O que se segue é uma colagem de passagens
da série de entrevistas dadas por Paul McCartney a Barry Miles, que resultaram
na edição do livro Many years from now
(1997). A edição brasileira (DBA, 2000), que mantém o título original, traz a
tradução assinada por Mário Vilela. Paul faz referências a algumas coisas que
cabem registro: a utilização dos vocais de Mike Sammes Singers, na gravação de
I am the walrus, o que posteriormente também viria a se dar em Good night e Let it be. Mike Sammes (1928-2001) era bem conhecido na época como
arranjador de grupos vocais para gravações de rádio e jingles. Spotlight era um jornal inglês dedicado
ao teatro. A grande curiosidade neste amplo depoimento de Paul é que não se
menciona o nome de Bernard Knowles (1900-1975), diretor inglês, que, segundo
registro oficial, teria dividido com o quarteto a direção de Magical Mystery Tour. No entanto, não
apenas seu nome não é citado, como Paul chega a declarar: Investi muito trabalho no filme, mas os créditos diziam que tinha sido
dirigido pelos Beatles. A realidade é que, gostemos ou não, fui eu quem o
dirigiu, de modo que tive de pagar o pato quando ele recebeu críticas ruins.
Mas, pelo mesmo raciocínio, posso agora assumir o crédito pelo filminho legal
que ainda acho que ele é. Vamos à colagem de suas recordações:
Eu costumava fazer muito filme amador, e a
partir desse meu interesse foi só um pequeno passo até que eu dissesse: Bom, se contratássemos um câmera e lhe
disséssemos onde fazer as tomadas, já estaríamos começando a fazer filme, não é
verdade? Se a gente quiser que o ônibus pareça rodar ao contrário quando passa
pela ponte de Westminster, o câmera vai conseguir fazer. Eu posso lhe passar a
ideia. Assim, foi surgindo a noção de que iríamos alugar um ônibus, pegar
um bando de gente e começar a criar alguma coisa sobre um magical mystery tour.
Lá no norte aquilo costumava se chamar
apenas mystery tour. Quando criança,
a gente entrava no ônibus e não sabia para onde estava indo, mas quase sempre
era para a praia em Blackpool. Quando se saía de Liverpool, era inevitável que
fosse para Blackpool, e todo mundo dizia: Ah
então era mesmo Blackpool! Todo mundo passava o tempo imaginando para onde
seria, e isso era parte da diversão. Nós nos lembrávamos daquilo. Tantas coisas
dos Beatles eram pequenas alterações que fazíamos nesse tipo de lembranças! Em Penny Lane, a enfermeira, o barbeiro e o
bombeiro eram apenas pessoas que víamos quando passávamos de ônibus; mas, dessa
vez, elas estariam conosco. Assim, o que sempre fazíamos era simplesmente
realçar a realidade para criar um pouquinho de surrealismo. Era nisso que
estávamos interessados.
*****
John
e eu compusemos Magical Mystery Tour
em parceria, bem em nossa fase de parque
de diversões. Uma de nossas grandes fontes inspiradoras sempre foi o
apregoador: Roll up! Roll up! Era a
promessa de alguma coisa: o anúncio de jornal que diz que está garantido contra quebras, o açougueiro
de alta classe, o satisfaction guaranteed de Sgt Pepper. Frases como Come inside ou Step inside, Love… Você verá que elas permeiam muitas canções
minhas. Olhando todas as coisas de Lennon e McCartney, a gente vê que é uma
coisa que fazemos muito.
Quando garoto, eu costumava ir muito ao
parque de diversões. Gostava dos carrosséis e carrinhos de bate-bate, mas o que
me interessava mesmo eram os freak shows:
a mulher barbada e a ovelha de cinco pernas, que na verdade era uma ovelha de
quatro pernas com outra perna costurada na pelagem do lado. Quando pus a mão
naquilo, o cara falou: Ei, não mexa aí!
Essas eram as coisas ótimas da juventude. Assim, grande parte do que a gente
compunha vem desse período – nossas lembranças douradas. Se me dá um branco,
sempre posso pensar num verão fantástico, pensar no tempo em que eu ia à praia.
Areia, sol, ondas, riso: já é bom material para uma canção.
John e eu nos lembrávamos de mystery tours e sempre achamos a ideia
fascinante: entrar num ônibus e não saber para onde se vai. Tudo muito
romântico e meio surreal! Todas aquelas velhinhas de cabelo azul que saíam para
lugares misteriosos. Em geral, havia uma caixa de cerveja no porta-malas do
ônibus, e a gente cantava um monte de músicas. Era uma viagem de domingueira.
Assim, pegamos essa ideia e a usamos como base para a canção e o filme.
Já que a época era psicodélica, aqui
precisou se tornar uma viagem mágica,
um pouquinho mais surreal que as verdadeiras. Mas ela utiliza o apregoador de
circo e parque de diversões, Roll up!
Roll up!, que também é uma referência a enrolar [to roll up] o baseado. Estávamos sempre inserindo essas coisinhas
que, sabíamos, nossos amigos iam entender alusões veladas a drogas e viagens. The Magical Mystery Tour is waiting to take you away, de modo que
há um tipo de droga. It’s dying to take you away, uma referência ao Livro tibetano dos mortos. Inserimos
todas essas palavras, e, se você fosse uma pessoa comum, era só um ônibus
bacana que o levava embora, mas, se você estivesse viajando, era morrer, era a verdadeira viagem, a verdadeira viagem
mágica de surpresas. Enfiamos todas essas coisas para nossos amigos que estavam
por dentro.
Magical
mystery tour era o
equivalente de uma viagem com drogas, e fizemos o filme baseado nisso. Vai ser ótimo, um mystery tour bárbaro. Ninguém vai saber exatamente para
onde vai. Cara, a gente pode levá-los aonde quiser. Era esse o feeling da época. Eles podem ir às nuvens. O ônibus pode até decolar! Aliás, no
primeiro roteiro, que na verdade era mais um punhado de conversas que um
roteiro, o ônibus realmente decolava e voava para as nuvens até os mágicos, que
éramos nós vestidos de vermelho e fazendo besteiras num pequeno laboratório.
*****
[I am the walrus] John trabalhou com
George Martin na orquestração e em coisas empolgantes com os Mike Sammes
Singers, algo que estes nunca fizeram nem antes nem depois, como, por exemplo,
cantar: Everybody’s got one, everybody’s
got one… Eles adoraram. Foi uma sessão que a gente não esquece. Na maior
parte do tempo, as pessoas lhes pediam que cantassem Sing something simple e todas as velhas músicas, mas John conseguiu
que fizessem todo tipo de oscilação e ruído. Foi uma sessão fascinante. A
música era cria de John, uma coisa ótima mesmo.
*****
Flying era uma faixa instrumental de que
precisávamos para Magical mystery tour.
Certa noite, no estúdio, sugeri aos caras que inventássemos alguma coisa. Eu
disse: Podemos fazê-la bem simples, um
blues com doze compassos. Só precisamos de um teminha e um fundinho. Compus
a melodia. A única coisa que define Flying
como canção é basicamente a melodia; de resto, é apenas um fundo com doze
compassos. Foi tocada num órgão Mellotron, na chave de trombone. Está atribuída
a todos quatro, que é como se dá autoria a uma faixa que não é canção.
*****
Mandamos
Neil e Mal, nossos roadies, gente de confiança, alugarem um ônibus com
motorista e pintarem nosso logotipo na lateral: Magical Mystery Tour. Alugamos um ônibus cheio de passageiros, e
alguns deles eram atores. Peguei um exemplar do Spotlight e selecionei todos os atores ali. Há uma mulher gorda, eu dizia.
Chama-se Jessie Robbins. Procure o empresário dela. Contrate-a… Há um cara,
Derek Royle, que parece poder fazer Jolly Jimmy Johnson, o guia… Derek
Royle era bom ator e tinha preparo atlético; podia dar uns saltos mortais e
coisas assim, de modo que eu sabia que haveria algo ali – podíamos fazê-lo dar
saltos mortais. Depois havia a rodomoça
bonitinha, Mandy Weet, que era meio peituda. Tenho que confessar: ao escalarmos
essas garotas peitudas, sempre havia certo motivo oculto. Era simplesmente o
gosto de dizer: Por favor, você poderia
se levantar? Poderia dar uma voltinha? Era uma distribuição de papéis pura
e simplesmente sacana… Os atores vieram todos do Spotlight.
*****
Nós
literalmente fomos inventando enquanto seguíamos adiante. Eu achava que isso
seria uma coisa muito arrojada e muito desafiadora. Achava que seria o melhor
para nós, porque havíamos tido dois roteiros e não era tão fácil achar o
roteirista perfeito, alguém que aparecesse com uma coisa como A hard day’s night. Assim, seguindo o
espírito da época, pensei: Bom,
poderíamos simplesmente ir aos lugares, arrumar as pessoas e filmá-las – Faça
isso, Corra para lá – e ir juntando algum tipo de história enquanto seguimos
adiante. O tema do mystery tour é
exatamente isso – você não sabe mesmo para onde vai. Pensamos em levar aquilo
ao extremo, e de fato não sabíamos que filme estávamos fazendo. Isso era parte
da empolgação.
*****
Precisávamos
ter um início, de modo que filmei tendo isso em vista. Sabia que precisaríamos
que Ringo andasse pela rua com a mãe e a mulher gorda e entrasse no ônibus, e
isso já seria um começo. Era uma abertura. Poderíamos partir tão logo
entrássemos no ônibus, e aí poderia acontecer todo tipo de coisa. Também
sabíamos que precisaríamos de alguma coisa para encerrar, e por isso Your mother should know, sendo o grande
número cênico, parecia um jeito legal de terminar. Olhando em retrospecto, fico
muito orgulhoso daquilo.
Quem fez o filme foi principalmente John
e eu. Éramos as forças principais – suponho que da maneira de costume. Acho que
em geral me consideravam o diretor. Por exemplo: era eu quem me reunia toda
noite com Peter Theobald e o câmera. O
que vocês fizeram hoje? Lembraram-se de sincronizar tudo?, esse tipo de
coisa. Fiquei habituado à maneira de fazer aquilo. Gostava daquela coisa
organizacional, e foi tudo bastante descomplicado. Obviamente, não era como
dirigir uma superprodução.
*****
Estávamos
lá na Cornualha, de modo que eu disse: John,
que tal fazermos agora a coisa com Nat Jeckley? Depois que estiver pronto,
vamos poder nos livrar dele. Mas John não tinha nada preparado e não tinha
pensado em muita coisa para Nat fazer. Nat simplesmente caminhou de uma pessoa
para outra, e não lá muito engraçado. Acho que ele ficou muito ressentido com
aquilo. Nat nunca ia entender o que estávamos fazendo; éramos da geração das
drogas, e ele era da velha guarda do music hall e do vaudeville. Não gostou de
como apareceu no filme. Estava entre nossos críticos mais ferozes quando todos
vieram atrás da gente. E na verdade não posso culpá-lo, porque o filme não
chegou exatamente a reforçar a carreira dele.
*****
Hello goodbye era uma de minhas canções. Acho que nela
havia influências geminianas. A dualidade é um tema tão profundo no universo –
homem mulher, preto branco, ébano marfim, alto baixo, certo errado, em cima
embaixo, oi tchau – que foi muito fácil compor essa música. É simplesmente uma
canção sobre a dualidade em que eu defendo o lado mais positivo. You say stop and I say go… You say goodbye and I say
hello… Eu
estava defendendo o lado mais positivo da dualidade, e faço isso até hoje.
*****
John
e eu compusemos Baby you’re a rich man
em parceria, na Cavendish Avenue. Tuned
to a natural E é um verso que me recordo de termos escrito juntos. O natural E era um ligeiro trocadilho com
a palavra naturally. Naquela época,
os jornais falavam bastante do beautiful
people. Era assim que os chamavam então. Desse modo, ficamos imaginando: como é ser do beautiful people?
Gravamos a música numa sessão bem
empolgante no estúdio Olympic Electronic, no bairro de Barnes, onde Keith Grant
a mixou na mesma hora. Ele ficou de pé junto ao console enquanto fazia isso, e
foi uma mixagem muito empolgante, porque estávamos animadíssimos. Sempre gostei
daquela faixa.
*****
Se
precisássemos justificar o filme, acho que I
am the walrus já bastaria. Foi a única vez em que John a cantou diante das
câmeras, e só isso já a torna histórica. Também há uma
porção de boas cenas musicais: Blue jay
way, The fool on the hill, Your mother should know. Já é um bom começo, não?
*****
Edição
preparada por Floriano Martins. Agradecimentos a todos os colaboradores. Foto inicial dos Beatles assinada por Bob Whitaker
(Reino Unido, 1939-2011). Página ilustrada com obras de Peter Blake (Reino
Unido, 1932), artista convidado da presente edição.
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Agulha Revista de Cultura
Número 120 | Outubro de 2018
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão |
FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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