Penso na extensão de Penny Lane, seus afluxos,
desvios, confluências, desvãos, e nos peregrinos, devotos e turistas que por ali
transitam. Impossível não fazer um pequenino elogio da língua inglesa, que até hoje
eu não domino, de todas as nações que adotaram esse idioma, e claro, de todos os
imperialismos, dos socialismos, comunismos, nacionalismos gigantes e tacanhos que
condenaram as canções em inglês, quando cantar uma delas se acompanhando ao violão
causava esgares nos militantes do partidão. Nesse aspecto um momento privilegiado
é aquele em que Chico Buarque De Hollanda inspirado pelo modernismo brasileiro profere:
“Também apreciei o último L.P dos Beatles, mas aprecio ainda mais Mário De Andrade:
‘Toda arte que se pretende cosmopolita corre o risco de incorrer em outra nacionalidade,
que não sua’-“. (declaração recolhida por Regina Zappa no livro Para Seguir Minha Jornada). Aproveito para
enaltecer a jornalista e escritora portuguesa Inês Pedrosa, que na extinta revista
“Bravo!” (dezembro de 2011) defendeu a tese de uma suposta inferioridade das letras
dos Beatles comparadas, entre outras da MPB, à “Língua”, de Caetano Veloso, que
para Inês é não lembro se a melhor canção da língua portuguesa ou a maior já escrita
sobre a Terra. Louvo enfim todos os equívocos e acertos caóticos, conflitivos, que
tentando dar contorno ao sonho e à realidade exaltam os mitos, os arquétipos. E
em Penny Lane não serei eu a contribuir para a demarcação de fronteiras.
Como nós, Penny Lane é feita da matéria dos
nossos sonhos, e esta avança e se propaga pelo misterioso salão em que outrora um
barbeiro mostrava fotografias de todas as cabeças que ele teve o prazer de conhecer,
ou por entornos das imagens surrealistas da canção: a rotatória, o abrigo com uma
enfermeira vendendo papoulas, o bombeiro portando no bolso um retrato da rainha,
tudo sob uma chuva despencando daqueles céus azuis de subúrbio. “Parecem fotografias
saídas de um álbum da infância, não necessariamente tiradas no mesmo dia”, disse
Steve Turner. Hoje a evolução de imagens prossegue pelos turistas que nesta era
indelicada postam na internet coisas que a minha razão sonhadora aconselha evitar.
Penny Lanes is in my ears and in my eyes. Em dimensão não de toda visível é razoável supor que os Beatles
colheram sonoros arcanos de um tarô não desenhado. Eleanor Rigby, The Fool on the hill, Help, The Long and Winding Road, Hello
Goodbye, I’m the walrus, Yesterday, Girl, Helter Skelter, Dear Prudence, Blackbird…
são lâminas assobiando no baralho. Curiosa
a relação das imagens com a música. E justamente num tempo de grande instabilidade
de imagens em desordem arquetípica, e de possíveis reciclagens mitológicas, Chico
Buarque De Hollanda sugere o fim da canção. Penso que em seres constituídos da matéria
dos sonhos, esta haverá sempre de se revelar em música.
Penny Lane, clara rua da nossa infância, é
anterior ao experimentalismo de Sgt. Pepper’s
Lonely Hearts Club Band, e ao de boa parte do rock e da música popular do planeta.
Nela me situando recordo a expressão do poeta Augusto de Campos ao comentar Sgt. Pepper’s: “complexos sonoros de entusiasmar
Varèse” (Edgar Varèse, compositor de vanguarda francês). Acho o comentário um tanto
exagerado, mas aceitando a ideia me atrevo a brincar um pouco com ela. Esse tipo
de aproximação já havia sido feito, inclusive por Paul: “Elvis era o ídolo, não
havia o problema de procurar por ele. Mas os ídolos de agora, as pessoas que eu
posso apreciar agora, estão todas muito ocultas em pequenos compartimentos secretos,
tocando para elas mesmas… Mas você tem que procurar mais, porque Stockhausen não
toca na rádio de Londres todo dia.” Assim nos fala McCartney, longe da pompa e da
gravidade tão usuais ao tema. Essa declaração está nas páginas 186 e 187 do livro
O Balanço da Bossa, de Augusto de Campos.
No entanto… Pelos trovões, pelos grilos, pelo canto falado ao telefone de Uncle Albert, por Monkberry Moon Delight em espasmos e convulsões de um corpo nada sutil
de Paul se exprimindo em registros de voz quase inconcebíveis! Tanta natureza de
sons. Impressiona-me Augusto de Campos e toda a crítica sensível aos experimentos
de Pepper’s terem prestado tão pouca atenção
a Ram, obra que prima também pela experiência.
Ao longo da surpreendente musicalidade do álbum um experiente Paul brinca com ruídos
caros à “música de invenção”. Para um artista e para uma criança brincadeira é coisa
séria, e a fruição tem lá sempre os seus rigores.
Gilberto Gil ficou profundamente emocionado
ao descobrir “Sargento Pimenta e a Banda Solidão”. Fascinado pelas bandas do interior
da Bahia, ao ouvir o disco pela primeira vez pensou em êxtase que aquilo parecia
ter saído por encomenda, como se fosse um presente para ele. Subsiste algo de lúdico
em Arrigo Barnabé, que em vídeo recentemente postado no Youtube afirma: “Tinha os
Beatles, né? O que eles faziam junto com o produtor era muito louco”. Muitas bandas
passam em Penny Lane. E como há bandas neste mundo! A Banda de Pífanos de Caruaru, A Banda do Zé Pretinho, A Outra Banda da
Terra, a Incredible String Band, aquela Banda que num coreto de Serra Negra, interior
de São Paulo, tocava “qual cisne branco que em noite de lua; a Canção dos Marinheiros”,
Bach e sua Banda de Brandemburgo surpreendentemente conduzidos a Penny Lane
por Paul e George Martin. E nas proximidades de um porto, não muito distante dali,
a bordo de um submarino amarelo, ainda ouço a Banda de Buarque, talvez a mesma que
anteriormente passara cantando coisas de amor.
Influência Beatle não é simples de ser identificada.
Lennon é tão pessoal que quando influencia alguém a obra acaba levando jeito de
decalque, como algumas canções de Walter Franco. A impessoalidade solar de Paul
exerce seus fascínios como que em meio a cantos de domínio público, e praticamente
indefinível se faz ouvir em alguns melodistas. Os Beatles vieram do rock. O ímpeto,
a força do rock, são determinantes também nas baladas. Certas baladas não possuem
essa característica que muda tudo, obviedade que precisa ser dita. Creio que Cássia
Eller e os mineiros do Clube da Esquina concordariam comigo neste ponto. Mais impressionante
que o canibalismo explícito de certas passagens do disco “Tropicália” é a vizinhança
inconfessável, sutil, quase imperceptível mesmo de Chico Buarque De Hollanda. Ouvindo
Sonhos sonhos são, de Chico, e #9 Dream,
de John, duas obras tão diferentes, chego perto de esquecer as possíveis carências
dessas composições que vicejam exuberantes, orgânicas, no resultado final das gravações,
em cumplicidades não totalmente reveladas. Entre as sinestésicas mudanças de nível,
no movimento do sonho às vezes comum a ambas, imagino que se Chico Buarque e Luiz
Cláudio Ramos não tiverem sonhado com Lennon, bem faço eu ao sonhar isso. E poucas
dúvidas me restam de que Imagine, do Chico
e do Tom, seja um discreto tributo a John. Paul retribuiu pelo amigo. As quatro
notas com que canta as palavras Back in Brazil
(também título de uma canção de seu último álbum Egypt Station, por onde uma menina brasileira passeia), já abrem a música
citando nossa Garota de Ipanema, de Tom
e Vinícius. Influência real é um mistério.
No livro Verdade Tropical, Caetano Veloso argumenta que artistas como ele, muito
ligados à adolescência, são ligeiramente superficiais, enquanto os apegados à infância
produzem obras profundas. André Breton diz que as crianças sabem das coisas. Manoel
de Barros parece concordar com isso. Murilo Mendes nos conta em poema de um “menino
triste que nunca leu Julio Verne”. E Carlos Drummond De Andrade traduziu para a
revista “Realidade”, ano de 1968, seis letras do “Álbum Branco”, que ainda hei de
postar em tempo e espaço oportuno.
In Penny Lane there is a barber showing photographs
of every head he’s had the pleasure to Know,
And all the people that come and go
stop to say “Hello”.
On the corner is a banker with a motorcar,
the little children laugh at him behind his back,
And the banker never wears a mac
In the pouring rain – very strange.
Penny Lane is in my ears and in my eyes,
there beneath the blue suburban skies
I sit, and meanwhile back
In Penny Lane there is a fireman with an hourglass
and in his pocket is a portrait of the Queen.
He likes to Keep his fire engine clean,
It’s a clean machine.
Penny Lane is in my ears and in my eyes,
a four of fish and finger pies
in summer meanwhile back
Behind the shelter in the middle of the round-a-bout
The pretty nurse is selling poppies from a tray.
And though she feels as if she’s in a play
she is anyway.
I’m Penny Lane, the barber shaves another
customer, we see the banker sotting waiting for a trim
And then the fireman rushes in
From the pouring rain – very strange.
Penny Lane is in my ears and in my eyes,
there beneath the blue suburban skies
I sit, and meanwhile back
Penny Lane is in my ears And in my eyes,
there beneath the blue suburban skies…
Penny Lane!
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Edição preparada
por Floriano Martins. Agradecimentos a todos os colaboradores. Texto escrito especialmente para esta
edição. Foto inicial dos Beatles assinada por Bob Whitaker (Reino Unido, 1939-2011).
Página ilustrada com obras de Peter Blake (Reino Unido, 1932), artista convidado
da presente edição.
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Agulha Revista de Cultura
Número 120 | Outubro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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