Contemos uma
história. Mas que história?
A história
mal-dormida de uma viagem.
Jorge de Lima
Ao longo do tempo, a preocupação
fundamental do homem tem sido registrar os acontecimentos que o cercam, narrar as
histórias que acha mais importantes para ele e para os outros, partilhar as suas
experiências por mais precárias que elas sejam, delimitar os espaços de sua fala,
imprimir no papel a trajetória de suas mais tresloucadas aventuras ou se preferir,
ler/construir na tela de um computador as suas pegadas virtuais no caminho dos relatos
individual e coletivo. E tudo isso, temperado pela necessidade de contar, pela imperiosa
vontade de narrar, seja qual for o caminho trilhado ou a ser seguido, desde que
os fatos se convertam em discurso, em práticas que atestam a presença do indivíduo,
essa entidade complexa e por vezes tão vaga, dado o seu caráter meio trôpego, meio
nebuloso inserido na realidade da trama que tece o seu destino.
Vê-se, de imediato, que a história do homem está
irremediavelmente atrelada a uma série de combinações que, em maior ou menor dosagem,
ressaltam aos olhos em virtude do equilíbrio das coisas e dos fatos narrados, num
misto que traz à cena, realidade e fantasia, razão e irrazão, liberdade e tirania,
absoluto e relativo. Rompendo o casulo de sua sina, o indivíduo constrói a sua gramática
narrativa, que procura dar conta do espanto que é viver. Por isso, pode-se afirmar
que as histórias são fabricadas nas malhas da falência do ato narrativo: se existe
algo a ser contado que se conte, algo a ser narrado que se narre, algo a ser dito
que se diga, nem que seja sobre a dificuldade de contar, sobre a necessidade de
narrar, sobre o desejo de dizer, desde que, num longínquo recanto, exista alguém
disposto a ler ou a escutar o que se tem a dizer ou a falar. Interessa o jogo narrativo
que sabe transformar o próprio silêncio em verbo, quando administra vozes a esse
silêncio. Na viagem do discurso, vale capturar o verbo para habitar a vasta vereda
das histórias a serem narradas, sendo assim, o sol renova o já dito, o já contado,
o já narrado e tudo pode ser de novo dito, contado e narrado, sempre.
Inserido em seu próprio processo narrativo, o homem
trabalha, radical e absolutamente, com as armas da linguagem e ara, com paciência
e ira, os campos do discurso apaziguando provisoriamente a singularidade de suas
experiências em permanente choque com a modernidade. Na terra inóspita, vaga em
busca de nomear o seu percurso determinando os momentos cruciais de sua aventura,
pois, o ato de narrar – que constitui a própria narração – é por natureza, o principio
inviolável de toda arte literária que, ao organizar a vasta sucessão de acontecimentos
– a história – possibilita a identificação do tempo que se desenrola como fio ao
alcance das mãos e da vista. Na relação contínua de olhares e na justaposição de
história e narração, o indivíduo elabora o seu texto – a sua narrativa, o seu discurso,
enfim, o enunciado narrativo como o registro ficcional que move a sua passagem no
tempo e no espaço com todas as ações vivenciadas ou a serem vividas.
Com o propósito de discutir e entender alguns recursos
da arte narrativa, a constituição do agente propulsor do discurso e da narração
– o narrador –, valemo-nos do romance Lavoura arcaica de Raduan Nassar publicado
em primeira edição em dezembro de 1975. A obra nassariana apresenta recursos narrativos
– a concepção do narrador, o que ele diz e como diz, o acoplamento de vozes que
permeiam as falas das personagens, a regência da voz por parte do narrador-personagem
que, de certo modo, coordena a entrada em cena dessas mesmas vozes e o aspecto do
tempo funcionando como um ciclo de memórias que precisa ser resgatado, tudo articulado
dentro de uma rigorosa ordem literária, onde o discurso do narrador, pela sua força
articulatória determina uma compreensão mais detalhada a respeito do ato de narrar.
Por se tratar de um estudo sobre a narrativa, focalizando,
especialmente a figura do narrador, o texto tem como embasamento teórico a obra
o Discurso da narrativa (1995) do teórico e crítico francês Gérard Genette,
principalmente no que tange as abordagens do modo e da voz, matérias tratadas respectivamente
nos capítulos quatro e cinco do citado trabalho. Assinale-se, por seu turno, que
a figura do narrador constitui, para muitos, o principal elemento do romance, ou
“é o eixo do romance”, conforme diz Tacca (1983: 65), sem o qual, o romance não
se realiza, o que se pode verificar nos mais diferenciados relatos, desde as clássicas
narrativas as mais inusitadas experiências com a forma e a maneira de narrar, em
todas elas a presença da voz que narra é uma constante. O narrador no romance é,
pois, a região limítrofe entre a história e o discurso que vem à luz com a narração.
O narrador, em última instância, é o responsável direto pela força ou pelo enfraquecimento
de seu relato.
No romance, certamente, não veremos mais a aurática
figura do narrador experiente, aquele que na configuração benjaminiana andarilhou
por muitas terras, navegou por muitos mares, pousou rápido e ligeiro em vários portos
desfrutando intensamente o calor da estadia; aquele que na intensidade das paixões
e das andanças sempre tinha o que contar, sempre dispunha de uma audiência certa
para a sua voz potente que recuando no tempo propiciava a ilusão aos que ficavam,
estes, sempre sedentos por novas tramas, novas falas, novos relatos, novas narrativas.
Da próxima viagem, o desconhecido viajante, por certo traria notícias do mundo distante
e outros sonhos despertaria nos seus ouvintes. O outro lado da face narrativa estudada
por Benjamin [1] reside na tradição do
camponês sedentário que tem o que dizer, pois sabe o valor e o peso da tradição;
o sedentário que resgata como poucos a época distante, sendo, portanto, um sábio
transmissor da experiência. Como a modernidade solapou com o império da técnica
toda espécie de experiência individual, os dois típicos narradores não cabem mais
neste mundo. O narrador que contava suas histórias para um público atento e sedento
por conselhos e ensinamentos e que retirava de sua experiência viva o poder de alumbramento
da comunidade, não resistiu às mudanças impostas por um sistema de produção capaz
de transformar radicalmente a troca de experiências. Acontece, dessa maneira, um
empobrecimento das relações entre as pessoas, que a despeito de disporem de maiores
recursos e, teoricamente, de mais tempo, vêem-se privadas de se relacionarem e constroem
os guetos infernais, os mesmos que enclausuram os desejos, as vontades e os sonhos.
A partir de então, cada emoção é pura continuidade de um grande dique que represa
o mundo das paixões. A densidade do narrador tradicional é, hoje, apenas uma nuvem,
ou se preferirem, uma sombra em dia de intenso sol.
O narrador, visto neste ensaio, é o que conhece os
seus limites e por conhecê-los tenta, a todo instante, dinamitar o dique que represa
as paixões, os medos e os resquícios de experiência que ainda lhe restam. Sua história
é um contínuo processo de indagações, com poucas respostas, muitas falas e infinitos
silêncios. Seu trajeto determina a sua narração como um ato de preencher lacunas,
como desvio de imagens e escombros que mudam a rota do tempo. É um narrador que
sobrevive, sobretudo, por seus murmúrios e por saber lapidar suas dores intensas.
O narrador de Lavoura arcaica expõe a um só tempo, três dimensões de uma
mesma história: André e o avô, André e Ana e André e o pai. Cada relação é simultaneamente
observada e vivenciada pelos demais integrantes da família. André, o narrador-personagem
nassariano, invade os lugares interditos para imprimir sua máscara, retocar seu
disfarce e apreender sua identidade tão fugidia. Elabora, assim, uma história febril,
plena de delírios, de recusas, de quedas, de desequilíbrios, de sombras, de ritos
e, acima de tudo, marcada pela contundência da linguagem – a mais completa viagem
ao desconhecido.
O tempo no romance pode ser apreendido de várias
maneiras. Temos o tempo da narrativa que compreende o tempo fictício da história,
responsável pela organização do que é narrado; o tempo da narração distinto do primeiro
por tratar do distanciamento em que os acontecimentos são narrados e o momento específico
de sua ocorrência e, um terceiro instante, o tempo da leitura, que passa pelo crivo
dos leitores, em que cada geração lê os mesmos textos com olhos e gostos diferentes.
Desse modo, segundo Reuter (1995: 87-88), a investigação temporal pode ser feita
partindo-se de quatro pontos essenciais: o momento da narração, a velocidade da
narração, a frequência e a ordem. Quanto ao momento da narração, o estudioso apresenta
quatro posições possíveis para mostrar como a história é narrada em relação ao momento
em que supostamente ela acontece: 1) a narração ulterior: é a mais comum e a mais
frequente, narra-se o que acontece num passado distante, a maioria dos romances
assume esta postura; 2) a narração anterior: é bem mais rara, tem valor de predição,
o futuro é antecipado por meio de sonhos ou de profecias, por isso mesmo só aparece
em rápidas passagens textuais, é importante frisar que tal recurso não deve ser
confundido com história de ficção científica, onde o relato do futuro faz-se como
presente; 3) a narração simultânea: como o próprio nome já diz, propicia a ilusão
de que a ação ocorre no momento da escrita. É a típica narração homodiegética, centrada
na personagem que narra ou a narração heterodiegética neutra; e, 4) a narração intercalada:
combina as duas primeiras, a narração altera momentos de retrospectiva com prospectiva.
O diário é um bom exemplo.
Quanto à velocidade, procura-se constatar a relação
entre o período de duração dos acontecimentos, determinado por anos, meses, dias,
horas... e a duração da narração, ou como o discurso é textualizado em número de
páginas ou mesmo de linhas. Representa o próprio ritmo da narrativa. Ritmo que vai
estar marcado por acelerações e desacelerações. Os movimentos narrativos apresentam
quatro formas fundamentais ou quatro possibilidades em função da relação entre a
extensão do curso da narrativa, do discurso (TD) e o tempo de história (TH) abrangido
por ele. Sendo que o grau máximo de aceleração dá-se com a elipse, técnica narrativa
que condensa em poucas páginas uma quantidade enorme de tempo. É uma espécie de
salto na cronologia da história, em outras palavras, determinado tempo da história
decorre sem que a ele corresponda um segmento de texto (TD < TH). Próximo à elipse
tem-se o sumário, que como o nome já remete, indica o procedimento da condensação
e do resumo, quase sempre, está ligado a um longo tempo da ficção. O sumário situa-se
entre a cena e a elipse e compreende a narração, em breves linhas, poucos parágrafos
e poucas páginas de vários dias, meses ou anos, sem os pormenores da ação e de palavras
(TH > TD). A pausa (TD > TH) trata de passagens, em geral descritivas, em
que a narrativa se detém na contemplação de um objeto ou num espetáculo, apresenta
em determinado segmento do texto, um tempo de história nulo. Por último, neste item,
temos a cena que procura passar a ilusão de sincronia entre discurso, narrativa
e história. Percebe-se que a aceleração acontece, sobretudo, com a narração de ações,
já a descrição ocasiona desaceleração e os diálogos, por sua vez, proporcionam a
impressão de igualdade plena entre a duração de ficção e duração da narração (TD
= TH).
Outro tópico importante estudado por Genette no seu
já clássico Discurso da narrativa (cap. 3) refere-se à frequência que indica
a quantidade de vezes que os acontecimentos ficcionais são reproduzidos na narração.
Surgem três modos especiais para a análise da frequência, que são: 1) o modo singulativo
– narra-se uma vez o que aconteceu uma vez, ou n vezes o que aconteceu n
vezes (1D/1H) ou (nD/nH) é a chamada narrativa singulativa; 2) o modo
repetitivo – ao contrário do primeiro, o texto narra n vezes o que ocorreu
uma única vez na ficção, em outros termos, conta-se n vezes aquilo que só
se passou uma vez (nD/1D), geralmente, esta técnica está associada às constantes
alterações de pontos de vista, é denominada narrativa repetitiva; e, 3) o modo iterativo
– consiste em contar uma única vez o que se passou n vezes (1D/nH),
é a narrativa iterativa, realizada com mais propriedade no imperfeito e nos sumários.
Já no capítulo 4, Genette trata de uma questão crucial
para os estudos da narrativa, o modo. Que é responsável pela regulação da informação
narrativa. Apresenta-se sob duas formas principais: a mimese, onde o narrador
se esforça para dar a ilusão de que não é ele quem fala, é uma forma mais direta
e imediata de contar e tem-se o máximo de informação e o mínimo de informador e
a diegese, quando o narrador fala em seu nome, diz-se que a narrativa é pura,
e tem-se o máximo de informador e o mínimo de informação. A propósito, quando Genette
analisa a narrativa de acontecimentos a partir de Platão e as nuances da determinação
temporal oriundas dos fatores miméticos, ele assevera (1995: 164-165) que “a quantidade
de informação está massivamente na razão inversa da velocidade da narrativa; e,
por outro lado, para um facto de voz: o grau de presença da instância narrativa”.
Na narrativa de fala, distinguem-se três possibilidades narrativas: 1) o discurso
narrativizado ou contado, assumido pelo narrador; 2) o discurso transposto sob a
forma de discurso indireto, ou de discurso indireto livre; e, 3) o discurso relatado
ou direto ou reportado, o narrador cede ou finge ceder a fala aos demais personagens,
a técnica do monólogo interior pode ser vista dentro deste ângulo. De acordo com
o teórico francês, pode ocorrer e, frequentemente, é o que acontece, uma junção
destas três formas narrativas, tendo em vista a própria dinâmica do discurso.
Articulando todos os procedimentos modais sintetizados
acima, tem-se o ponto de vista, rebatizado por Genette (1995: 187) pelo termo focalização,
que vem a ser a perspectiva narrativa. Distinguem-se três grandes perspectivas:
1) a que passa pelo narrador, chamada de ‘focalização zero’, narrativa não-focalizada
ou ‘visão por detrás, em que o narrador, onisciente, percebe tudo, sabe mais que
todos, detém o conhecimento pleno dos fatos narrados; 2) ‘focalização interna’ ou
‘visão com’, de ponto de vista ou campo restrito; passa pelo crivo de uma ou de
várias personagens, no primeiro caso, diz-se que a focalização é interna fixa e
no segundo caso, tem-se a focalização variável; e, 3) ‘focalização externa’ ou visão
de fora, objetiva e behaviorista. Percebe-se que a focalização, em todos os casos,
está intimamente associada à percepção, algo mais do que a visão, pois passa por
todos os sentimentos.
A voz narrativa abrange, comumente, as funções e
os tipos de narrador. Basicamente têm-se duas maneiras clássicas para se contar
uma história: em primeira pessoa ou em terceira pessoa. De acordo com Genette (1995:
243), esta bipolaridade não dá conta de todas as possíveis combinações feitas no
decorrer do processo narratorial, já que estaria reduzida tão-somente à implícita
ou explícita presença da pessoa do narrador no relato, algo que, com certeza, restringe
em muito as possibilidades de variações do discurso. Portanto, não importa dizer
se o narrador é de 1ª ou 3ª pessoa, a análise tem que ir mais longe. A partir dessa
premissa, o ensaísta propõe três níveis narrativos; 1) o diegético ou intradiegético,
que está relacionado ao universo formado por espaços, personagens e ações que fazem
parte direta da história; 2) o extradiegético, fundamental para a constituição de
outros níveis. Aqui, a apresentação de personagens e lugares é feita pelo narrador
que está situado fora da diegese narrada, geralmente, numa posição de ulterioridade;
e, 3) metadiegético: para esta expressão genettiana, Reis e Lopes [2] acham mais adequada a utilização do termo
hipodiegético, tendo em vista uma maior clareza no aspecto de dependência e mesmo
de subordinação desse nível ao primeiro nível – diegético ou intradiegético.
Em suma, para Genette, existem quatro tipos fundamentais
de narrador, [3] vistos em sua atuação
dentro do discurso: 1) extradiegético-heterodiegético – é o narrador de primeiro
nível que conta uma história em que ele está ausente; 2) extradiegético-homodiegético
– é o narrador de primeiro nível que conta uma história em que ele está presente;
3) intradiegético – narrador de segundo nível, é uma personagem que conta história
da qual não participa, ou seja, conta histórias alheias; e, 4) intradiegético-homodiegético
– a personagem conta a sua própria história, narra os fatos que com ele se dera.
Fechando este já longo preâmbulo teórico, espécie
de pequeno e ligeiro esboço de alguns achados de Gérard Genette, é importante ressaltar
que nenhuma grade classificatória – nenhum esquema – vista por si só, nada acrescenta
aos estudos literários. No seu alentado, preciso e precioso estudo da obra de Proust,
Genette agudizou e renovou diversas categorias narrativas, porque soube aliar com
espírito crítico e acurada sensibilidade, teoria e arte. Aí está a sua respeitada
e curiosa obra Discurso da narrativa para comprovar esta afirmação. Revestido
de tal espírito, vamos em busca do ‘arcaico’ narrador nassariano, um glutão de histórias
dentro de uma única história, a sua.
2. O narrador glutão: uma
história febril
Estruturado
em dois grandes blocos narrativos (A partida que compreende os capítulos
de 1 a 21 e O retorno composto pelos capítulos 22 a 30) Lavoura arcaica
apresenta-nos a história da dissolução de uma família vista sob o prisma do narrador-protagonista,
André, uma espécie de anti-herói, despido que é de toda e qualquer aura romanesca.
Os elementos que compõem a trama podem ser resumidos, grosso modo, em cinco movimentos
que perpassam ao longo texto. O primeiro diz respeito à saída de André da casa dos
pais, que pode ser denominado o tempo da fuga,
anunciado num primeiro instante no finalzinho do capítulo 5 e retomado no decorrer
do capítulo 6. O segundo momento, o encontro
dos irmãos, acontece logo nas primeiras páginas, ocasião em que o narrador se
encontra refugiado num quarto de pensão, amargando o seu voluntário exílio. Aqui,
trava-se demorada conversa entre os irmãos, André e Pedro, que desencadeará, no
primeiro uma série de reminiscências que vão desde a mais longínqua infância até
os conturbados dias da adolescência. As lembranças revistas e costuradas ‘aleatoriamente’
por André configuram o terceiro movimento, denominado as divisas da memória. Na colheita da memória encontramos as causas
e os efeitos da fuga de André, a sua relação com a família de um modo geral e, em
especial, a íntima ligação de amor e paixão com a sua irmã Ana, bem refletida no
mais longo entrecho da obra, o capítulo 20. O quarto movimento, entrecruza as diversas
falas das personagens ou mais precisamente, os diálogos que André estabelece com
o seu irmão mais velho, Pedro, que na realidade é mais uma caixa de ressonância
do narrador, um posto de escuta, atento e zeloso nos cuidados com a família; mas,
mormente, nas conversas de André com o seu irmão caçula, Lula, no capítulo 27, o
pródigo e o mais novo ‘acertando’ os ponteiros da fuga deste último. Todo este movimento
rege-se na mesa dos sermões, o pai exorta todos, em volta da mesa, à boa conduta,
e conduz com mão-de-ferro o rebanho ao pasto da boa colheita, é o instante dos discursos. Por fim, temos
o quinto movimento, a festa, momento de júbilo pelo regresso do filho querido, hora
de compartilhar afetos, ternuras e alegrias. Mas, também, é o tempo da dança, das
insinuações eróticas de Ana, hora de esparramar nos olhos de todos a passional história
dos irmãos, André e Ana. É o preciso instante da cólera, o ápice de uma tragédia
anunciada, o tempo da danação do corpo
e da perdição da alma: amor e morte numa mesma sequência narrativa.
Amarrando todos os cinco movimentos da história narrada
por André, assinalamos a própria circularidade temporal, vista numa perspectiva
de quebra cronológica dos acontecimentos. Os fatos narrativizados obedecem, a rigor,
a ordem de lembranças do narrador, daí, a necessidade de ocupar os interstícios
da memória sem uma hierarquização de ações. Vê-se que o narrador-protagonista, atormentado
e agoniado, tem crises de esquecimento, rasgos de delírios na sua fala que propiciam
mudanças de rumos na cadeia narrativa que empreende. No entanto, há uma sincronia
temporal perfeita, em cada resgate histórico que ele executa. Sua errância dá-se
no mundo das rememorações e instaura o tempo nos escaninhos da linguagem. Lavoura
arcaica habita, com cada um dos movimentos elencados, anteriormente, a bem-aventurada
consumação da linguagem literária.
André, o narrador-memorialista de Lavoura arcaica,
é uma espécie de guardião das histórias da família, guardião, diga-se de passagem,
um tanto quanto pouco confiável, pois todas as tensões por lê narradas passam, quase
que exclusivamente, pelo filtro vertiginoso de seu delírio. Acompanhando os desdobramentos
da narrativa, pelo enquadramento discursivo de André, vê-se que a sua história é
um combate renhido entre duas potências: o tempo do pai, revelado pela força da
tradição e o tempo do filho, impresso na expressão da procura. Desse embate, nasce
o princípio dramático da obra e a agônica cisão das vozes presentes nessa lavoura.
O corpo adolescente de André dialoga com o mundo embalado pelo gosto da liberdade
e, sobretudo, procura legitimar suas ações dentro de um plano transgressor: mudar,
a partir da casa – o sacro recanto da ordem e da virtude –, o ciclo paterno. Estabelecido
o jogo, a onipresença autoritária do pai percorrerá cada milimétrico impulso da
família. A sombra do pai demarca os limites da fala de André que na sua inteireza
pessoal sente-se acuado e é obrigado a recusar o espaço afetivo e redutor da casa.
André trava consigo mesmo um duelo contras as malhas repressoras de seu caráter.
A partir daí, pode-se afirmar que toda a narrativa é filtrada pelas suas lembranças,
pelas suas perdas, pelas suas quedas e pelos seus temores, tudo revelado através
de suas obsessões e máscaras. O narrador-protagonista, muitas vezes, é um espectador
de si mesmo, inserido numa monotonia que não o anima, pelo contrário, o impele a
querer outros mundos. E quais são os mundos que permeiam Lavoura arcaica?
A resposta pode ser capturada no percurso de amor e ódio empreendido pelos atores
desse drama subterrâneo das contradições familiares. Com o intuito de roteirizar
algumas discussões mais adiante, apresentamos as tensões da trama:
O MUNDO INTERNO
‘de dentro’
|
O MUNDO EXTERNO
‘de fora’
|
a fazenda
|
a sociedade
|
a casa
|
a cidade
|
a família
|
os outros
|
a autoridade (Iohána)
|
a liberdade (André)
|
a santificação
|
a transgressão
|
a sacralidade (materna)
|
a profanidade (André/Ana)
|
a obediência, a
equanimidade
|
o danação, a perturbação
|
a contenção dos impulsos
|
o espraiamento sensual,
erótico
|
a disciplina
|
a indisciplina
|
a ordem, a harmonia, o
equilíbrio
|
A desordem, o caos, o desequilíbrio
|
o limite
|
o desmedido
|
a perfeição
|
a imperfeição
|
O pêndulo dos mundos segue a rota escalavrada do
tempo com o seu conluio de sombras, por isso mesmo, talvez além desses dois, um
terceiro não seja possível. E é exatamente esse terceiro mundo, o sonhado por André,
que não se realiza, apesar dos alicerces levantados, da argamassa de paixão e dos
sentidos esquivos do amor. É um mundo que existe só a caminho, na viagem sem volta,
no breve delírio do olhar. Nele, cada vencedor sai sempre vencido, o conquistador
é sem conquista e o maior fardo que seus habitantes carregam é o de lamber as feridas
do sonho.
Em Lavoura arcaica, a narração é ulterior
já que ocorre no passado, funcionando como uma rememoração da vida do próprio narrador-protagonista,
André, que conta a história. E, como assevera Tacca (1983:87): “aquele que diz eu
para contar inaugura um mundo, o mundo da linguagem”. Quiçá, o verdadeiro terceiro
mundo. Em algumas passagens,
podemos constatar a simultaneidade da narrativa, no instante em que o narrador utiliza os verbos no tempo presente gerando a impressão de um diálogo direto entre ele e o leitor. A percepção narrativa [4] que está diretamente atrelada ao foco de narração (C. Brooks e R. P. Warren), ou ponto de vista (J. Pouillon e T. Todorov) ou restrição de campo (G. Blin) ou foco narrativo (nos estudos brasileiros) e, para Gennete, focalização, mostra-se na obra nassariana como focalização interna ou visão com. Pois, André percebe os mundos a sua volta e narra os acontecimentos, imbuído de uma exasperada subjetividade. Sua discursividade passa, criteriosamente pelo crivo de seu olhar, pela sua consciência e pelo seu reencontro consigo mesmo. Nesse périplo de decifrações, André vale-se de outros olhares e de outras falas, é um narrador perpassado por n reflexões. O tom intimista e confessional de seu relato reúne uma profundidade de sentimentos no âmbito de sua expressão lírico-dramática. A íntima compreensão das dores individuais e coletivas da família o leva ao vibrante testemunho sobre o seu sofrimento pessoal. A linguagem com que cria o seu mundo é concisa, direta e ao mesmo tempo, revestida de ornamentos, principalmente nos instantes em que o embate das vozes entra em cena. A fala do pai está assentada, sobremaneira, na retórica discursiva, em forma de sermão.
podemos constatar a simultaneidade da narrativa, no instante em que o narrador utiliza os verbos no tempo presente gerando a impressão de um diálogo direto entre ele e o leitor. A percepção narrativa [4] que está diretamente atrelada ao foco de narração (C. Brooks e R. P. Warren), ou ponto de vista (J. Pouillon e T. Todorov) ou restrição de campo (G. Blin) ou foco narrativo (nos estudos brasileiros) e, para Gennete, focalização, mostra-se na obra nassariana como focalização interna ou visão com. Pois, André percebe os mundos a sua volta e narra os acontecimentos, imbuído de uma exasperada subjetividade. Sua discursividade passa, criteriosamente pelo crivo de seu olhar, pela sua consciência e pelo seu reencontro consigo mesmo. Nesse périplo de decifrações, André vale-se de outros olhares e de outras falas, é um narrador perpassado por n reflexões. O tom intimista e confessional de seu relato reúne uma profundidade de sentimentos no âmbito de sua expressão lírico-dramática. A íntima compreensão das dores individuais e coletivas da família o leva ao vibrante testemunho sobre o seu sofrimento pessoal. A linguagem com que cria o seu mundo é concisa, direta e ao mesmo tempo, revestida de ornamentos, principalmente nos instantes em que o embate das vozes entra em cena. A fala do pai está assentada, sobremaneira, na retórica discursiva, em forma de sermão.
A instância narrativa de Lavoura arcaica pode
ser resumida, em termos gennetianos, da seguinte maneira: é uma narração homodiegética
centrada no narrador. André é um narrador conhecido e está dentro da diegese, fala
de sua vida retrospectivamente quando externa através de flashbacks os fatos
que mais o marcaram. Como ele narra a sua própria vida, diz-se que a narração é
autodiegética, portanto, ele é, em síntese, um narrador intradiegético-homodiegético.
A presença típica desse narrador possibilita uma
melhor apreensão da sequência narrativa que ele empreende. Tendo em vista os saltos
temporais ou as alterações da ordem dos eventos da história, as anacronias, [5] em Lavoura arcaica, percebe-se
que o grau de veracidade do relato ganha consistência na própria fala desse narrador
que vivencia passo a passo, a história, principalmente, por se tratar de um relato
repleto de inquietações, perplexidades e perturbadoras interrogações do seu mundo
interior. A história de André, contada por ele mesmo, ganha ares de verdade e por
extensão, de maior dramaticidade existencial. O narrador-personagem protagoniza
seu próprio calvário e ao modular o seu discurso, conforme cada estação percorrida,
busca a cumplicidade do narratário. A sua dor lancinante, no final das contas, quer
acolhida ou pelos menos uma nesga de compreensão. Em off, repassa seu mundo
interior intercambiando resquícios de uma experiência abalada pelas suturas da mente
que clama pelo corpo amado. O ambíguo e interdito desejo de André responde pelo
nome de Ana – o intrínseco pesadelo de sua fome de narrar.
Podemos mencionar, de passagem, o parentesco que
une André/Ana a um par narrativo dos mais complexos e fascinantes da literatura:
Riobaldo e Diadorim, esses amantes agoniados, náufragos do medo de amar. Riobaldo
busca a si mesmo quando tenta reavivar, inutilmente, a flor que não colheu em vida,
a mágica palavra que não brotou dos lábios de sua paixão, corroído pelo trágico
silêncio da ordem, viu o desequilíbrio do mundo arrastar o maior alumbramento do
sertão, os olhos e a alma de Diadorim. Como anjo decaído, restou a Riobaldo, transformar-se
num glutão da linguagem e atravessar, com voracidade, cada fronteira do discurso.
O mundo de André é um mundo sem porteiras, vasto como a convidativa sensualidade
de Ana. Por esse amor e por essa paixão, André derruba todas as cercas, ele sabe
que toda transgressão traz a peste dentro de si, a mesma peste que distanciou Riobaldo
de Diadorim, a mesma febre que abre lacunas para a felicidade, só ela e apenas ela,
pode resultar em obras significativas para o homem.
3.
A clandestinidade da voz: um discurso em círculo
A
história narrada por André é um inventário de silêncios, de vozes cerceadas por
subentendidas intenções, por congelamentos de desejos, por desengonçados sonhos,
por avara colheita de prazer, por prolongadas arestas de sofrimento. É uma história
que habita as encostas da queda existencial e se aloja nas cavernas humanas das
perdas. Para o narrador-protagonista, toda fala é um misto de ilusão e perdição,
no próprio ato de narrar, ele sente o peso incômodo de se expor, mas é só se expondo
que ele consegue ‘suavizar’ o desassossego de sua alma encarcerada num corpo demonizado.
A história de André exibe o pesadelo de uma paixão que não se atenua nem mesmo com
a fuga e com o exílio, pois que está alojada no coração e no delírio da incomunicabilidade
dos amantes – essa pátria esgarçada pelo desequilíbrio das vontades retraídas. A
pátria de André é, em toda a sua travessia, o discurso que guarda a abundância vivificante
e destrutiva da paixão, que se amolda ao rio de palavras tracejado pela dúvida e
que aponta para a alquimia do êxtase presente na fala elíptica de cada personagem.
A narrativa de André constitui, de fato, uma camuflagem de vozes que na sua rígida
autocrítica estabelece o permanente diálogo da incomunicabilidade entre as pessoas.
O narrador parece dizer, a toda ‘confissão’ feita, que entre os homens a grande
realidade está adormecida no interior de suas intenções e para sair dessa dormência
um caminho apresenta-se como possível válvula de escape, é o caminho das máscaras
narrativas. Lavoura arcaica é um bem urdido mosaico de máscaras e camuflagens
narrativas. Cada uma delas adapta-se harmoniosamente ao olhar, ao cheiro, ao tato,
à audição e ao dizer do seu narrador, que em derradeira instância é um ser múltiplo
em seu compacto e cáustico relato.
André é um narrador à procura de si mesmo, envolto
no limiar da ordem, busca desesperadamente a multifária e polivalente liberdade
além das cercas da casa. De tanto experimentar a melancolia do silêncio atravessado
pelo poder da fala paterna, André exprime a ancestral memória dos seus antepassados
quando vislumbra na monossilábica voz do avô toda a sabedoria que nenhuma retórica
consegue suplantar. Investe-se, pois, de uma armadura linguística que ousa dar vida
às contradições que traz consigo. Sua nostalgia é um tecido de contrastes, no entanto,
como prisioneiro de seu próprio discurso, ele carrega dentro de um ‘amor proibido’
a borra de todos os dramas e todas as tragédias anunciadas desde o seu nascimento.
Sua travessia discursiva é um memorial repleto de páginas amargas, de desobediências
que destilam ira e violência no solo sagrado do pai e de fúrias e insônias expostas,
como vísceras de amor e ódio, nos confins da escritura profana do colérico amor
por Ana.
Para André, o texto só existe no corpo de sua paixão,
uma paixão que atende pelo nome de Ana. Mais que um nome, Ana é o sal da coragem,
o alimento vigoroso e o único batismo reconhecido pelo narrador-protagonista. Ana
é a anfitriã dos acertos e dos erros do irmão. Cosendo o destino do humano amor,
ela peregrina pelas dores confusas da família e revigora, a contragosto, os gemidos
interditos de uma união que tem tudo para se concretizar nos estilhaços da linguagem.
Em surdina, os dois ‘amantes’ ancoram a mesma imagem que trazem desde a infância,
a imagem do displicente carinho exposto no claro-escuro de suas identidades. André
e Ana são governados pelo mesmo olhar de soslaio desferido por cada membro da família.
Ambos trazem a marca possessiva do dizer, o princípio dramático de suas tensões
é um diálogo que espelha mutuamente a vasta malha de perdição em que os dois estão
enredados. Os exercícios de duplicação discursiva de André encontram maior respaldo
no silêncio verbal e na febre corpórea de Ana, os dois formam uma unidade e legitimam
desdobramentos agônicos de extrema perversidade. A visão prismática do mundo de
André assenta-se na consciência de uma palavra: eu. Toda sangria narrativa desatada
na convulsiva fala do narrador deixa à mostra um reservatório de ódios e iras arcaicas.
No solo fértil deste vocábulo explicitamente dêitico – eu –, o narrador irá colher
os frutos enfermiços de seu envolvimento passional com Ana e condensar todo pesadelo
familiar no espectro de uma consciência atormentada, a sua própria.
Narrar em primeira pessoa é duplicar vozes e, também,
duplamente falsear a realidade narrada. O narrador em primeira pessoa, como é o
caso de André, estabelece uma parceria cúmplice com o leitor, no instante mesmo
em que tenta através de um patético depoimento, ou texto-confissão, tornar mais
veraz o seu discurso, potencializando os espantos que permeiam sua travessia. O
narrador em primeira pessoa preenche seus nichos verbais arrancando do silêncio
fundante do texto – aquele que subjaz à verborragia desenfreada – a face transitória
de todo discurso. Narrar em primeira pessoa é armar um discurso-arapuca, desconfiado,
sempre. É humanizar-se na essência de suas lacunas, de suas faltas e de seus defeitos.
Todo narrador-protagonista, como ser de incompletudes, sabe que sua história está
sob o fio da navalha e sob esse mesmo fio, deve repor suas falas elípticas e recompor
as entrelinhas de sua condução de maestro da narrativa.
Sabrina Sedlmayer radiografa com sabedoria o narrador
de Lavoura Arcaica, quando, no começo de sua tese, Ao lado esquerdo do
pai, afirma que:
O narrador em primeira pessoa – André –, trafegando
em paroxismos, ataques e ausências, sintomas de sua epilepsia, irá contaminar o
enunciado do romance numa dicção próxima à letra – suporte material do inconsciente,
contorno do impossível –, transformando Lavoura arcaica numa espécie de escritura-balbucio,
próxima à fala, ao corpo, mas próxima a uma fala convulsiva, a uma ‘baba pestilenta’,
como diz o filho pródigo nassariano. (1997: 22)
A escritura-balbucio de André é tecida pela miudeza
das coisas, pela febre que comanda sua fala, pela vontade de contaminar os demais
membros da família e pela suposta imobilidade de seus desejos, represados por dois
poderosos discursos, um que se manifesta no afeto materno – o dique rompido do carinho
– e o outro pela potência hierárquica do pai – o dique reforçado do verbo sem freios.
Para ultrapassar os dois diques, resta a André, dinamitar toda e qualquer possibilidade
de erguer pontes, interessa-lhe tornar inconciliáveis os dois discursos, tanto o
do pai que celebra a força visceral da palavra quanto o da mãe que renuncia à voz,
ao agir na penumbra das conversas. De todos os discursos sobreviventes, conduzidos
pela fala convulsiva de André, dois ganham maior dimensão, o do pai, todo ele feito
e refeito na mesa dos sermões e o seu colhido na distância transgressiva do prazer.
André combina em sua narração os ingredientes da
emoção e da razão. É um narrador humanizado pela proximidade do relato e pela corajosa
atitude de desnudamento. Por estar no seio do discurso, sua sensibilidade instaura
uma indagação existencial premente originária de sua memória afetiva, qual seja,
entender porque o amor que alimenta com tamanha devoção, é frustrado. Buscando compreender
os mistérios que dividem a sua alma, André passa a projetar suas quedas, a sentir
prazer lambendo suas feridas, a se tornar indiferente às dores de quem quer que
seja, a administrar suas perdas, a filtrar suas obsessões, a combinar habilmente
o seu ato de amor e a temer sua própria lucidez. Sendo assim, é um narrador que
verbaliza consciente e inconscientemente seus despojos. Ou como assegura Ronaldo
Costa Fernandes no que tange ao típico narrador em primeira pessoa:
O narrador
em primeira pessoa vai ser agente e paciente dessa frustração criada pela perda.
Nas narrativas intimistas, solipsistas, auto-referenciais, o personagem conta sua
angústia e muitas vezes deforma a intensidade da perda, porque a perda não é aquilo
que realmente é, mas aquilo que o narrador-personagem assim percebe, intui e sofre.
Pode-se vislumbrar o narrador nassariano na descrição
acima transcrita. Mais adiante, o ensaísta elenca duas características que caem
como luva no narrador-protagonista do romance Lavoura arcaica, quando assinala
que “o narrador é o densificador de perdas” e ao acumular tamanhas perdas faz com
que o “narrador seja o ordenador da desordem”. [6] O universo de André é um repositório de perdas desdobrado em desordens,
para ordenar esse caótico mundo, só mesmo apontando as câmeras múltiplas em direção
ao sagrado e ao mesmo tempo profano coração do que é demasiadamente humano.
Ordenar o caos que ele próprio estabelece, eis uma
das principais funções exercidas pelo narrador de Lavoura arcaica. A inteireza
verbal do discurso nassariano faz-se presente no instante exato em que as vozes
narrativas do relato são combinadas dentro dos dois mundos, o interno e o externo.
Para percorrer clandestinamente a casa paterna – o templo prostituído – pelo filho
pródigo, cada personagem deixa transparecer o rastro de maldade que carrega consigo.
A família é uma espécie de rocha erodida que na teatralidade dos seus atos desvela
a debilidade das relações pessoais, e, é exatamente dessa tênue e rala convivência
que o indivíduo encapsulado, André, ganha a dimensão humana para expressar o ethos
do mal. Um mal que está fundamentado na incessante procura da enviesada paixão entre
dois irmãos. Para atravessar a dor que o sufoca, o narrador passa a ser um transportador
de metáforas que vai registrando suas derrotas nas dobras da língua de onde extrai
a dicção singular de sua tragédia. André é um narrador-ouriço, displicentemente
armado, dotado de iluminações e frontalmente exposto à intensidade da linguagem
que passa a ser a fiadora de verdades. Seu verbo é “possuído, atropelado, endemoninhado,
nutrido da cólera que inflama, da paixão dos impacientes e dos indignados”. [7] O furor narrativo de André é de vária
espécie, sua enfermiça paixão exorbita sensualidade e conduz a reflexão pelos corredores
de uma realidade incerta fruto de uma errância, segundo ele, patológica, danosa
e demoníaca.
André é um inquilino da danação, danação que transporta
pelos vãos da casa, pelos campos férteis da família e pelo meio do mundo, lugar
em que sobrevive na esgarçada anatomia da peste que traz no corpo. Os territórios
que desconhece recebem novos contornos linguísticos na fluidez narrativa que empreende.
Tangendo estrelas e ciscando utopias, André escreve o livro que encerra e define
o intenso vínculo com o tempo, um tempo errático, moldado pela visão horizontal
do narrador, uma visão de quem vê o desenho da verdade se fazendo a cada giro dos
ponteiros. O tempo é derretido pela intensa melancolia que se abate sobre cada personagem
dessa estranha colheita. A monotonia do jogo desaparece, por completo, com a releitura
simultânea dos elementos narrativos capturados pelo olhar agudo do narrador: tempo
e espaço são invadidos por uma percepção determinada única e exclusivamente pela
sua subjetividade. O tempo e o espaço são lapidados pela figura do eu-narrador que
com as artimanhas da linguagem revigora o seu percurso de danação, quando “captando
o espaço e o tempo na sua
visão mais calma, mais tranquila, mais inteira” (LA, p. 144) deixa entrever a vertigem dissonante de sua paz. A figuração temporal da história de André desenvolve-se na memória, por isso mesmo o registro cronológico e exterior do mundo funciona mais como um espectro, pois o tempo psicológico e interior da narrativa guia toda a encenação do narrador. O relato por ele narrado é pontilhado por emoções, pensamentos, digressões e sentimentos que afloram de sua subjetividade mais latente. Seguindo essa trilha, o narrador-memorialista de Lavoura arcaica pode expressar por meio da focalização interna de sua trama cada impulso interior que o mortifica. O narrador justapõe desse modo, tempo e espaço no corpo-texto da letra viva que concebe. Assim como o corpo é um manancial de profundas inquietações, o texto nassariano é uma catedral de danações. Ambos, corpo e texto refugiam-se, como almas siamesas, na porosa transitoriedade do sofrimento, esse terrível redemoinho que é mercadoria constante na mesa da família.
visão mais calma, mais tranquila, mais inteira” (LA, p. 144) deixa entrever a vertigem dissonante de sua paz. A figuração temporal da história de André desenvolve-se na memória, por isso mesmo o registro cronológico e exterior do mundo funciona mais como um espectro, pois o tempo psicológico e interior da narrativa guia toda a encenação do narrador. O relato por ele narrado é pontilhado por emoções, pensamentos, digressões e sentimentos que afloram de sua subjetividade mais latente. Seguindo essa trilha, o narrador-memorialista de Lavoura arcaica pode expressar por meio da focalização interna de sua trama cada impulso interior que o mortifica. O narrador justapõe desse modo, tempo e espaço no corpo-texto da letra viva que concebe. Assim como o corpo é um manancial de profundas inquietações, o texto nassariano é uma catedral de danações. Ambos, corpo e texto refugiam-se, como almas siamesas, na porosa transitoriedade do sofrimento, esse terrível redemoinho que é mercadoria constante na mesa da família.
O redemoinho de André começa na exposição de sua
evocada culpabilidade. O encontro com o irmão mais velho, Pedro, funciona como ponto
de partida desse insólito alvoroço que emerge no âmbito familiar em quatro direções
distintas: 1) os afogados: André e Ana; 2) os refugiados: Pedro e os demais irmãos,
incluindo Lula, o caçula; 3) as sombras intactas: a mãe e o avô e 4) o guardião
da ordem: o pai. Todas as direções, não obstante, são submetidas à parcial visão
do narrador, até mesmo a esmagadora força curativa dos sermões paternos é
corroída pela legitimidade de uma voz passível de dublagem. André, em maior ou menor
dosagem, consegue dublar a voz da família que cumpre a contento a sagrada missão
de justificar os atos profanos de seu périplo. Quando não estão em plena batalha
verbal, pai e filho encenam um atordoado coro de descontentes, cada um a seu modo,
inventa um papel para si como forma de reconhecer a impotência do diálogo todo ele
perpassado por palavras-movediças e frases-armadilhas. Cada um quer apenas persuadir
o outro, mais tanto um quanto o outro não querem ser persuadidos, não desejam embotar
suas sensibilidades, o espaço de um certamente não pode ser ocupado pelo outro.
Nos trinta movimentos narrativos ou capítulos do
romance de Raduan Nassar, duas linhas condutoras ganham maior nitidez, a primeira
delas, já acentuada anteriormente, responde pela fala do filho pródigo que com o
transbordamento da paixão remete para o mundo da emoção com toda a carga de ruptura
advinda dos gestos radicais intensificados pela personagem protagonista da trama,
no caso André e a segunda, potencializada pelo ordenamento do mundo resultante do
fortalecimento da razão, que responsável pela consecução da lei, imprime um tom
arcaizante ao próprio relato do filho. Sob o signo da lei paterna, o filho remói
as mágoas, as angústias, os desesperos, a cólera, os espasmos, os vícios e a ira
de um equilíbrio que ele, “num desarvoro demoníaco” (LA, p. 47) e como narrador
possesso, procura desequilibrar. A fala de André é um fala convulsiva e vertiginosa,
sem remendos e sem meias-palavras; escorregadia e lasciva busca entremear ao longo
do discurso os mais recônditos impulsos de um ‘eu’ tocado por um amor lírico e demente.
O que surge com clareza, num primeiro instante, no quarto da pensão, quando o irmão
mais velho, Pedro, vai resgatá-lo para a mesa dos sermões e entre um copo e outro
de bebida, André reflete:
e quase perguntei por Ana, mas isso só foi um súbito
ímpeto cheio de atropelos, eu poderia isto sim era perguntar como ele pôde chegar
até minha pensão, me descobrindo no casario antigo, ou ainda, de um jeito ingênuo,
procurar conhecer o motivo da sua vinda, mas eu nem sequer estava pensando nessas
coisas, eu estava era escuro por dentro, não conseguia sair da carne dos meus sentimentos,
e ali junto da mesa eu só estava certo era de ter os olhos exasperados em cima do
vinho rosado que eu entornava nos copos. (LA, p. 16)
André é movido por impulsos e pela chaga viva de
sua tresloucada paixão, é um ente que em momento algum nega os prazeres da carne,
mesmo que tais prazeres sejam frutos apenas de sua imaginação ou reminiscências
da mais longínqua infância quando perambulando pelos campos, podia desfrutar do
convidativo calor da cabra Sudanesa (ou Schuda), uma cabra faceira e predestinada
ao paciente e generoso carinho de um menino recolhido em sua já enfermiça paixão.
Escuro por dentro, o narrador-protagonista rejeita
os conselhos e as tarefas que lhe são atribuídas na mesa dos sermões. O pai que
busca fervorosamente o equilíbrio do mundo, exercitando o milagre da paciência e
a cumplicidade com o tempo, encontra na figura do filho tresmalhado, uma identidade
que requer novos retoques, cada prece paterna será para conduzir com mão-de-ferro
a família e, em especial, os irmãos afogados, André e Ana que enxergam a vida sem
as amarras impostas pelos ditames da lei paterna. Na realidade, os afogados cumprem
a derradeira missão de um tempo cíclico, o tempo dos amantes regido pelas funções
do corpo e pelo quinhão da libido que cabe a cada um deles. A fala de André recolhe-se
na explícita exposição do ‘eu’ que funciona como esteio de um discurso anárquico,
pouco preocupado com a lógica autoritária do pai. André acentua reiteradamente,
o discurso do ‘eu’, cada rememoração sua é uma colheita de confissões que passa
pelo desnudamento de sua identidade. Cada página escrita com as suas lembranças
é um estuário de ‘eus’, talvez essa seja a única forma de combater o ‘nós’ paterno
e desfazer, de vez os laços que emperram sua paixão. O primeiro e mais importante
‘eu’ do narrador atende pelo nome da irmã, isso “pelo fato de o nome da irmã – Ana
– corresponder ao pronome eu em árabe”. [8] Submerso no destino, André estende sua sombra por cada recanto da
casa, sai e volta ciente de que o caminho, para ele, é um caminho de faminto, sempre;
e que o ruído da paixão petrificou o gosto pelas aventuras, afinal, a família sem
a consecução do amor não passa de um penduricalho social, uma bugiganga burguesa
que precisa ser esfacelada, pois de engodos a vida já está cheia, e a família como
engodo é mais uma erva daninha colhida na vasta lavoura do mundo.
Um elemento que coordena muitas das ações interiores
do narrador merece ser destacado, tendo em vista o grau de sugestividade que imprime
ao testamento-apaixonado de André, este elemento refere-se aos olhos que possuem
a tessitura frondosa dos brotos e deixam transparecer a essência da impossível realização
amorosa entre os dois irmãos. O livro abre com os olhos de André fitando o teto
sóbrio do quarto e fecha em memória do pai com os olhos amenos de todos, atentos
ao tempo de saciar a fome do rebanho – a família. Nesse longo intercurso de 30 capítulos,
os olhos vão preenchendo o desenho do rosto narrativo de cada personagem: de André,
com “olhos enfermiços” (LA, p. 20), “olhos sempre noturnos” (LA, p. 68), “olhos
... de espanto, redondos e parados, olhos de lagarto” (LA, p. 88), “olhos afetivos”
(LA, p.105), olhos caídos”(LA, p. 126), “olhos cheios de um brilho novo” (LA, p.
129) e “olhos repulsivos”(LA, p.153); de Ana: com “olhos de tâmara”, “olhos amplos
e aflitos” (LA, p. 32), “olhos pequenos e redondos, matreiros”(LA, p. 98), “olhos
definitivamente perdidos na santidade”(LA, p.138), “os primitivos olhos de Ana”(LA,
p.182) e, de novo, “olhos de tâmara”(LA, p. 191); dos irmãos: “olhos molhados”(LA,
p. 70) e “olhos baixos”(LA, p.78) e do pai: “olhos úmidos” (LA, p. 128). Todos os
olhos focalizados pela lente de André, que com “o olho prescrutador de uma coruja
paciente”(LA, p. 143) simula o avaro silêncio da assombrada aventura que é Lavoura
arcaica. Com a circularidade temporal no formato de um olho, o narrador vai
apascentando todas as vozes presentes e pretéritas assentadas ou não na mesa dos
sermões. O olho é, assim, o labirinto dos desatinos e das carícias prazerosas do
próprio tempo.
O mundo das paixões vivenciado por André através
do olhar e da fome do corpo é um mundo pestilento, maligno e manobrado pelas trevas
e pelo caos da demência, contrapondo-se a esse mundo, opera a fala arcaica do pai,
que exerce a sua função pedagógica por meio do impulso autoritário e conservador
fortalecido pela retórica da ordem e da repressão. Em tom severo e dogmático, o
pai justapõe aos seus discursos os elementos díspares do verbo que devem nortear
o caminho de toda família. O paradigma paterno está, eminentemente, atrelado à própria
tradição patriarcal da família ocidental, que a despeito de quaisquer outras intenções,
pretende com rigor achatar as diferenças, padronizando os desejos e unificando os
relacionamentos. O sermão paterno funciona mais como uma camisa-de-força do que
propriamente, como uma atividade de agregação familiar. Propicia com a sua característica
censória e prescritiva um ponto de fuga para o exercício da rebeldia.
A fala de André é entremeada por cinco sermões do
pai. O primeiro deles ocorre no capítulo 9 e versa sobre o tempo. Para o pai, o
tempo é o maior tesouro do homem, o tempo é sempre onipresente e só é rico o homem
que se alia com sabedoria e paciência ao tempo que só recompensa os justos e os
mansos. Quem se deixa levar pela bondade do tempo, será recompensado e não sofrerá
com o desequilíbrio da paixão, responsável por todas as quedas e perdas humanas.
Já foi dito antes, André é um colecionador de perdas e quedas, portanto, um impaciente
do tempo, um homem com pressa, com fome de viver. O segundo sermão aparece no capítulo
13, vem sob a forma de uma parábola – a parábola do faminto. A história oriental
de um rei muito velho e do faminto que nas suas andanças palacianas procura a todo
custo exercer a sua paciência para receber as bênçãos do destino. A história do
faminto é um recurso terapêutico utilizado pelo pai, para de certa maneira ‘domesticar’
sua família. O mote mais uma vez, é a paciência que precisa ser preservada a todo
custo, haja o que houver, até mesmo a fome. O terceiro sermão encontra guarida no
capítulo 22, bastante curto, zela pela conservação da família, para o pai, o verdadeiro
alicerce da sociedade, a família é a medida do homem paciente. Tempo e paciência
como sinais permanentes do necessário equilíbrio. O penúltimo sermão, o quarto,
encontra-se no capítulo 25. Já plenamente instalado no lar, André trava uma acirrada discussão com o pai, que senhor da razão
e mestre da oratória, estranha o comportamento do filho e não aceita os argumentos,
para ele toscos e confusos, oriundos da desrazão que move as atitudes impensadas
do filho pródigo. Aproveita o ensejo do debate e exasperado cassa a palavra do filho,
mandando-o dobrar a língua quando for se referir à família. É um sermão, como os
anteriores, ancorado na paciência do tempo, no equilíbrio das ações e na conservação
dos laços familiares. Por fim, o quinto e último sermão do pai, é uma transcrição
do filho, em forma de homenagem, retoma a principal idéia paterna, qual seja, a
de que o tempo é inquestionável e o homem deve se deixar conduzir pelo destino que
rege com sabedoria e justiça a existência de cada pessoa. O filho depois de presenciar
a perda da razão do pai que rasga o ventre da filha com um alfanje, matando-a, ainda
cede a voz a esse guardião sagrado da família que de tanto cultuar o equilíbrio
e a paciência das coisas mergulha na mais profunda loucura, o assassinato de sua
própria filha, o pai dixit e a família se esfacela.
André, o narrador glutão de sua própria história
febril, distende as linhas narrativas para atar os nós dessa trama em círculo chamada
Lavoura arcaica. Afina a sua individualidade por meio das palavras que puxam
outras palavras e remetem cada futura colheita para terras mais frutíferas. As palavras
como as plantas singularizam o percurso de suas raízes e por mais semelhantes que
sejam, ocupam áreas de conflitos. No principal diálogo com o pai, André sintetiza
não apenas a sua posição, mas a do próprio pai, quando reconhece que “uma planta
nunca enxerga a outra” (LA, p. 162). A planta é o verbo que não enxerga o outro
verbo, é a fala que sufoca a outra fala, é o ‘eu’ querendo suplantar a aparência
do outro, é a voz clandestina que vai minando lentamente a imagem discursiva do
outro.
Conclusão:
os desdobramentos da trama
Os
cinco movimentos narrativos de Lavoura arcaica: 1) o tempo da fuga, 2) o
encontro dos irmãos, 3) as divisas da memória, 4) o instante dos discursos e 5)
o tempo da danação, serão estudados detalhadamente no desenrolar da pesquisa do
qual este ensaio serve como preâmbulo das atividades do narrador. A amarração de
todas as passagens do romance implica na compreensão de que André, como narrador
conhecido, atua dentro da diegese e promove uma narrativa homodiegética, tornando-se
mais precisamente, um narrador autodiegético, pois ele relata a história de sua
paixão da qual participa, sendo a personagem principal.
A narração em Lavoura arcaica é ulterior,
pois ocorre no passado, funcionando como uma rememoração da vida do próprio narrador-protagonista,
em alguns momentos a narração torna-se simultânea, já que o narrador utiliza os
verbos no tempo presente gerando a impressão de um diálogo direto entre ele e o
leitor, como ocorre nos capítulos 25 – a discussão com o pai – e 27 – a conversa
do filho pródigo com o irmão caçula, Lula –, este último, um verdadeiro hino à poesia
e ao lirismo. Lula, contaminado pelo desassossego do mundo, projeta ganhar a estrada
e experimentar as fantasias que o próprio André não provou.
As palavras do romance circunscrevem-se nos limites
da voz do narrador-protagonista que embaralha as cartas do jogo, expondo seu ponto
de vista, para ele o único válido, os demais não contam: a fala do pai (Iohána),
do irmão mais velho (Pedro), do irmão mais novo (Lula), do silêncio subterrâneo
das irmãs (Rosa, Zuleika e Huda), a dança sensual e fatal de Ana (a outra margem
do afogado) e a própria mudez irônica do avô, são armas que servem para reforçar
a voz fingida do narrador. A multiplicidade de vozes narrativas em Lavoura arcaica
é aparente, André controla tudo, monta todo relato, junta os pedaços, ordena o caos.
Já que ele mesmo ocasionou toda desordem, resta-lhe, pois, unificar a seu modo as
vozes que permeiam seu campo de ação. O narrador veste a roupa de todas as outras
vozes e vai inventando ao longo da história as leis que regem o seu mundo, diferentemente
do que se possa imaginar, o universo da paixão – sem fronteiras e sem correntes
– possui sua lógica fincada no chão da linguagem, uma linguagem que prima pela expressividade
dramática do enredo. O processo ficcional enunciado pela linguagem do romance nassariano
evidencia a desestabilização de perspectivas, instaurando no âmago do protagonista
a vontade certeira de aproximar-se, o mais possível, da invenção. Já que todo “narrador
é inventor”, [9] André desfruta, na suma
amplitude de seu destino, da capacidade criativa que nasce dos tentáculos do tédio
e alcança a bem-aventurada danação do silêncio significante, aquele que pousa no
lauto banquete da beleza e aplaca a fome do rebanho. “Ao narrar, compete-lhe inventar
a linguagem”. [10] O discurso do narrador-ouriço,
André, é pura invenção.
O próximo passo para iluminar o universo diegético
do narrador, será abrir a cartilha de inconformismo que é Lavoura arcaica
e estabelecer as relações temporais e espaciais perpetradas pelo narrador que tem
parte de suas raízes plantada na região limítrofe entre o moderno e o arcaico, como
também, traçar os elos dessa família patriarcal que certamente com os seus costumes
gera todos os conflitos. Mas, aí já é assunto para uma próxima colheita.
NOTAS
1.
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In Magia
e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221.
2.
Cf. Reis & Lopes. Dicionário de teoria da narrativa. 1988: 128.
3.
Anotações feitas durante o curso de Narratologia (segundo semestre de 2000)
ministrado pelas professoras Maria Célia de Moraes Leonel e Maria de Lourdes O.
G. Baldan.
4.
Cf. o revelador ensaio de Françoise Van Rossum-Guyon, intitulado Ponto de vista
ou perspectiva narrativa: teorias e conceitos críticos. In Categorias da narrativa.
Lisboa: Veja, s.d. p. 19-53.
5.
Anacronia é todo tipo de alteração da ordem dos eventos da história. Com mais nitidez
se patenteia a capacidade do narrador para submeter o fluir do tempo diegético a
critérios particulares de organização discursiva, subvertendo a sua categoria por
analepse (recuo) – movimento temporal retrospectivo destinado a relatar eventos
anteriores ao presente da ação e mesmo, em alguns casos, anteriores ao seu início
–, a própria ativação da memória de uma personagem; a analepse pode ser externa,
interna ou mista e por prolepse (antecipação) – movimento temporal destinado
a antecipar fatos, a apresentar acontecimentos futuros –, os tempos verbais (futuro
e presente) contrastam com o passado dominante. Cf. GENETTE: Discurso da
narrativa: 1995. (Cap. 1, Ordem, p. 31-83).
6.
FERNANDES, Ronaldo Costa. O narrador do romance, 1996, p. 142.
7.
Cf. SEDLMAYER, Sabrina. Lavoura arcaica: um palimpsesto, 1999, p. 6-7.
8.
Cf. o importante e revelador ensaio Da cólera ao silêncio de Leila Perrone-Moisés
(p. 61-77). In Cadernos de Literatura Brasileira: Raduan Nassar (n.
2, setembro de 1996), p. 65.
9.
SCHULER, 1989: 38.
10.
Ibid., p. 38.
LEONTINO FILHO (Brasil,1961) Poeta e Professor de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira, na Universidade
do Estado do Rio Grande do Norte/UERN. Autor de Cidade Íntima (1987/ 1991/
1999), Semeadura (1988) e Sagrações ao Meio (1993). Contato: leontinofilho@uol.com.br. Página ilustrada
com obras de Paulo Aguinsky (Brasil), artista convidado desta edição.
*****
Agulha Revista de Cultura
Número 105 | Dezembro de
2017
editor geral | FLORIANO MARTINS
| floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO
SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO
MARTINS
revisão de textos & difusão
| FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados não
refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores não se responsabilizam
pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
Nenhum comentário:
Postar um comentário