Herberto
Helder, “Holanda”, Os passos em volta
não nos separe o Diabo dessa coluna de salvação
que
é a parte divina no outro
José
Augusto Mourão, Onde rasgar janelas
O
elemento religioso na obra herbertiana
Desde os seus mais remotos textos, Herberto
Helder toma Deus como assunto ou personagem. Assim acontece nos poemas “Salmo em
que se fala das alegrias secretas do coração”, e “Ode fúnebre”, publicados em 1952.
De modo geral, quer como Outro, quer como Eu, quer através dos atributos, fábulas,
rituais e figuras do contexto católico ou diferente, Deus vem acompanhando o poeta
até aos dias de hoje.
O assunto religioso associa-se ao discurso
étnico. Assinalo assim que, desde sempre, Herberto Helder tem manifestado interesse
pela poesia tribal e tradicional. Tal sucede n’ O bebedor nocturno, com primeira edição em 1968, constituído por vinte
e dois blocos de poemas pertencentes às culturas mais distintas – haikus, poemas
esquimós, indonésios, dos peles-vermelhas, do Antigo Egipto, etc. Neste livro, além
de um “Saltério”, figura um poema de amor belíssimo, vertido da Bíblia, o “Cântico
dos cânticos”. N' “A máquina de emaranhar paisagens” (1), o poeta cola frases de
proveniência semita, como o Apocalipse e o Génesis, a versos de François Villon,
Dante e Camões.
Os textos de origem bíblica foram estudados
por autores vários, entre os quais Vasco António Gonçalves, José Ferreira de Almeida,
Agostinho de Jesus Ferreira, e João Amadeu Oliveira Carvalho da Silva, mas os de
outras proveniências étnicas, que saiba, ainda não. Eu analisei o fator antropológico
na sua obra, mas sem dar especial relevo à questão religiosa. Sobram portanto dezenas
de textos a merecer atenção às marcas do divino, nos livros As magias, Doze nós numa corda, Ouolof, Poemas
ameríndios, Photomaton & vox, Ofício
cantante, Os passos em volta e O bebedor nocturno.
A obra herbertiana pode ser toda legendada
com a súplica que dá título a um dos seus contos, e eu tomei para título do meu
primeiro livro sobre ele: “Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro”.
No poema “Do mundo”, deduz-se que o seu pedido foi satisfeito, uma vez que o poeta
escreve: “Deus quis que eu entenebrecesse”. O poeta é um profeta, recebeu o sopro
divino, a sua língua é flamejante e salvadoras são as suas palavras. Ele garante
aos leitores: “Eu trabalho segundo as recomendações de Deus” (2). No último poema
de Cobra, eliminado no meu exemplar do livro (3), figuravam, e ainda figuram, estes
versos, relativos a um rosto que canta, por isso identificável como o do sujeito
lírico:
O
rosto salta.
Nu,
violento, inocente, enorme, miraculado.
A obscuridade refere-se ao magistério iniciático
e não ao académico: “O meu poder é obscuro. Desalojo dos labirintos da ciência uma
fala essencial, cultivada pela ingenuidade. Empunho essa arma inocente, com ela
atravesso meu ser dúbio, o vocabulário das contradições. Talvez eu mesmo comece
aqui, neste momento ignorante, onde se faz uma claridade inexplicável” (4).
A questão mais funda relativa a Édipo, para
aludir a outro tema na obra de Herberto Helder, não é descobrir o segredo da Esfinge,
sim descobrir o Homem. Sentimos demasiado medo de nos conhecermos a nós mesmos,
é mais fácil fugir com o rosto ao espelho e à candeia, pois não acreditamos em nada.
Niilista, o poeta não acredita que possa ser anjo no reflexo que não encara, por
nele temer o Demónio. Por muito que a si mesmo se tente, com palavras a pingarem
mel, ele prefere à luz a obscuridade. Não acredita em si mesmo, deseja que a poesia
o salve, mas o desejo não é crença nem esperança, é um potencial que mantém ativa
a demanda. De outra parte, sim, ele acredita nos seus dons de poeta obscuro.
Vamos relembrar: o livro Apresentação do rosto abre com versos de
Lycophron, poeta dito “O Obscuro”. Aqui e ali, nos poemas, o suspiro “Meu Deus,
faz com que eu seja sempre um poeta obscuro” reitera-se de modos vários. N' O bebedor nocturno, figura um poema intitulado
“A obscuridade”, na qual os seres que permanecem no escuro invocam outros seres,
pedindo-lhes a luz e que lhes seja mostrado o caminho. Esta questão envolve um dos
vários mitos pessoais de HH. Afinal não existiria questa da Luz, nem peregrinatio,
nenhuma filosofia hermética no Ofício cantante,
se o poeta fosse um iluminado. Não, ele não é um iluminado, é um aprendiz, e por
vezes garante mesmo que não é um mestre.
O poeta declara, aqui e ali, não acreditar
na existência de Deus, e é assim que remata o conto “Poeta Obscuro” - “Que nem mesmo
Deus, se existisse… Etc.”. Porém, o seu discurso é religioso, mesmo onde o apelo
à religião se torna estranho, como a conversa, n’ Os passos em volta, de dois homens que se confessam um ao outro num
bar. Estranha situação ainda, essa do conto “Brandy”, porque o discurso sobre Deus
comporta uma rejeição da Igreja. Ela começa na recusa do vinho, por ser bebida eucarística,
quando o vinho, como bebida mítica, dá corpo a um dos espaços de imaginário mais
comuns neste poeta de cepa dionisíaca. Reforçando a pregnância do discurso religioso,
as personagens que bebem brandy falam mesmo de milagre. Ora o milagre é um dos tipos
de metaforização herbertiana, como veremos a seguir.
Se bem que na obra ocorram formas de divindade
muito distintas, o que predomina é a manifestação da cultura católica. Ela impregna
os poemas de forma difusa ou conspícua, fornece o terreno em que floresce o arrebatamento
da linguagem salmódica ou hínica. É deste caldo que irrompem Deus e Demónio, por
muito que se afastem das leituras do catecismo que todos fizemos na infância.
Entre os elementos do religioso não católico,
figuram os que podemos associar à alquimia e à magia. São inúmeras as referências
mágicas dispersas na obra, ou expressas na tradução de poemas mágicos, não só étnicos
como de autores ligados às ciências ocultas, caso do Conde de Saint-Germain, cujo
soneto sobre o poder criador da natureza figura no livro As magias. Num dos textos
mais significativos desta dominante, o poeta conta a história da máscara que trouxera
com ele de uma aldeia do sul de Angola, na qual só o feiticeiro podia tocar. Outra
qualquer pessoa que se abeirasse dela ficava sujeita a revés. HH não deu atenção
à advertência e logo a seguir sofreu um aparatoso desastre de automóvel, seguido
de outras desgraças caídas sobre quem tocara na máscara enfeitiçada (5).
Ao verter para português textos das culturas
de outros povos, HH busca uma ancestralidade literária, uma parentela que não pertence
ao foro do ADN, sim ao da imaginação criadora, ou do sonho, como lhe chama Alexandrian.
O poeta obscuro é uma imagem do xamã, ela estabelece uma árvore genealógica sacerdotal.
E tanto isto é assim que, em Lapinha do Caseiro, não só declina a autoria em Francisco
Ferreira, um seu bisavô santeiro, como num dos poemas que ali publica, junto às
fotografias dos santos esculpidos pelo antepassado, garante que se senta “a conversar
com Deus: palavra, música, martelo / uma equação: conversa de ida e volta.”.
Que natureza assume o sujeito lírico para
conversar com Deus? Será ele um dos serafins? Um apóstolo? Um feiticeiro? O poeta
afirmara, linhas antes de se sentar para a dita conversa: “eu falo o idioma demoníaco”.
Deus
é uma possibilidade necessária
Recuemos a décadas transatas, em que os intelectuais
se lamentavam que Deus tivesse desaparecido dos livros, e depois se congratulavam
com o seu regresso. De facto, a História de Deus na arte contemporânea parece estar
ainda por escrever. A questão não se limita à de o catolicismo ir perdendo as suas
ovelhas, em todos os espaços sociais, incluídos conventos e igrejas, e não apenas
no literário. Porém, do meu ponto de vista, Deus nunca desapareceu da arte; simplesmente,
por “Deus” não podemos entender apenas “Igreja Católica”. E também não podemos entender
“fiéis católicos”. Por muito que os artistas possam ser ateus ou agnósticos, Deus
está sempre presente nas obras. Afinal, as religiões são os maiores produtores de
cultura. Não podemos fugir ao que nos corre no sangue. Somos seres de cultura e,
em primeiro lugar, no nosso caso ocidental, cultura católica.
Posto isto, Deus faz volta e meia a sua aparição.
Volta e meia, o poeta faz um braço-de-ferro com Deus, como fica patente no primeiro
verso de “A faca não corta o fogo”: até que Deus é destruído pelo extremo exercício
da beleza (6), declaração que já vem de Lugar, com primeira edição em 1962. Digamos
que Deus é destruído pela sua própria criação, o poeta é ofuscado pela beleza da
sua poesia.
Herberto Helder não acredita na existência
de Deus, porém o poeta não só deseja Deus, não só faz de Deus objeto de questa,
como de caça. É o que lemos por exemplo em Cobra:
Abisma-se o mistério
animal
até ao centro da caça. Atraio Deus.
Leão vermelho
a
brilhar nas clareiras, à frente das incessantes
mãos
do caçador.
Apesar de descrente, o poeta declara-se filho
de Deus, por estas palavras ou outras, ao longo da obra. Assim acontece em Flash, ao rematar um dos poemas:
Vêm
os animais, alvorecendo, os cornos a rasgarem a cabeça:
outra
espécie de luxo,
de
melancolia.
E
o corpo é uma harpa de repente.
Animal
de Deus, eu.
Uma
ferida.
O Deus da Igreja católica está presente, com
o discurso que culpabiliza e que perdoa, com os rituais da comunhão e do baptismo,
e com a palavra da salvação. A palavra salvadora manifesta-se como um Messias. Dizer
que existe um messianismo da palavra em HH, uma busca do Nome que salva traz à mente
o ato de contrição: “Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada, mas
dizei uma palavra e serei salvo”. É como se fosse uma mensagem secreta inscrita
na parte mais funda de um palimpsesto, ou latejando de modo obscuro sob o rosto
de uma Mona Lisa – é a nossa cultura mais primária que se exprime e a ela não lhe
podemos fugir. Acontece apenas que a palavra salvadora, no Ofício cantante, não é Jesus Cristo.
É algo chocante ler em Eduardo Lourenço que
uma das grandes transformações do ocidente se deve ao caso de até o clero ter deixado
de acreditar na ressurreição. Não acreditando na vida além da morte, em que poderemos
nós acreditar? E como falar do nada em que o ser mergulha, ao fechar os olhos para
sempre? A morte deixa de fazer sentido mesmo como funeral. Sem ao menos o fingimento
da crença na vida eterna, não conseguimos morrer. É o que acontece nesse poema de
A faca não corta o fogo em que HH pede
que, quando morrer, antes de alguém se preocupar com funerárias, se certifique de
que está mesmo morto, matando-o.
A questão é muito radical, porque não acreditar
nisso põe sob xeque-mate a crença, como faculdade mental. Ou a asserção é uma possibilidade
e não um facto, ou então já nos adaptámos à falta de crença por termos descoberto
novos alicerces de sobrevivência espiritual. Creio bem que sim, e a persistência
de Deus em textos descrentes é uma boa prova disso. Esta é também uma proposta de
indagação de Swinburne, ao declarar que a formulação ateísta de que Deus não existe
tem hoje uma substituta, a de que Deus é uma possibilidade necessária. Quanto a
mim, creio que os incréus, como se dizia antigamente, substituíram a crença pelo
desejo. Alguns dizem-se descrentes praticantes. São os que sentem desejo de Deus,
por isso cumprem os rituais, na esperança de que Deus se lhes manifeste um dia.
Deus é necessário no Ofício cantante: com quem poderia o poeta medir forças, estando Deus
ausente dele? Deus faz a sua aparição nos poemas por ser desejado, porque o poeta
o invoca. Desejo e necessidade, eis o que mantém Deus vivo na arte e na mente. Não
foi Deus que morreu, foi a crença. Permanece viva também a capacidade de esperança,
ou já teríamos perdido a sanidade mental, por falta de horizontes utópicos, contrapesos
para a miséria cultural e espiritual da nossa vida burguesa.
Aqui e ali o poeta faz girar em torno dele
uma catedral de palavras, assumindo-se com Deus nela. Mas com mais frequência apresenta-se
com as marcas do Demónio, ou como o Demónio. É o Demónio que escreve, não tanto
contra Deus, mas em batalha com Deus, como se só Deus estivesse à altura do seu
desafio. Sentindo-se porventura vítima de uma tremenda injustiça, que o encharcasse
em culpa sem crime nenhum haver cometido, o poeta reconhece-se demoníaco mas sempre
inocente. Um fragmento de Última ciência
situa-nos no problema:
E
explode a espuma no filme
sideral.
O talento tumultuoso de uma camélia
debaixo
das varas. E ao meio,
eu
– inocente, inocente. Largo na testa
para
a loucura e o baptismo.
Arte
de redacção: ver isto,
ver
a morte – dar-lhe um nome de diamante com o nervo
dentro.
A veia selvagem trespassando a acerba
massa
dos vocábulos. E nos lugares visuais do paraíso,
assinar:
o demoníaco – com todas as letras
doces (7).
A confrontação com Deus parece não resolver
conflito nenhum, de resto, noutro texto, a beleza surge como pomo de discórdia,
não entre o poeta e Deus, sim entre o poeta e a crítica literária académica, para
a qual a beleza teria passado de moda. Assunto importante porque, para o poeta,
a beleza é o único sentido da vida.
Além de Deus, como Nome - que pode ser “a
lição do nome que não tem Deus” (8) -, estão presentes nos poemas sinais diversos
que aludem à sua existência: existência mental, mais forte que a real. Mas qual
é o Messias desta poesia?
Notemos que os sinais externos que apontam
o divino pertencem sobretudo a duas categorias: as auras, os anjos e o recorrente
milagre de andar sobre as águas, pertencem, digamos, ao ortodoxo Deus do Bem. Muito
mais numerosos são porém os sinais contrários: luz tão forte que se torna luciferina,
notas sobre o canhoto e mão esquerda, gárgulas, e algumas a golfar sangue, referências
a uma besta soberba e a um deus com fenda no casco (9). Pessoas e crianças demoníacas
são personagens de primeiro plano, quer no Ofício
cantante, quer nos livros em prosa. O poeta alberga-os a todos em si mesmo,
ele é um deus multipolar. O móbil que o poeta atribui a Pero Coelho, um dos assassinos
de Inês de Castro, é o amor. Não que Pêro Coelho estivesse apaixonado por Inês,
mas tinha os olhos postos decerto no horizonte da imortalidade. Na opinião do poeta,
o assassino era um salvador, o que ele queria era salvar o amor do amor. Então ocorre
a condenação: “Matar por amor do amor é do espírito demoníaco”. O assassino sabe
que irá parar ao Inferno, e proclama: “Deus não é chamado para aqui”. (10) Quem
ama o amor não é a pessoa apaixonada por outra, é o teólogo, o filósofo, o escritor.
No primeiro dos dois poemas da página 435
do Ofício cantante, a poesia é um dom
demoníaco – “Essa dádiva infernal fechada na metáfora”, escreve o poeta. No segundo,
alusivo ao canto que deixa sangue na boca, recorre-se à palavra “demonia”. De daimon, é provável, como o termo demónio: “Que seja a demonia: – a arte mais
forte de morrer / pela música, pela / memória”.
Não descobri a palavra “demonia”, apesar de
a ter buscado em fontes várias, escritas e orais. A hipótese de se tratar de mudança
de acentuação do nome “Demónia” (o poeta alterou a acentuação de inúmeros vocábulos
nos seus últimos livros) foi logo rejeitada por Frei José Augusto Mourão, alegando
que não existem demónias. Curiosa perspetiva, a do nosso querido amigo, que deve
ser decerto a que exige o bom conhecimento da teologia. Deixa-me assim sossegada
quanto ao meu Diário de Lilith (11), e
também quanto a obras de outros autores em que as diabas existem mesmo. António
Abujamra, carismático ator e encenador brasileiro, informou em e-mail que Lorens,
dramaturgo norueguês, obteve enorme sucesso com a peça Demônia.
Vimos entretanto que Herberto Helder define
a “demonia” como a arte de morrer pela música, significando isto que cria a palavra
à imagem e semelhança de “poesia”. Em suma, a poesia é uma arte demoníaca, afirmação
reiterada de modos diversos em vários locais da obra.
No poema dedicado aos mestres, “mestres do
fogo”, como diz Mircea Eliade, encontramos mais um dos regulares sinais de que são
infernais os mesteres de ferreiro e alquimista, quando os vemos arrebatados pelo
demoníaco (12).
Não sei se existe um messianismo infernal,
já que era do Messias que vinha falando. Nada porém impede que um artista o crie,
aliás o messianismo é interpretação cristã das Escrituras, que não corresponde à
vivência hebraica de um mesmo messianismo, de acordo com Frei Francolino Gonçalves.
Ou seja, os teólogos, quando interpretam, criam, e assim as religiões se diferenciam:
Enquanto Jesus leu nas Escrituras antes de
mais o anúncio do Reino de Deus de cuja instauração era o arauto, os cristãos lêem
nelas o anúncio do próprio Jesus confirmado na sua função de Messias/Cristo. Por
conseguinte, a leitura cristã das Escrituras é cristológica. Tem Jesus
Cristo como única chave hermenêutica. Segundo a leitura cristã, as Escrituras, apesar
das aparências contrárias, falam de antemão de Jesus Cristo de uma ponta à outra.
As personagens (por ex., Moisés e David),
os acontecimentos (por ex., a travessia do Mar dos Juncos), as instituições (por
ex., o templo e o sacerdócio), os ritos (por ex., o cordeiro pascal) e os valores
(por ex., a lei) referidos nas Escrituras são, de facto, simples figuras, tipos
ou esboços de Jesus Cristo. Têm um sentido mais profundo que diz respeito a Jesus
Cristo. Por isso, só a pessoa e a vida de Jesus Cristo podem revelar esse sentido.
(13).
Ora, julgo que o braço-de-ferro com Deus provém
deste ponto, precisamente: o artista também é Criador, por muito que as religiões
só a Deus atribuam esse poder. De qualquer modo, o poeta, mais do que equiparar-se
a Deus, equipara-se ao Demónio, quando fala da fornalha em que mergulha a mão para
dela retirar as palavras, quando garante: “eu falo o idioma demoníaco!" (14).
A questa do Nome domina a obra, de tal forma
que gera um messianismo que se assemelha ao tema da Palavra perdida dos maçons.
É tarefa deles empreenderem a sua descoberta, como parte da obra ao Forno que todos
devemos realizar. António de Macedo diz ter sido já encontrada – seria o nome de
Deus em hebraico. Em Herberto existe essa mesma demanda da palavra perdida, o Nome.
Se alguma vez pertenceu a sociedades iniciáticas, ignoro, mas estes conhecimentos
são acessíveis a quantos se interessem pela literatura esotérica.
Sigamos, perguntando de novo se o messianismo,
no autor, pertence ou não à ordem das coisas divinas, tenha o sinal do Céu ou do
Inferno. Por outras palavras, perguntemos o que impele o leitor pelas páginas do
Ofício cantante, ou o que move o poeta
à escrita do poema. É algo que ilumina, explica tudo, responde a todas as perguntas,
e por isso salva e, portanto, há que designar-se por messianismo, ainda que negativo,
ainda que se acredite que o Messias não virá:
a
madeira trabalhamo-la às escondidas,
e
com o barro e o ferro às escondidas reluzimos no escuro,
o
Deus que há-de vir não veio ainda,
a
água não sobe ao rosto,
não
sobe com luz ao rosto como devia e não trabalhamos com
água
coada e fogo,
quebrou-se
a enxuta substância da terra,
e
então o Deus que há-de vir não há-de vir nunca (15).
Porém, logo na página seguinte a crença é
oposta, e teima-se que virá Deus, ainda que pareçam irónicos os versos, por pertencerem
a um monólogo interior em contexto muito quotidiano de quem está no chuveiro:
vem
aí o sagrado, e tornam-se radiosas as coisas mínimas
e
amadureces,
e
no meio de azulejos, torneiras, gás, temperaturas,
tocas,
por
favor da ferida primeira,
no
teu centro, tocas
para
causar profundidade,
quer
dizer: vem o Deus que há-de vir, sente-se
contra
a água e a cabeça,
tão
perto, contra
kapput,
a
cabeça
purificada
-
¿ e o Deus que há-de vir há-de vir andando sobre as águas? –
nada
no mundo pede de ti o poder da dança,
nenhum
poder debaixo da água lustral que te abraça,
por
teor dos movimentos do duche,
te
despe e abraça,
entre
membros e ilhargas, o nó que rematou a obra
desde
o remoto, essa
sim
jubilação arcaica,
pois
por trás da cortina plástica já se exacerba
a
matéria dos dons, tão
leve
linguagem,
uma
espécie
de técnica do temor e tremor no quotidiano
[...] (16)
Existe um messianismo em Herberto, que nem
é o de esperar salvação de Deus, nem do Inferno. É o messianismo de quem acredita
nos poderes e ferramentas próprios, e os dele são os do poeta. Um Lúcifer ou Phosphorous
português: “o fósforo e a lixa do teu nome riscam / e calcinam / a língua portuguesa”
(17).
Se a resposta fosse esta, tão simples e inócua,
para que se daria o Homem ao trabalho da escrita e da leitura? Continuaremos a correr,
encandeados por uma luz que cega, autor e leitores, atrás do Messias. Mas que Messias
chama por nós nos precipícios da língua? Eu não sei, e o autor, basta ler-lhe os
livros, também não sabe. O mistério existe, e esse espelho do Criador, que atrai
como um íman, merece que prossigamos. Afinal, não sabemos se o Deus que há de vir
já não vem.
Imagens
miraculadas
Entre as partículas da explosão poética helderiana,
vemos duas linhas de organização predominantes, sempre prontas a dar suporte a qualquer
novo elemento de construção que surja: o fogo e o canto. O fogo como instrumento
de trabalho, uma vez que o poeta associa a sua arte à de artífices como ferreiros,
alquimistas e vidraceiros. E o canto como arte maior, veículo de redivida e de imortalidade.
A poesia apresenta-se como canto, investindo-se
de dimensão litúrgica. É uma arte demoníaca, em paralelo, apesar de ser língua flamejante,
como lemos em “Lugar” (18). Tal como os Apóstolos receberam o dom das línguas, assim
as línguas de fogo iluminam o poeta. As imagens da Bíblia estão sempre presentes
no conceito de poesia como fenómeno excepcional – divino, demoníaco ou alucinado:
Há uma roda de dedos no ar./ A língua flamejante./ Noite, uma inextinguível / inexprimível/
noite (19).
Ora o que fascina o leitor e o poeta, é esse
filme de palavras flamejantes, pois ele constrói um mundo perturbador da consciência,
ao gerar imagens surpreendentes, construções impossíveis, seres e coisas que violam
os limites do mundo natural, e, nesta medida, atacam a sua normalidade. A transgressão,
ao romper as membranas que separam o mundo natural de outro mundo, um mundo desejado
pelo poeta, mas que nem ele nem nós sabemos qual seja, cria vias de acesso ao conhecimento
de espaços a que poderíamos chamar surrealistas, e são-no, mas que ultrapassam a
questão técnica e cultural para colidirem com o sobrenatural. A metáfora herbertiana
corresponde a um milagre, e o domínio mais evidente para testarmos esta hipótese
de trabalho é o da língua flamejante, ou seja, o do fogo.
Não vamos discutir a palavra “milagre”: na
sua origem etimológica reside a ideia de maravilha, por isso não ficaremos confinados
à significação católica. Os “senhores do fogo”, esclarece Mircea Eliade, comem fogo,
andam sobre brasas, mergulham as mãos em carvões incandescentes, tal como os santos.
São os xamãs, os ioguis e os feiticeiros de religiões primitivas. Bebem álcool,
comem comidas muito apimentadas ou com muito sal, para aumentarem a temperatura
do corpo, de modo a trabalharem com o fogo, sem se queimarem. Os primitivos falam
do poder mágico-religioso como sendo “inflamado” e exprimem-no em termos que significam
“calor”, “queimadura”, “muito quente”, etc. – instrui Eliade.
Estes exemplos dizem respeito a fenómenos
relatados e estudados também por Jean-Jacques Antier (20) enquanto constitutivos
de situações de milagre. Como ele refere, fenómenos idênticos aos experimentados
pelos santos ocorrem noutras religiões e culturas. Focamos neste caso fenómenos
relativos ao tato e à derme, resultando na subida anómala da temperatura, designada,
no caso do amor místico a Deus, por incendium
amoris. Esse fogo está presente na maior parte dos poemas, quase sempre relativo
a algo que produz a poesia ou é esse canto. “Arder”, “ferver” e similares verbos
indicadores de subida de temperatura são frequentíssimos. Em paralelo, substâncias
com capacidade para aumentar a temperatura interna, usadas pelos xamãs, como o álcool
e as drogas, também se lhes associam às vezes. Vejamos meia dúzia de expressões
ardentes:
Eu
comia fogo ao pé das cerejas
[Este homem] / Vive em/arco.
Pensa em/ espírito de fogueira.
Tem toda a mão queimada até ao silêncio
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens
[...]
Ou lhe ponhas no escuro
um incêndio:
e te ilumines dele, E a tua cara se faça
miraculada
à combustão, E entres rutilante por uma porta
para outra porta, Essa porta que dê
para uma porta de ti própria,
a mão ateando a escrita (Ofício
cantante)
“Miraculada”, escreve o autor. Não há dúvida,
é de milagre que se trata. Entre todos, o da hipertermia é o mais frequente: criaturas
incandescentes, ou com ferros em brasa na cabeça, encontramo-las em profusão, desde
os primeiros aos últimos poemas. Febre, delírio, corpos que fervem, cabeleiras que
ardem, mãos que se metem em fornalhas, são às dezenas.
A imagem herbertiana, dadas as suas características,
equivale ao milagre, só tem paralelo num universo de fenómenos excepcionais, diverso
daquele que a ciência explica, invocando as leis da natureza. É o caso também dos
modos miraculados de tocar, toques que curam doentes ou que ressuscitam mortos.
Neste campo do maravilhoso, encontramos as surpresas maiores do discurso de Herberto
Helder.
No que respeita ao tato, faço uma seleção
pessoal de imagem que considero central, por tudo a ela poder referir-se neste domínio
do passar a mão por, que é ainda uma imagem de milagre, visto que o toque de dedos
é um sinal de reconhecimento de identidade entre homens e deuses. Essa imagem é
a de Adão ao ser tocado pelo Criador, pintada por Miguel Ângelo na Capela Sistina:
quem sabe?, na muita lembrança da luz,
se houvesse desde o princípio, dedo no dedo,
a faúlha,
ou se quiserem: no toque dedo no dedo,
o abalo oculto -
garrafa diurna gerada como absoluto, a fogo.
O toque de dedos é demiúrgico – transmuta,
cria, chega a mudar o mundo todo. Só mais um exemplo desta alquimia: “toco num objeto
ele brilha / Tocava, abalava organismos” (21).
Questão de o alquimista lavrar bem nas chamas
a coisa de argila que leva ao atanor. Essa imagem surge de vez em quando, por vezes
associada às ferramentas de um canteiro que, sem transporte metafórico, é o escritor
que usa esferográficas, e mais realisticamente a Bic. A Criação de Deus e a Criação
do poeta encontram-se. Com isso, surge a paixão, o desejo de ser iluminado, escrito,
transfigurado, criado pelo poder demiúrgico desse toque. De novo um Messias no horizonte,
para adoçar esta sessão, finda a minha caminhada por uma poesia coroada de espinhos:
Alguém há-de
tocar-me com um dedo, alguém
há-de
pôr-me um selo (22).
NOTAS
(1) Ofício
cantante, p. 215
(2) “Do mundo”, in: A faca não corta o fogo, pp. 123 e 124.
(3) O poeta distribui pela imprensa e pelos
amigos cem exemplares do livro Cobra, com emendas manuscritas, que diferem de exemplar
para exemplar. O meu tem o último poema muito corrigido e finalmente eliminado por
riscos de alto a baixo.
(4) Photomaton
& vox, p. 39.
(5) “(a máscara)”, em Photomaton & vox
(6) Ofício
cantante, p. 535.
(7) Ofício
cantante, p. 437
(8) Ofício
cantante, p. 606
(9) Parte destes exemplos vêm de “Flash”,
no Ofício cantante, pp. 364-365.
(10) “Teorema”, em Os passos em volta.
(11) Maria Estela Guedes, Tríptico a solo, Escrituras, 2007.
(12) Ofício
cantante, p. 466.
(13) Francolino J. Gonçalves, “O Antigo Testamento
e Jesus Cristo”
(14) Ofício
cantante, p. 441.
(15) Ofício
cantante, p. 565.
(16) Ofício
cantante, p. 566.
(17) Ofício
cantante, p. 577.
(18) Ofício
cantante, p. 137.
(19) Ofício
cantante, p. 137.
(20) Jean Guitton, Os misteriosos poderes da Fé –
Diálogo com Jean-Jacques Antier.
(21) Ofício
cantante, p. 479
(22) Ofício
cantante, p. 529
Conferência
integrada no ciclo “Conversas Cruzadas”. Instituto São Tomás de Aquino, Centro Cultural
Dominicano, Lisboa, 15 de Janeiro de 2011. Página ilustrada com obras de Sérgio Bonzón
(Argentina, 1959), artista convidado desta edição.
*****
Agulha
Revista de Cultura
Número
109 | Abril de 2018
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor
assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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& design | FLORIANO MARTINS
revisão
de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe
de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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CNPJ 02.081.443/0001-80
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