quarta-feira, 10 de outubro de 2018

GRACO BRAZ PEIXOTO | Penny Lane, em camadas


Uma canção é uma cápsula de sons e sentidos, um pequeno engenho de arte construído no tempo, suporte em que tudo acontece e se desloca desde seu início ao termo. De aparente casualidade, para chegar ao estágio de gema polida uma bela canção pode levar em seu corpo camadas invisíveis de sua história. Ela carrega em sua composição elementos que denotam o repertório cultural, criativo e estético de seu autor. Modos de discurso, palavras escolhidas, palavras recusadas, experimentações de acordes, soluções melódicas e harmônicas, ideias de arranjos, de rimas, espírito de crítica, de exaltação ou tristeza, de sensualidade ou espírito romântico, tudo isso pode estar contido numa canção.
O intento de se compor uma canção é pago com o prazer e a dor do trabalho de seu ou de seus ourives. Em seu laboratório, ao colocar no forno de sua paixão o seu mercúrio, enxofre e sal, para exercer sua alquimia espiritual no reino dos sons e dos sentidos o cancionista pretende ser ungido com o ouro da beleza. Agora composta, ela se apresenta como sortilégio, como caprichoso predicado de seu artífice.
Esculpida nota por nota, sílaba por sílaba, vestida pelo timbre da voz, pela sonoridade do instrumento usado, pelo ritmo, pelos recursos interpretativos e pela enunciação anímica do cantor-autor, seu gestual, sua aparência, sua dicção e, sobretudo, por sua realização no âmbito melódico, harmônico e textual a canção se materializa para além do estímulo sonoro. Podendo ser uma refinada fonte de fruição, experiência de alegria, tristeza, relaxamento ou elevação espiritual, uma grande canção se projeta no tempo soado para penetrar no córtex cerebral e virar memória, que a qualquer momento pode ser reativada, revivida. Segundo neurocientistas, para tornar-se memória ela deve ser mediada pelo que conhecemos como emoção.
Busco a emoção como trilha que me leve à Penny Lane da minha infância, uma canção em uma casa com cinco irmãos e cheia de música na Rua Rodrigues Júnior, pertinho do centro de Fortaleza. Composta no piano por Paul McCartney, com toques preciosos de John Lennon nos versos a banda entrou no estúdio Abbey Road, para sua gravação no LP Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band no final de dezembro de 1966, mas acabou não entrando no repertório do disco porque nesse período Brian Epstein, manager da banda, pediu ao arranjador e produtor George Martin, o “Quinto Beatle”, um “single” para não deixar cair a onda Beatle até o lançamento de Sgt. Pepper’s, evento que mudou a história da música pop. Martin, músico de formação clássica, teria dito a Epstein que as duas músicas já gravadas eram as melhores que a banda tinha feito até aquele momento. As músicas eram Penny Lane e Strawberry Fields Forever.
O compacto simples foi lançado no Reino Unido em 13 de fevereiro de 1967, e seu lançamento nos EUA ocorreu no dia 17 de fevereiro. Depois, foi incluída no álbum Magical Mistery Tour, disco em que os Beatles dão continuidade a uma estética não tão audaciosa quanto a do Sgt. Pepper’s, mas ainda absorvendo as inovações na música de vanguarda, nas artes plásticas e no cinema, aderindo ao Psicodelismo na fronteira com o Surrealismo. Paul desempenhou papel importante nesta fase da banda.
Penny Lane é uma rua e também um bairro de Liverpool, cidade dos garotos da banda no norte da Inglaterra. Muito usada na rota diária de John e Paul, era igualmente o nome de um grande terminal de ônibus que serve a cidade. Ganhou esse nome em referência a um conhecido proprietário de um navio negreiro, o mercador de escravos e antiabolicionista James Penny. “Lane” significa alameda, vereda.
Já a canção significa um tempo mágico ou uma pequena cosmogonia. Não havia, mas não seria inadequado haver um ritual para por o disquinho dos cabeludos na vitrola. Como um jato sonoro, aquelas vozes inundavam repentinamente o ambiente com um vocal vibrante, puxadas por um piano e contrabaixo em ritmo alegre e bem marcado. Como não entendíamos o inglês, a audição se dava em algum nível não cognitivo, puramente anímico. Se fosse descrever esse processo químico na linguagem da neurociência, aquela música provocava em nós uma descarga de endorfina, dopamina, serotonina em nossos corpos, algo quase táctil, algo que crescia com a fruição daquelas vozes, pois sentíamos uma segunda vibração depois que a primeira melodia com oito compassos recomeçava, desta vez com a entrada da bateria.
O resultado era uma cena muito caricata: saíamos a cantar com alvoroço, imitando os sons que ouvíamos, criando outro idioma, alheios a qualquer sentido que não fosse ligado ao ritmo, às vozes, à melodia. Eu e Caio Silvio Braz, meu irmão, intuitivamente ouvíamos algo diferente e muito bacana naquela música. Existia nela uma riqueza musical que até então não conhecíamos. Cabe aqui uma lembrança. Em Amadeus, obra-prima do cineasta tcheco Milos Forman, adaptado da peça do autor e roteirista Artur Peter Shaffer, Antonio Salieri, interpretado pelo grande F. Murray Abraham, rivaliza com Wolfgang Amadeus Mozart (Tom Hulce) e não esconde sua admiração pela música que qualifica como divina. Para Salieri, Mozart, debochado, sensual, amoral e pragmático com seus deveres de compositor e animador da corte do Imperador Joseph II, da Áustria, era o escolhido por Deus para compor. Como tamanha injustiça, uma vez que ele era tão dedicado? Salieri fala da música de Mozart: “Retire uma nota e a música será menor, retire uma frase e toda estrutura cairá!”.
Guardando as dimensões e características de cada área, não seria exagero dizer o mesmo da música de Paul McCartney. Quando George Martin chamou atenção para a qualidade daquelas canções, não era sem motivo, havia uma complexidade não encontrada na simplicidade dos primeiros hits como Can’t Buy Me Love ou Please Please Me. Uma particularidade de sua gravação diz muito do autor. Depois de algumas sessões, Paul não estava satisfeito com os sopros, em especial com o chifre inglês (english horn), instrumento de sopro de madeira da família do oboé, de alta tessitura. A dias de retornar ao estúdio, assistiu na BBC uma execução do Segundo Concerto de Brandenburgo, de J. S. Bach. Serviu como referência para Paul dar a George Martin, de como queria as frases no solo com feitio barroco. O instrumento mais agudo, chamado piccolo, arremata as frases do solo, divididas com os vocais. Está nas publicações que, concluída a gravação, George Martin comentou: “O resultado foi único, algo que nunca tinha sido feito antes no rock”.
A música presente nas canções de Paul é, entre os compositores ingleses – aqueles que bebem na herança das baladas cantadas ou recitadas, originadas das antigas odes de caráter lírico, vindas da alta poesia inglesa e compostas em estrofes simétricas – talvez a que mais se destaca pela beleza de suas linhas melódicas. Canções como The Long and Winding Road, Yesterday, Mull Of Kintyre, Here, There and Everywhere, Michelle, No More Lonely Nights, Wanderlust… A lista é longa e maravilhosa. Surprise! Você pode ouvir agorinha duas dessas canções, cantadas com novos arranjos de sopros de George Martin, no Abbey Road. E, de quebra, ver o grande George Martin pilotando a mesa. Dê atenção às linhas dos metais e veja o romantismo tisnado de heroísmo dessas baladas. Ringo Star na bateria. Aqui:


Conversando com meu amigo, o compositor e arranjador Cássio Gava pude analisar melhor sutilezas não só da gravação como também da harmonia de Penny Lane. Não serei muito técnico, apenas para apontar. Trata-se de uma canção com dupla estrutura tonal, em Si e em Lá maior. Ou seja, Paul opera com uma modulação no meio da canção. O genial é que o resultado não causa estranheza, soa natural. E é exatamente nesta modulação que acontece uma enunciação na melodia, como se ele dissesse na melodia que algo vai mudar. É quando ele diz “Very strange”. Então muda o tom. A música diz o que a letra comenta. Descrevendo as coisas que ambos viam e viviam, a canção pinta um dia em que ao mesmo tempo há verão e chuva pesada. “Muito estranho”…
O piano conduz a música e é tocado por Paul. Com Martin, ele executou três diferentes faixas e as somou numa pista. Ainda sobre a harmonia, capaz de fugir das soluções que seriam mais esperadas, ele pode sair de um acorde maior e completar a enunciação da melodia permanecendo no mesmo acorde, porém em menor. A canção é breve, num 4\4 alegre, com estrofes de oito compassos, incluindo o refrão, cantado quatro vezes, com pequenos detalhes de letra diferentes entre si. São nove grupos de oito compassos e mais um grupo de oito compassos no solo dos sopros. O refrão enaltece a lembrança, e sua entoação melódica é perfeita para sugerir a saudade: “Penny Lane is in my ears and in my eyes”… O som é o que a letra diz. Estão lá o barbeiro orgulhoso de seus fregueses, o bombeiro que mantém limpinho seu carro, o banqueiro que não usa capa no toró e é zombado pelos moleques, (muito estranho). O bombeiro volta com sua ampulheta e no seu bolso carrega uma foto da rainha, a enfermeira que se comporta como numa peça está de verdade numa peça! O humor da letra namora imagens inusitadas, eivadas de coisas surreais ou esquisitas. Para mim, meus irmãos e meus pais Penny Lane ainda está nos nossos olhos e ouvidos e corações. Lá sob o azul de um céu suburbano. Eu me sento e num segundo estou de volta. Para mim, o mais bonito é quando chega o solo dos sopros, em especial os solos dos trompetes. São oito compassos dialogando com os vocais, usando a mesma harmonia do canto. No fim do solo a melodia da estrofe se repete, o que dá mais expressão aos versos: Penny Lane is in my ears and in my eyes…
O filme promocional desta canção, talvez um dos primeiros vídeos clips da indústria fonográfica foi rodado junto com o vídeo de Strawberry… Em áreas de Londres, mas não exatamente em Penny Lane, para evitar viagens. Ambos dirigidos pelo sueco Peter Goldmann, foram selecionados pelo MoMA para figurar entre os filmes promocionais que mais influenciaram o mundo das artes na década de 1960.
É interessante notar como a redundância, a repetição é um recurso da maior importância para uma canção. É na repetição das linhas melódicas das canções que elas ganham corpo. Não é necessário que seja assim. Tom Jobim, por exemplo, tem canções em que esse fato não acontece, quando ele usa uma longa frase no meio da música e com ela a canção quase se basta. Mas também tem muitas com refrão; estrofe que se repete como que para dar empuxo e ritmo ao canto.
Aparentemente simples, a composição pode dar muito trabalho ou pode surgir quase que intuitivamente, em pouco tempo. Porém, vemos que há peças especiais, com sutilezas brilhantes e uma arquitetura interna incrivelmente sedutora. Canções assim raramente são criadas em pouco tempo.
Em uma época igualmente fértil para a música popular no Brasil, aquele compacto chegou num ano especial, 1967, quando acontecia a Tropicália e a Jovem Guarda já tinha seus programas nas TVs paulistanas. No disco, as únicas informações eram o nome e a autoria e, mais importante, a foto da banda com os caras estampados em roupas bacanas, outro estímulo que despertava nossa fantasia. Sabíamos que vinha de um país distante e isto era o suficiente para dar frenesi ao “produto”. Por isso, curtir Beatles também tinha certa carga de moda, era uma onda legal, avançada. E além da música, não abriríamos mão disso por nada mesmo. A primeira vez que ouvi Beatles foi a canção I wanna hold your hand. Lembro que estava sentado na coxia, era mais ou menos 16h, por aí. Logo depois, imagino que eu e o Caio já conversávamos sobre aquilo.
Esse fato, corriqueiro, me traz de volta ao começo desta glosa. Os predicados de uma canção, vistos em suas camadas, e como ela permanece com a gente de forma perene. Como dito acima, essa cápsula de sons e sentidos tem o poder de criar ou alterar nosso estado de espírito, produzindo um leque surpreendente de reações em nosso corpo e cérebro. Claro, não é toda canção que tem essa força. Mas a experiência de ouvir Beatles, para nossa geração era algo inusitado em nossos dias, por mais previsível que fosse colocar um disco pra tocar. São muitas as canções, ainda hoje. Penny Lane foi apenas uma lá debaixo daquele céu azul e suburbano de Fortaleza.


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Edição preparada por Floriano Martins. Agradecimentos a todos os colaboradores. Foto inicial dos Beatles assinada por Bob Whitaker (Reino Unido, 1939-2011). Graco Braz Peixoto. Compositor, jornalista, tradutor. Com Caio Silvio Braz é autor de “Noturno” (Coração Alado). Página ilustrada com obras de Peter Blake (Reino Unido, 1932), artista convidado da presente edição.


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Agulha Revista de Cultura
Número 120 | Outubro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES




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