quarta-feira, 10 de outubro de 2018

PAUL MCCARTNEY | Magical Mystery Tour, o filme, o disco


O que se segue é uma colagem de passagens da série de entrevistas dadas por Paul McCartney a Barry Miles, que resultaram na edição do livro Many years from now (1997). A edição brasileira (DBA, 2000), que mantém o título original, traz a tradução assinada por Mário Vilela. Paul faz referências a algumas coisas que cabem registro: a utilização dos vocais de Mike Sammes Singers, na gravação de I am the walrus, o que posteriormente também viria a se dar em Good night e Let it be. Mike Sammes (1928-2001) era bem conhecido na época como arranjador de grupos vocais para gravações de rádio e jingles. Spotlight era um jornal inglês dedicado ao teatro. A grande curiosidade neste amplo depoimento de Paul é que não se menciona o nome de Bernard Knowles (1900-1975), diretor inglês, que, segundo registro oficial, teria dividido com o quarteto a direção de Magical Mystery Tour. No entanto, não apenas seu nome não é citado, como Paul chega a declarar: Investi muito trabalho no filme, mas os créditos diziam que tinha sido dirigido pelos Beatles. A realidade é que, gostemos ou não, fui eu quem o dirigiu, de modo que tive de pagar o pato quando ele recebeu críticas ruins. Mas, pelo mesmo raciocínio, posso agora assumir o crédito pelo filminho legal que ainda acho que ele é. Vamos à colagem de suas recordações:

Eu costumava fazer muito filme amador, e a partir desse meu interesse foi só um pequeno passo até que eu dissesse: Bom, se contratássemos um câmera e lhe disséssemos onde fazer as tomadas, já estaríamos começando a fazer filme, não é verdade? Se a gente quiser que o ônibus pareça rodar ao contrário quando passa pela ponte de Westminster, o câmera vai conseguir fazer. Eu posso lhe passar a ideia. Assim, foi surgindo a noção de que iríamos alugar um ônibus, pegar um bando de gente e começar a criar alguma coisa sobre um magical mystery tour.
Lá no norte aquilo costumava se chamar apenas mystery tour. Quando criança, a gente entrava no ônibus e não sabia para onde estava indo, mas quase sempre era para a praia em Blackpool. Quando se saía de Liverpool, era inevitável que fosse para Blackpool, e todo mundo dizia: Ah então era mesmo Blackpool! Todo mundo passava o tempo imaginando para onde seria, e isso era parte da diversão. Nós nos lembrávamos daquilo. Tantas coisas dos Beatles eram pequenas alterações que fazíamos nesse tipo de lembranças! Em Penny Lane, a enfermeira, o barbeiro e o bombeiro eram apenas pessoas que víamos quando passávamos de ônibus; mas, dessa vez, elas estariam conosco. Assim, o que sempre fazíamos era simplesmente realçar a realidade para criar um pouquinho de surrealismo. Era nisso que estávamos interessados.
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John e eu compusemos Magical Mystery Tour em parceria, bem em nossa fase de parque de diversões. Uma de nossas grandes fontes inspiradoras sempre foi o apregoador: Roll up! Roll up! Era a promessa de alguma coisa: o anúncio de jornal que diz que está garantido contra quebras, o açougueiro de alta classe, o satisfaction guaranteed de Sgt Pepper. Frases como Come inside ou Step inside, Love… Você verá que elas permeiam muitas canções minhas. Olhando todas as coisas de Lennon e McCartney, a gente vê que é uma coisa que fazemos muito.
Quando garoto, eu costumava ir muito ao parque de diversões. Gostava dos carrosséis e carrinhos de bate-bate, mas o que me interessava mesmo eram os freak shows: a mulher barbada e a ovelha de cinco pernas, que na verdade era uma ovelha de quatro pernas com outra perna costurada na pelagem do lado. Quando pus a mão naquilo, o cara falou: Ei, não mexa aí! Essas eram as coisas ótimas da juventude. Assim, grande parte do que a gente compunha vem desse período – nossas lembranças douradas. Se me dá um branco, sempre posso pensar num verão fantástico, pensar no tempo em que eu ia à praia. Areia, sol, ondas, riso: já é bom material para uma canção.
John e eu nos lembrávamos de mystery tours e sempre achamos a ideia fascinante: entrar num ônibus e não saber para onde se vai. Tudo muito romântico e meio surreal! Todas aquelas velhinhas de cabelo azul que saíam para lugares misteriosos. Em geral, havia uma caixa de cerveja no porta-malas do ônibus, e a gente cantava um monte de músicas. Era uma viagem de domingueira. Assim, pegamos essa ideia e a usamos como base para a canção e o filme.
Já que a época era psicodélica, aqui precisou se tornar uma viagem mágica, um pouquinho mais surreal que as verdadeiras. Mas ela utiliza o apregoador de circo e parque de diversões, Roll up! Roll up!, que também é uma referência a enrolar [to roll up] o baseado. Estávamos sempre inserindo essas coisinhas que, sabíamos, nossos amigos iam entender alusões veladas a drogas e viagens. The Magical Mystery Tour is waiting to take you away, de modo que há um tipo de droga. It’s dying to take you away, uma referência ao Livro tibetano dos mortos. Inserimos todas essas palavras, e, se você fosse uma pessoa comum, era só um ônibus bacana que o levava embora, mas, se você estivesse viajando, era morrer, era a verdadeira viagem, a verdadeira viagem mágica de surpresas. Enfiamos todas essas coisas para nossos amigos que estavam por dentro.
Magical mystery tour era o equivalente de uma viagem com drogas, e fizemos o filme baseado nisso. Vai ser ótimo, um mystery tour bárbaro. Ninguém vai saber exatamente para onde vai. Cara, a gente pode levá-los aonde quiser. Era esse o feeling da época. Eles podem ir às nuvens. O ônibus pode até decolar! Aliás, no primeiro roteiro, que na verdade era mais um punhado de conversas que um roteiro, o ônibus realmente decolava e voava para as nuvens até os mágicos, que éramos nós vestidos de vermelho e fazendo besteiras num pequeno laboratório.

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[I am the walrus] John trabalhou com George Martin na orquestração e em coisas empolgantes com os Mike Sammes Singers, algo que estes nunca fizeram nem antes nem depois, como, por exemplo, cantar: Everybody’s got one, everybody’s got one… Eles adoraram. Foi uma sessão que a gente não esquece. Na maior parte do tempo, as pessoas lhes pediam que cantassem Sing something simple e todas as velhas músicas, mas John conseguiu que fizessem todo tipo de oscilação e ruído. Foi uma sessão fascinante. A música era cria de John, uma coisa ótima mesmo.

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Flying era uma faixa instrumental de que precisávamos para Magical mystery tour. Certa noite, no estúdio, sugeri aos caras que inventássemos alguma coisa. Eu disse: Podemos fazê-la bem simples, um blues com doze compassos. Só precisamos de um teminha e um fundinho. Compus a melodia. A única coisa que define Flying como canção é basicamente a melodia; de resto, é apenas um fundo com doze compassos. Foi tocada num órgão Mellotron, na chave de trombone. Está atribuída a todos quatro, que é como se dá autoria a uma faixa que não é canção.

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Mandamos Neil e Mal, nossos roadies, gente de confiança, alugarem um ônibus com motorista e pintarem nosso logotipo na lateral: Magical Mystery Tour. Alugamos um ônibus cheio de passageiros, e alguns deles eram atores. Peguei um exemplar do Spotlight e selecionei todos os atores ali. Há uma mulher gorda, eu dizia. Chama-se Jessie Robbins. Procure o empresário dela. Contrate-a… Há um cara, Derek Royle, que parece poder fazer Jolly Jimmy Johnson, o guia… Derek Royle era bom ator e tinha preparo atlético; podia dar uns saltos mortais e coisas assim, de modo que eu sabia que haveria algo ali – podíamos fazê-lo dar saltos mortais.  Depois havia a rodomoça bonitinha, Mandy Weet, que era meio peituda. Tenho que confessar: ao escalarmos essas garotas peitudas, sempre havia certo motivo oculto. Era simplesmente o gosto de dizer: Por favor, você poderia se levantar? Poderia dar uma voltinha? Era uma distribuição de papéis pura e simplesmente sacana… Os atores vieram todos do Spotlight.

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Nós literalmente fomos inventando enquanto seguíamos adiante. Eu achava que isso seria uma coisa muito arrojada e muito desafiadora. Achava que seria o melhor para nós, porque havíamos tido dois roteiros e não era tão fácil achar o roteirista perfeito, alguém que aparecesse com uma coisa como A hard day’s night. Assim, seguindo o espírito da época, pensei: Bom, poderíamos simplesmente ir aos lugares, arrumar as pessoas e filmá-las – Faça isso, Corra para lá – e ir juntando algum tipo de história enquanto seguimos adiante. O tema do mystery tour é exatamente isso – você não sabe mesmo para onde vai. Pensamos em levar aquilo ao extremo, e de fato não sabíamos que filme estávamos fazendo. Isso era parte da empolgação.

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Precisávamos ter um início, de modo que filmei tendo isso em vista. Sabia que precisaríamos que Ringo andasse pela rua com a mãe e a mulher gorda e entrasse no ônibus, e isso já seria um começo. Era uma abertura. Poderíamos partir tão logo entrássemos no ônibus, e aí poderia acontecer todo tipo de coisa. Também sabíamos que precisaríamos de alguma coisa para encerrar, e por isso Your mother should know, sendo o grande número cênico, parecia um jeito legal de terminar. Olhando em retrospecto, fico muito orgulhoso daquilo.
Quem fez o filme foi principalmente John e eu. Éramos as forças principais – suponho que da maneira de costume. Acho que em geral me consideravam o diretor. Por exemplo: era eu quem me reunia toda noite com Peter Theobald e o câmera. O que vocês fizeram hoje? Lembraram-se de sincronizar tudo?, esse tipo de coisa. Fiquei habituado à maneira de fazer aquilo. Gostava daquela coisa organizacional, e foi tudo bastante descomplicado. Obviamente, não era como dirigir uma superprodução.

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Estávamos lá na Cornualha, de modo que eu disse: John, que tal fazermos agora a coisa com Nat Jeckley? Depois que estiver pronto, vamos poder nos livrar dele. Mas John não tinha nada preparado e não tinha pensado em muita coisa para Nat fazer. Nat simplesmente caminhou de uma pessoa para outra, e não lá muito engraçado. Acho que ele ficou muito ressentido com aquilo. Nat nunca ia entender o que estávamos fazendo; éramos da geração das drogas, e ele era da velha guarda do music hall e do vaudeville. Não gostou de como apareceu no filme. Estava entre nossos críticos mais ferozes quando todos vieram atrás da gente. E na verdade não posso culpá-lo, porque o filme não chegou exatamente a reforçar a carreira dele.
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Hello goodbye era uma de minhas canções. Acho que nela havia influências geminianas. A dualidade é um tema tão profundo no universo – homem mulher, preto branco, ébano marfim, alto baixo, certo errado, em cima embaixo, oi tchau – que foi muito fácil compor essa música. É simplesmente uma canção sobre a dualidade em que eu defendo o lado mais positivo. You say stop and I say go… You say goodbye and I say hello… Eu estava defendendo o lado mais positivo da dualidade, e faço isso até hoje.

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John e eu compusemos Baby you’re a rich man em parceria, na Cavendish Avenue. Tuned to a natural E é um verso que me recordo de termos escrito juntos. O natural E era um ligeiro trocadilho com a palavra naturally. Naquela época, os jornais falavam bastante do beautiful people. Era assim que os chamavam então. Desse modo, ficamos imaginando: como é ser do beautiful people?
Gravamos a música numa sessão bem empolgante no estúdio Olympic Electronic, no bairro de Barnes, onde Keith Grant a mixou na mesma hora. Ele ficou de pé junto ao console enquanto fazia isso, e foi uma mixagem muito empolgante, porque estávamos animadíssimos. Sempre gostei daquela faixa.

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Se precisássemos justificar o filme, acho que I am the walrus já bastaria. Foi a única vez em que John a cantou diante das câmeras, e só isso já a torna histórica. Também há uma porção de boas cenas musicais: Blue jay way, The fool on the hill, Your mother should know. Já é um bom começo, não?


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Edição preparada por Floriano Martins. Agradecimentos a todos os colaboradores. Foto inicial dos Beatles assinada por Bob Whitaker (Reino Unido, 1939-2011). Página ilustrada com obras de Peter Blake (Reino Unido, 1932), artista convidado da presente edição.


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Agulha Revista de Cultura
Número 120 | Outubro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES





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