguda.
NOTAS
1. Observar que o texto é de 1990.
2. De novo a mesma observação. No ano em que este
livro se publica (2002), Farnese, morto há algum tempo, talvez esteja é entrando
na moda.
3. Gustav R. Hocke, Maneirismo: o Mundo como Labirinto,
Editora Perspectiva, São Paulo, 1986, pág. 21.
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OLÍVIO TAVARES DE ARAÚJO (Brasil). Crítico de artes e curador. Página
ilustrada com obras de Jair Glass (Brasil, 1948), artista convidado desta edição
de ARC.
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Agulha
Revista de Cultura
Número
104 | Novembro de 2017
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor
assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo
& design | FLORIANO MARTINS
revisão
de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe
de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
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