A
Rua Aristides Caire, no Méier, com sua calma, seus vagos transeuntes e seus chalés
de grade de ferro, lembra uma rua de província. Perto há o clássico jardim de subúrbio,
onde de manhã e à tarde as crianças brincam, e à noite os namorados se encontram
na penumbra acolhedora, e também ele, portanto, semelhante às indefectíveis e às
vezes tão líricas pracinhas das nossas cidades do interior, onde, depois do jantar,
as moças casadoiras passeiam farejando o possível marido, os velhos coronéis fazem
o “quilo” e qualquer cara nova que surja é logo olhada com curiosidade. [1]
Pois é na Rua Aristides Caire que mora Agripino Grieco,
provinciano que, vindo residir no Rio, nunca pode separar-se de todo dos subúrbios,
cuja vida pacata talvez lhe recorde a Paraíba do Sul de sua meninice. A casa, minha
velha conhecida, é um sobradinho com gradil à frente, Nos fundos, num pavilhão que
Grieco mandou construir depois de sua primeira viagem ao Norte (quando descobriu
que fazer conferências é muito mais rendoso que escrever para os jornais ou publicar
livros), fica a biblioteca, maravilhosa coleção de vários milhares de volumes.
Na sala da frente, onde em outros tempos reinava uma
deliciosa balbúrdia, livros e revistas amontoados por todos os lados e a um canto
a máquina de escrever, encontro uma ordem que no primeiro instante me surpreende,
mas que não tardo a compreender: é que Grieco tem permanecido fora, em longas excursões
pelo Estado de São Paulo, e no momento não está escrevendo…
Chegando lá pouco depois das 4 da tarde, encontro o escritor
terminando o jantar, e, como estranhe o horário, Grieco logo me explica:
Conservo,
de certo modo, os hábitos do tempo em que era funcionário da Central. Levanto-me
geralmente às cinco e meia e costumo almoçar às 10 e jantar às 4. Exatamente como
na época em que trabalhava na Estrada, quando devia entrar na repartição às 11,
já almoçado, e chegava de volta a casa, famélico, às 4 da tarde. O hábito ficou-me.
Hábito, aliás, que diz bem com o meu passado de filho de campônios e tem ainda o
mérito de encompridar as minhas noites, aumentando as horas em que geralmente leio.
Expansivo, afável, convidou-me a sentar, e inteirado
de que meu objetivo era obter uma entrevista sua para esta série, declarou-se disposto
a enfrentar qualquer questionário. Perguntei-lhe, de início, por que motivo mora
no Méier e o que foi que o levou a fixar-se ali.
Isto
evidentemente não resultou de uma escolha premeditada. Vim morar aqui em virtude
de uma série de circunstâncias. Pobre, vivendo exclusivamente do trabalho e com
família numerosa, tive de procurar um subúrbio para residir. Morei primeiro em Terra
Nova. Fazendo verdadeiros malabarismos para juntar algum dinheiro, consegui comprar
ali uma casinha, que depois vendi para construir esta. Para cá me mudei, e daqui
não pretendo mais sair. Sei que não falta quem estranhe o fato de eu morar em subúrbio.
Mas a verdade é que não me parece obrigatório ficar plantado à beira-mar, nem mesmo
na Tijuca, como o Ataulfo de Paiva. Não alimento, porém, qualquer rancor aos habitantes
dos bairros chiques da Zona Sul. E isto por uma razão muito simples: é que não vejo
neles nada de superior. Meu amigo Lima Barreto, sim, é que, morando também em subúrbio,
olhava de soslaio para Botafogo e outros bairros supostamente aristocratas e tinha
ódio aos seus moradores. Tudo, porém, no fundo, fruto de recalques, pois é sabido
que o romancista, quando bebia, dizia-se um grão-duque e portanto não é impossível
que inconscientemente se sentisse atraído por esses bairros, talvez os únicos, no
seu entender, dignos de um indivíduo de sua categoria mental. Prova disso tivemos,
aliás, quando morreu, pois entre suas últimas vontades estava a de ser enterrado,
não num modesto cemitério de arrabalde, mas no São João Batista, juntamente com
os burgueses de Botafogo que ele tanto satirizava. E o enterro do Lima, como se
sabe, atravessou a cidade, indo de Todos os Santos, onde morava, até Real Grandeza.
Para mim, não, tudo é a mesma coisa, tudo é o Rio, pois afinal negros e cortiços
há aqui em todos os bairros. Já agora não pretendo sair do Méier, onde estou habituado,
sou mais ou menos conhecido, tenho relações…
Mas consta que não costumava fazer visitas…
Para
não ter de recebê-las. De fato, minhas melhores relações ainda são os livros, com
os quais me entretenho horas a fio sem aborrecer-me.
Gostaria de voltar para sua cidade natal?
Sim,
às vezes penso em retornar a Paraíba do Sul e ali, na paisagem da minha meninice,
passar os anos que me restam, numa vida meio bucólica, lendo os poetas prediletos
e redigindo minhas memórias. Mas logo desisto desse projeto, não só porque a família
acostumada aqui, protesta imediatamente, mas também porque, indo a Paraíba do Sul,
lá não encontro mais ninguém do meu tempo, parecendo-me a cidade, de certo ponto
de vista, inteiramente outra, sem os parentes e amigos que lhe davam a meus olhos
aquele encanto da meninice. Várias vezes tenho ido lá para ficar dois ou três meses.
Mas não é raro voltar no primeiro trem…
Talvez porque sinta saudades do Rio…
É
provável. Esta é que é, de fato, a minha cidade. E aqui amo de preferência o que
ainda subsiste do Rio do meu tempo, essas ruas estreitas, esses sobradinhos com
fachadas de azulejos e sacadas de ferro fundido, que me recordam os anos de mocidade
e boêmia.
Onde morava então?
Morei
em mais de trinta ou quarenta casas. No Morro do Castelo, na Rua de São Pedro, na
dos Andradas em São Cristóvão, no Engenho Novo… Solteiro, e residindo geralmente
em companhia de amigos, pois não podia pagar sozinho o aluguel de um quarto, entregava-me
a essa espécie de ciganagem um pouco por dificuldades reais de vida e um pouco por
boêmia, de acordo com o espírito da época, tão influenciado pela ópera de Puccini
e pelas Cenas da Vida Boêmia, de Murger. Recordo-me que morei então algum tempo
com um irmão do romancista Lima Barreto, de nome Carlindo, que, por ocasião da campanha
civilista, ia tanto às manifestações pró-Hermes como às que se realizavam em homenagem
a Rui. E desculpava-se dizendo que chope e sanduíche não tinham cor política…
Indago-lhe, então, como e por que se fez escritor, e
a respeito eis o que me diz:
Por
uma fatalidade. Desde garoto senti pela literatura uma atração imensa e até certo
ponto estranha e inexplicável, pois descendo, como você sabe, de pobres camponeses,
de gente afeita ao trato da terra e não dos impressos. Meu pai era quase iletrado
e só aprendeu a ler quando prestou, ainda na Itália, o serviço militar. [2] No entanto eu, embora vivendo entre
parentes humildes e destituídos de qualquer preocupação livresca, sempre namorei
as estantes do próximo, sempre me senti extraordinariamente atraído pelos livros.
Na minha cidade natal, devorei todos os romances que sua Biblioteca Pública possuía.
Corri então Ponson du Terrail e Camilo. Os volumes de Camilo eram, por sinal, primeiras
edições; e mais tarde acabaram sendo vendidos por muito bom preço! Confesso que
quando soube disso arrependi-me de não os ter roubado…
Nessa época, também já escrevia?
Já.
Aproveitando as páginas em branco dos livros de escrituração mercantil do negócio
de meu pai, redigia nelas romances façanhudos, rocambolescos. Ainda em Paraíba escrevi
um artigo sobre Santos Dumont, a propósito de um de seus voos em Paris. E para não
fugir à regra, perpetrava também meus sonetinhos, à boa maneira parnasiana…
Por que veio para o Rio?
Ora,
vim para o Rio, como todo provinciano que tem aspirações, atraído por essa coisa
brilhante e besta que é a glória… Meu pai era pobre e não podia manter-me aqui com
mesadas. Assim, resolvi prestar o primeiro concurso que apareceu. Era para telegrafista
da Central do Brasil. Com isso tive de familiarizar-me com o alfabeto Morse e cheguei
a ser um hábil transmissor de mensagens e decifrador dos segredos daquelas fitinhas
brancas cheira de pontas e traços. Mais tarde, ainda na Central, submeti-me a outro
concurso, este para escrevente, e passei a ganhar então quatro mil réis por dia
de trabalho (nos domingos e feriados nada recebia), o que naquele tempo não de ser
razoável ordenado, tanto assim que comecei a pensar em casar-me, o que fiz efetivamente
em 1913.
E a literatura ficou esquecida?
Qual
nada! Em 1910 já eu dera à publicidade meu primeiro livro - Ânforas -,um volume
de versos da juventude que, modéstia à parte, foi muito bem recebido pela crítica
e ganhou menção honrosa da Academia.
Menção honrosa?
É.
O prêmio em dinheiro foi dado ao Xavier Marques, por ser mais velho. Acho que data
daí minha ojeriza pelo escritor baiano…
E como se sentiu com a láurea acadêmica?
Muito
honrado.
E como eu ficasse um tanto surpreendido, apressou-se
em esclarecer:
É
que a Academia daquele tempo não era a de hoje, e você compreenderá o meu orgulho
quando souber como se constituía o júri que, me conferiu a menção. Nada menos que
José Veríssimo, Araripe Júnior e Raimundo Correa. Portanto dois críticos ilustres
e um dos maiores poetas que tem tido o Brasil.
Acha que sofreu influência decisiva de algum autor?
D’Annunzio
encantava-me com aquela pompa, aqueles cenários, aqueles amores desvairados do seus
livros. Há também nele muita coisa tipicamente regional, nas Novelas de Pescara
e em parte do Triunfo da Morte e eu, lendo-o, como que voltava à terra dos meus
ancestrais. O rutilante escritor fascinou-me, e não apenas a mim, mas a muitos outros
jovens do meu tempo. Isso explica o sabor dannunziano da minha coletânea de contos
de 1913 - Estátuas Mutiladas. Outra influência que sofri foi a de Bilac, então o
ídolo dos salões e das rodas boêmias do Rio e cujos decassílabos e alexandrinos
perfeitos eu canhestramente procurei imitar nos sonetos de Ânforas.
E influências pessoais, de professores e companheiros
mais velhos?
Devo
muito ao meu excelente amigo José Geraldo Bezerra de Meneses, que era uma grande
cultura e um espírito notável, mas professores só os tive primários, lá mesmo em
Paraíba do Sul, e péssimos. Ásperos, turbulentos, vingativos, estavam sempre prontos
a distribuir “bolos” e safanões aos alunos. Aqui no Rio realizei, em 1902, uma tentativa
de curso secundário no São Bento. Fui então apresentado a Frei João das Mercês Ramos,
que tinha sido amigo de Junqueira Freire e era pai de um futuro intendente municipal.
Mas o curso não se alongou. Eu tinha pressa de aprender e as aulas se arrastavam
em excesso… Depois, muito depois, mais por pilhéria que por qualquer outra razão,
e de modo evidentemente abusivo, pois nenhum preparatório eu possuía, prestei exame
vestibular e concluí o primeiro ano na Faculdade “Teixeira de Freitas”, uma escola
livre de Direito que havia aqui, dirigida por Joaquim Abílio Borges, filho de Abílio
César Borges, satirizado pelo grande Raul Pompéia em O Ateneu. O educandário mudou-se
mais tarde para o Estado do Rio de Janeiro e é hoje uma Academia de Niterói, por
onde se têm diplomado muitos patrícios ilustres…
Que escrevia por essa época?
Nada.
De 1913 a 1920 não escrevi coisíssima alguma. Atirei-me à leitura com verdadeira
fome canina. Devorei todos os grandes poetas clássicos e românticos, todos os romancistas
que viram apenas o guarda-roupa dos ricos ou abriram galerias subterrâneas nas almas,
todos os filósofos e humoristas. Pensava, até ali, que fosse poeta. Só então vim
a descobrir meu temperamento crítico. Tanto assim que hoje mal me reconheço nos
meus versos, que parecem ter sido escritos por outra pessoa. Realizando, bem ou
mal, minha vocação, entreguei-me à crítica e ao panfleto. Mas de quando em vez o
lirista que falou em mim protesta, reage, e componho páginas como as do São Francisco
de Assis e a Poesia Cristã, que é o meu livro predileto, e não é ensaio, mas poema…
Que foi que fez com que abandonasse a poesia e se dedicasse
ao jornalismo?
Depois
de publicados os versos de Ânforas e os
contos de Estátuas Mutiladas, pensava
sinceramente que não iria fazer mais letras, que já estava com minha carreira de
escritor encerrada. Mas um belo dia encontrei-me com o romancista Lima Barreto e
ele me levou a um italiano de muito talento, chamado Ferdinando Borla. espécie de
escritor internacional que, lançando o A.B.C.,
uma revista, mais tarde propriedade do Paulo Hasslocher, e Hoje, também revista,
criou no Rio um novo gênero de imprensa. Borla convidou-me para colaborar no Hoje
e ali estampei os artigos que a seguir reuni no livro Fetiches e fantoches, aparecido
em 1921.
E O Mundo Literário?
Bem,
isso já foi outra aventura em que me meti com o Teo-Filho, que havia regressado
da Europa e trazia, além dos cabelos escandalosamente oxigenados, uma lenda de triunfos
amorosos em França, e com o poeta Pereira da Silva. O Mundo literário teve grande
prestígio no seu tempo e acabou sendo revista muito lida. Teo-Filho era o autor
predileto de João Luís Alves, ministro da Justiça, que lhe ofereceu rendoso emprego
depois de lhe haver percorrido um romance. Ali publiquei alguns dos ensaios que
mais tarde enfeixei em Caçadores de símbolos. Fui o primeiro a elogiar sonoramente
Raul de Leôni e a salientar a importância de Lima Barreto nos quadros da nossa literatura.
Na época de O Mundo Literário redigi também um artigo sobre Tristão de Ataíde, o
que me valeu a aproximação com o ilustre pensador e futuro líder católico. Ora,
pouco depois, pretendendo Tristão (que exercia as funções de crítico literário de
O Jornal) tirar umas férias, indicou o meu nome a Renato de Toledo Lopes e este
me confiou a seção a que o autor de Afonso Arinos dera tanto brilho. Os estudos
de crítica saíam então na primeira página, com grande destaque, e confesso que foi
com receio que deixei na redação meu trabalho de estréia para o grande diário. Lembra-me
bem: era um artigo sobre Gregório de Matos Guerra.
Indago, então, de Grieco, como compreende a crítica literária,
se é partidário do puro impressionismo ou se acha que ela deve ser encarada como
ciência.
Qual
ciência, meu amigo! Sempre fiz puro impressionismo e acho que assim é que deve ser.
A obra dos julgadores de livros vale pela forma em que está vazada, pela ironia,
pela irreverência, pelo que possa representar de negação dos valores oficiais. Nem
a Medicina é ciência, quanto mais a Crítica… [3] Depois, isso de dar lições ao público cansa e não produz efeito.
Porque repare que há uma maçonaria dos leitores: trabalhos elogiadíssimos constituem
formidáveis encalhes, ao passo que outros, de que os aristarcos não gostam, vendem-se
aos milhares. De um modo geral, abomino os criticóides. Para mim, a rigor, só contam
os músicos e os poetas. E se ainda hoje leio Sainte-Beuve é porque escrevia maravilhosamente
bem. Portanto, voltamos ao princípio: o que vale é a forma. Ademais, veja que a
crítica, parecendo gênero difícil, pela soma de conhecimentos que deve exigir, ao
contrário é muito fácil e até adolescentes conseguem exercê-la com sucesso, pelo
menos entre nós… Depois, que coisa precária a emissão de juízos num país como este,
onde os autores mais populares não conseguem vender cinco mil exemplares e os editores
são obrigados a verdadeiros passes de mágica para lançar a terceira edição de um
romance. Numa terra em que os livros, porque não têm contextura resistente, envelhecem
tão depressa, para que assumir ares professorais e pedantescos ao tecer-lhes o comentário?
É o caso de perguntar o que é feito de Os Corumbas, do Sr. Amando Fontes, volume
que suscitou há tempos rumoroso e extenso movimento de opinião. E não me refiro
apenas aos romancistas, pois nos outros ramos da atividade intelectual, na historiografia,
por exemplo, ser-se aqui Capistrano ou Calmon é a mesma coisa, e o segundo vai até
obtendo mais sucesso que o primeiro, por muitos considerado apenas um sujeito maçante…
A conversa gira agora em torno do romance, e pergunto,
então ao autor de Vivos e Mortos qual a sua opinião a respeito.
Não
gosto de fazer prognósticos e prefiro ser profeta do passado… Todavia, não acredito
em novas formas de ficção. Penso, ao contrário, que voltaremos aos narradores clássicos,
à narração feita à moda antiga, como nas Mil e uma noites, na Bíblia, no Quixote.
As técnicas de romance, inventadas e postas em prática por alguns modernos, como
André Gide, John dos Passos e Aldous Huxley, já vão cansando, e seus produtos não
desceram nem descerão jamais até o povo. Ora, numa época em que este, embora mais
alfabetizado, é cada vez menos culto, e os livros se vão tornando subsidiários do
rádio e do cinema, os escritores que quiserem triunfar não deverão complicar os
seus processos. Não se pode servir a massa tornando a literatura difícil, abstrusa.
Certos volumes modernos (sobretudo de poesia) exigem quatro ou cinco leituras para
serem entendidos. O resultado é que ninguém os lê, pois hoje todo mundo tem pressa…
Assim, não acredito que o Contraponto, por exemplo, continue a suscitar imitadores.
O cidadão que trabalhou o dia todo e que à noite, depois de mil peripécias, chega
a casa cansado, está farto de problemas, e se apanha um livro quer é distrair-se,
fugir à realidade ambiente. deixar-se conduzir por alguém que possua, de fato, talento
narrativo, como o possuíam as nossas velhas babás e o possuem o contador de histórias
das ruas de Nápoles e o homem do caravançará, na Ásia…
Mas a tendência da literatura, no futuro, será para dar
mais importância ao individual ou ao social?
Indiscutivelmente
os temas sociais ganharam grande importância de uns anos para cá, importância que
no futuro talvez ainda mais se acentue, pois estamos atravessando uma das maiores
crises políticas por que já passou a humanidade, e nas épocas de crise é natural
que isso aconteça, mas não há dúvida que o ideal seria voltarmos ao herói. Ao herói
do tipo de D. Quixote, de Gil Blas ou
do stendhaliano Julien Sarel de Le rouge et
le noir. Porque, de modo genérico, toda a grande literatura do passado foi feita
em torno dele. Bem sei que se constara hoje uma decadência do “heroísmo”, mas meu
desejo é que voltemos a ele, pois só assim poderemos construir outras tantas obras
primas como as que acima citei. O social conduz à monografia, e há sempre o perigo
de que acabe no relatório e na estatística. Está claro que certas questões existem
e precisam ser solucionadas. Mas pelos governos, não pelos romancistas… Aliás, não
acredito na arte moral, pois sei que os livros de boas intenções quase sempre são
mal escritos. Romance social foi o que fez, por exemplo, Zola, que nos “Rougon-Macquart”
pretendeu traçar todo o quadro dos costumes do seu tempo, Entretanto, não se observa,
na atualidade, um relativo esquecimento de Zola, de Zola que deveria ser o mestre
dessa espécie de literatura, agora tão em moda? Contra esse esquecimento Gide chegou
a lançar o seu protesto. Enquanto isso Stendhal e Voltaire, La chartreuse de parme e Candide, continuam a ser muito lidos. E note
que me sinto inteiramente à vontade para falar assim, pois descendo de campônios
e nunca tive veleidades de aristocrata. Se hoje pago imposto sobre a renda. isso
não me fez, em absoluto, esquecer as misérias e os sofrimentos das classes menos
favorecidas, que passei a amar ainda mais depois que li Castro Alves, poeta dos
escravos, dos oprimidos, e Lima Barreto. romancista, cujos episódios circulam tantas
personagens saídas das camadas mais simples do povo - o carteiro, o mascate, o tocador
de violão. Morando aqui no Méier, também gosto de conversar com os desempregados
ou aposentados do nosso jardim público, e isso é como folhear os tipos que se movimentam
em tantas das melhores páginas do criador de Policarpo Quaresma. Às vezes fico a
saboreá-los longo tempo, e desinteressadamente, pois não pretendo aproveitar os
meus conhecidos em nenhum romance, como por certo faria o Sr. José Lins do Rego.
Estamos conversando há várias horas. Agripino, que é
palestrador admirável, não se cansa de falar e manda que eu lhe pergunte tudo que
deseje saber, pois responderá a todas as questões que lhe apresente. Apesar de já
haver anoitecido, continua a fazer um calor danado. O epigramista de Carcassas gloriosas levanta-se para abrir
um pouco a janela que dá para a rua. Entra um ventinho bom. Lá fora expande-se um
luar maravilhoso e de instante a instante ouvem-se os passos dos transeuntes na
calçada. Passos que são a única nota a quebrar o silêncio da noite suburbana, e
que a gente ouve até se perderem na distância. Aproveitando a boa vontade do entrevistado,
pergunto a Grieco se, a seu ver, a reação modernista de 1922 foi útil ou perniciosa
à literatura nacional.
Foi
útil e foi perniciosa. Útil porque era de fato necessário que alguém reagisse contra
aquele estado de coisas a que tínhamos chegado e se jogassem pelos ares os falsos
ídolos que entulhavam o caminho da glória: Coelho Neto, Duque Estrada, Félix Pacheco,
Laudelino… Útil também porque arejou o ambiente, agitou uma série de problemas de
filosofia e de arte e permitiu a aparição de alguns verdadeiros talentos. Mas perniciosa
porque barateou a literatura, tornando-a ofício predileto de ignorantes e charlatães.
Indiscutivelmente o nível intelectual dos escritores brasileiros baixou depois do
Modernismo, e a nossa língua, a partir de então, sobretudo na poesia, se foi tornando
quase ininteligível, com expressão apenas para uns poucos iniciados. Há poetas modernistas
que não podemos ler sem ter ao lado um explicador, um decifrador daquelas charadas
em forma de verso. Além do mais, o movimento de certa maneira fracassou, pois pretendendo
ser uma revolução contra o passado, determinou esse surto prodigioso de estudos
históricos que aí vemos. Há hoje um enorme interesse do público pelas biografias,
pelos ensaios de interpretação da nossa evolução política, pelos livros de memórias.
Ora, um dos postulados do Modernismo era exatamente o combate à Tradição. Produziu,
portanto, efeito contrário.
Falando-se de Modernismo no Brasil, o nome de Graça Aranha
tem por força de ser citado, e, a respeito do papel que o autor de Malazarte desempenhou
na revolução literária de 1922, eis o que Agripino me diz:
Eu
também estava na Academia na tarde em que o Graça, pronunciando seu famoso discurso,
rompeu com a ilustre Companhia, e, terminada a sessão, vi quando o Schmidt e o Tristão
o carregaram nos braços, enquanto dois irmãos, os Srs. Rafael Pinheiro e Marques
Pinheiro, levavam em triunfo “o último heleno”, isto é, o Sr. Coelho Neto. [4]
Mas Graça Aranha era sinceramente modernista, ou sua
atuação no movimento não passou de simples atitude intelectual?
Graça
nunca foi modernista. Fino, civilizado, viajadíssimo, era antes um espírito clássico,
acadêmico, e seu culto a Nabuco e Machado bem o demonstra. Mas, doido por um fotógrafo,
gostava de estar sempre em evidência, e sentindo a marcha da velhice, prevendo que
não teria senão mais alguns anos de vida, resolveu aderir ao bando novo e, uma vez
entre os moços, porque era o mais experiente e também o mais esperto, apoderou-se
do cargo de chefe. Cargo que de certa maneira lhe foi incômodo e prejudicial, pois
acabou um mestre vigiado, policiado pelos discípulos, perdendo assim toda a liberdade.
Lembro-me que em seu apartamento se comiam uns franguinhos deliciosos, pois o revolucionário
já então estava em dieta (estas duas coisas, aliás, não se casam bem: revolução
e dieta) e eu, que era de seus comensais mais assíduos, acabei perdendo os saborosos
franguinhos com o artigo brutal mas sincero que publiquei a respeito d'A Viagem Maravilhosa, livro escrito frequentemente
em estilo sincopado, estilo de quem passa telegrama e procura economizar palavras… [5] O que mostra que a crítica literária
também exige abnegação e espírito de sacrifício. Mas a verdade é que Graça era um
tradicionalista e os livros da última fase nenhum dourado novo poderão adicionar
à sua glória de escritor. Muito mais do que o romancista de A Viagem Maravilhosa
é ele o estilista de Canaã. Prosador de
antologia, de florilégio, suas melhores páginas continuam a ser as do seu volume
de estreia ou as do prefácio que escreveu para a correspondência trocada entre Nabuco
e Machado. Canaã é um mau modelo de romance, porque todo desconexo, sem a preocupação
da unidade, mas que excelente coletânea de morceaux choisis! Sobrinho do gramático
Heráclito Graça, que lhe corrigiu os primeiros escritos, o autor de O meu próprio
romance era um purista. um devoto da nobre retórica, e é inegável que só se meteu
no Modernismo por já se sentir então em crepúsculo. [6] A desordem modernista não poderia ser de maneira alguma agradável
ao seu espírito educado na contemplação e no estudo das obras-primas da arte clássica.
Daí a razão pela qual, no palco do extinto Teatro Lírico, no dia da conferência
de Marinetti, ficou tão sem jeito. tão encalistrado, quando o povo rompeu naquela
formidável vaia e começou a atirar legumes e frutas no conferencista. Frutas e legumes
que o escritor italiano, como bom cabotino, recebia em êxtase, risonhamente imperturbável,
num ar de marido da deusa Pomona… (Interrompe-se por um instante, como que retomando
o fio dessas recordações, mas logo prossegue, com a mesma vivacidade) O romancista
de Canaã foi, aliás - como já uma vez
declarei - o escritor brasileiro que pessoalmente mais me impressionou. Com seu
riso largo, sua afabilidade, seus modos de aristocrata, representava ele a grande
civilização, adquirida nos longos anos de permanência nos centros mais cultos do
Velho Mundo. E o curioso é que forma ele um acentuado contraste com o outro notável
escritor brasileiro a que muitas vezes já me tenho referido e que é, também. uma
de minhas afeições literárias - Lima Barreto. O Graça, que crescera ao lado de Nabuco,
que se tornara amigo de Barrès, que fizera, como diplomata, uma carreira das mais
brilhantes, era afável, polido, delicado. Já o Lima - mulato. sujo, mal-amanhado,
era atrevido, ríspido, malcriado, sem qualquer humildade. Você não calcula o que
fazia com os pobres estreantes que lhe levavam os livros para ler. Nada prestava.
Para ele, como que só Lima Barreto tinha talento. Graça Aranha, entretanto, apesar
da grande posição de que desfrutava, recebia a todos com a mesma afabilidade, e
se no íntimo sabia distinguir os valores, era incapaz de destratar quem quer que
fosse. A propósito, é preciso acabar com esta lenda de que eu também, na literatura
brasileira. só tenho feito destruir. Se ataquei os manipansos, os falsos ídolos,
não regateei elogios a quem de fato os merecia. E aí estão meus estudos sobre Raul
de Leôni. Alphonsus de Guimaraens, Gilberto Freire, o próprio Lima Barreto, para
provar o que digo. Fui dos primeiros a chamar a atenção do público para essa gente,
hoje tão cortejada pela crítica. A respeito de Alphonsus de Guimaraens, por exemplo,
lembro-me que Medeiros e Albuquerque, encontrando-se comigo logo depois da publicação
de um dos meus artigos sobre o admirável lírico de Mariana, confessou admirado:
“Então o homem é de fato um grande poeta! E eu que pensei tratar-se apenas de um
carola, de um esquisitão…”. Com um pouco mais de habilidade, estaria eu hoje na
Academia…
E se dez acadêmicos levantassem a sua candidatura, como
permite agora o Regimento? [7]
Depois
do que tenho dito deles, não creio que o façam. Mas se tivessem esse gesto, acho
que recusaria, como Monteiro Lobato. Só aceitaria entrar para a Academia se me dispensassem
do discurso de posse e pudesse ir lá apenas receber o jeton. Ler naquele recinto
qualquer coisa, depois do que tenho dito da chamada Ilustre Companhia, seria terrível
desfaçatez…
No entanto, o escritor que recusaria sentar-se sous la
coupole, gostaria de ser… dono de armarinho! De fato, entrevistado há tempos, Grieco
manifestou esse extravagante desejo. Estranhando a resposta, pois nada me parece
mais distante de um panfletário como o autor de Vivos e Mortos do que um balcão de loja de fazendas, peço-lhe que me
explique o motivo dessa surpreendente declaração.
Você
precisa não se esquecer de que vim para o Rio num tempo em que ser empregado no
comércio era uma situação capaz de causar inveja. Os rapazes que desfrutavam desse
privilégio em geral moravam nos altos das próprias casas em que trabalhavam; almoçavam
e jantavam com o patrão, que, comumente não dispensava, às refeições, o bom vinho
e o bom azeite e não fazia economia desses artigos com os auxiliares; à noite iam
ao teatro, apreciar as companhias de operetas portuguesas que então nos visitavam,
como, por exemplo, a de Palmira Bastos; e aos domingos, cintilantes de espírito
domingueiro, promoviam excursões à Tijuca ou piqueniques em outros recantos pitorescos
da cidade. Além disso, no trabalho, e por força mesmo dele, havia o contato com
as bonitas freguesas, que às vezes uma ou outra aventura… Talvez por isso, talvez
pela poesia que há no colorido das fazendas, a verdade é que me ficou dessa época,
uma secreta inveja do empregado no comércio. E sinceramente acho muito melhor ser
dono de armarinho do que ficar a vida inteira metido numa biblioteca, a respirar
a poeira e o cheiro de naftalina que se desprendem dos livros…
Nessa mesma entrevista, Grieco se declarou católico.
Mas será, de fato, católico o autor de São Francisco de Assis e a poesia cristã?
O
respeito pela Igreja é um sentimento que não posso arrancar de dentro de mim. A
música sacra e os cânticos de procissão me enternecem, talvez por me recordarem
a infância. Jamais escrevi e sinto que não serei capaz de escrever uma palavra sequer
contra Cristo e a Igreja. Pelo contrário, esses assuntos me infundem um temor meio
supersticioso e sempre mereceram de mim o maior acatamento.
Isto
já é outro assunto. Às vezes acompanho minha mulher à igreja.
Agora o escritor nos leva a ver sua biblioteca, esplêndida
coleção de cerca de trinta mil volumes cuidadosamente selecionados e encadernados. [8] E como estranhássemos
que um homem pobre e com família numerosa tivesse conseguido reunir aquele acervo,
onde nada é desprezível ou de segunda ordem, explica-nos ele:
Só
eu sei o que me custou formar esta biblioteca; as renúncias, os sofrimentos que
exigiu. Era economizando o mais possível em outros gastos, deixando de comprar roupa
e calçado, que eu conseguia fazer com que o magro dinheirinho de conferente e mais
tarde de auxiliar de escrita da Central do Brasil chegasse para tais extravagâncias.
É verdade que o livro não custava o que custa hoje, e graças à minha amizade com
livreiros, sempre conseguia fazer uma ou outra barganha. Ao velho Matos, por exemplo,
da Livraria Quaresma, costumava levar dez, doze brochuras nacionais em troca de
um volume francês descoberto numa de suas prateleiras. Mas, arguto e malicioso como
poucos, nessas ocasiões o meu excelente amigo não deixava de observar: “Grieco,
queres roubar-me…” Há muitos anos não se passa um dia sem que entrem aqui em casa
dois, três volumes. De uns tempos para cá tenho recebido também muitos originais,
de plumitivos que pedem minha opinião sobre os seus trabalhos.
E essa opinião geralmente é dada com sinceridade?
Desde
que não se trate de uma droga muito grande, procuro dizer coisas mais ou menos amáveis
e contornar a situação. Não costumo desencorajar ninguém que queira tentar a aventura
das letras. O que não deixa de ser uma maldade, sobretudo numa terra, como o Brasil,
em que a literatura ainda é uma ocupação meio ridícula e, para a grande maioria,
infrutífera… Comum, também, pedirem-me prefácios, o que, entretanto, é mais difícil,
conseguirem de mim.
Não há muito, referindo-se, num depoimento para a imprensa,
a seus romancistas prediletos, Grieco citou os seguintes: Jorge Amado, Graciliano
Ramos, José Lins do Rego, Otávio de Faria, Cornélio Pena, Lúcio Cardoso, Plínio
Salgado, Ciro dos, Anjos, Érico Veríssimo, Galeão Coutinho e Gastão Cruls. São estes,
de fato, seus romancistas preferidos?
Sim.
Dentre os modernos ficcionistas brasileiros. Está claro que não serão, de modo geral,
os meus romancistas prediletos, pois se fosse incluir os brasileiros do passado
e os estrangeiros de todos os tempos, a lista seria forçosamente outra, e nela talvez
não houvesse lugar para nenhum dos que citei. Romancistas da nossa preferência hão
de ser, por força, aqueles cujos livros relemos frequentemente, pois a releitura
é que é, de fato, a prova de fogo. E dos que acima citei, com exceção de um ou dois,
nenhum me tem convidado a uma segunda leitura. No entanto, só as Memórias de um
sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, já li umas trinta vezes. Dentro
de outro critério, este é que seria, portanto, um dos romancistas de minha predileção.
Simplório e profundo ao mesmo tempo, escreveu Manuel Antônio um livro eterno, que
é bem o Rio em que eu desejaria ter transitado. Também ao grande Raul Pompéia de
O Ateneu volto com frequência atraído pela riqueza verbal e pela fina psicologia
de suas melhores páginas.
Em que livro trabalha atualmente?
Timidamente,
como um pequeno comerciante de escassos haveres -, estou escrevendo uma História
da Literatura Brasileira. Digo timidamente, como um pequeno comerciante, porque
ouço falar que o mesmo assunto vem sendo explorado por poderosas empresas, de vultoso
capital e grande número de sócios. Contam-me que se fundou aqui um verdadeiro sindicato
para escrever a história da nossa literatura em 14 volumes, se não estou enganado. [9]
Vira-se
para mim e pergunta: Mas não será exagero dedicarem-se 14 volumes à história de
uma literatura que não possui 14 grandes livros?
E a sua História, como será?
Meio
jornalística e meio didática, sem o anedótico e o tom polêmico dos volumes anteriores,
mas não excessivamente sisuda, pois afinal o público se vinga dos autores maçantes
não lhes comprando os livros. Será obra em dois ou três volumes e tenho a impressão
de que já no ano próximo poderá estar à venda. [10]
Distribuiu a matéria segundo algum critério novo de divisão
da história da nossa literatura?
Não.
Os períodos serão os mesmos já estabelecidos por Sílvio Romero, José Veríssimo,
Ronald de Carvalho e outros. Apenas serão estudados à minha maneira. Exatamente
por reconhecer que essas divisões são todas arbitrárias e discutíveis é que me preocupei
muito com qualquer critério novo de exposição da matéria.
Nessa obra naturalmente vai utilizar-se do material já
reunido nos seus volumes anteriores, especialmente na Evolução da prosa e na Evolução
da poesia, não?
De
modo algum. Não pensei mais no que já havia escrito ao compor esta História da Literatura
Brasileira. Faço dos grandes temas acaso já apreciados em trabalhos anteriores uma
exposição inteiramente nova. Apenas, como não virei casaca em relação aos grandes
nomes das nossas letras, você não poderá exigir que, apenas para ser original, me
contradiga… Assim, por exemplo, ao tratar de Castro Alves, de Euclides, de Alencar,
de Rui, embora tenha tentado emitir conceitos novos, é possível que num ponto ou
noutro me repita, pois afinal o juízo que faço desses vultos já é por demais conhecido.
E as memórias?
Estas
pretendo que sejam ântumas, e deverão estar publicadas dentro de um ano, mais ou
menos, no plano de minhas Obras Completas, que a Livraria José Olímpio vem editando. [11] Estão sendo escritas cronologicamente,
sem qualquer efeito teatral e sem nenhuma estratégia especial na fixação dos tipos.
Os acontecimentos vão sendo passados para o papel à medida que afloram à lembrança.
O livro começa, naturalmente, em Paraíba do Sul…
Está
claro. Mas sua maior parte é constituída de fatos ocorridos aqui, pois é do Rio
antigo, do Rio do meu tempo (que não é precisamente o do Luís Edmundo) que trato
em suas páginas. Nem tudo, porém, serão fatos. Há também perfis humanos: do meu
amigo José Geraldo Bezerra de Meneses, do livreiro Matos e de muitas outras criaturas
com quem convivi ou simplesmente cruzei nos caminhos da vida.
Não teme a repercussão que certos depoimentos poderão
ter?
Quem
não teve receio de publicar livros como Carcassas
gloriosas e Zeros à esquerda não deve
temer dar a público as próprias memórias, doam elas a quem doer.
Seria interessante saber quantas horas um homem como
Grieco, vivendo no Méier, sem quase ir à cidade, e tendo à mão aquela prodigiosa
biblioteca, ainda lê por dia.
Nunca
menos de três, quatro horas. E às vezes seis, oito, quando o livro me interessa
muito. Leio quase sempre à noite, na cama. E a despeito do que dizem os médicos
sobre os inconvenientes dessa posição, não me acostumo com outra. E nunca me aconteceu
adormecer lendo um livro, nem mesmo do Sr. Cláudio de Sousa… O que não deixa de
ser um infortúnio, pois nada lucro com esta resistência a tais soporíferos…
É verdade que quase não sai de casa?
Só
saio muito raramente. Em geral duas vezes por semana, às segundas e quintas, quando
vou à. cidade. E lá percorro de preferência as livrarias, embora sem fazer ponto
em nenhuma delas, pois não tenho grupos nem pertenço a qualquer coterie. De resto,
nunca fui mesmo muito gregário, e o último ponto de reunião de intelectuais e escritores
que frequentei foi a redação do Boletim de Ariel, a revista literária que durante
sete anos dirigi juntamente com meu amigo Gastão Cruls. Mas quando vou à cidade
não deixo, como disse, de circular pelas livrarias. E admiro-me de ver que em certa
loja do centro ainda há escritores que ali se reúnem todos os dias e ficam posando
para a posteridade, com um olho no interlocutor e outro no provinciano bisonho que
vem à Corte espiar os grandes das letras.
[12]
Tem algum projeto para o futuro?
Ando
com a ideia de fazer uma segunda viagem à Europa, para conhecer Portugal, a Espanha,
a França e rever a Itália, onde estive em 1938 como integrante de uma embaixada
de jornalistas. Mas desta vez quero ir por conta própria, sem depender de ninguém,
para ver apenas aquilo que de fato queira apreciar e não o que os governos tenham
interesse em me mostrar. Posso perfeitamente passar um ano na Europa, por conta
das conferências que tenho realizado por este Brasil afora. E ainda me sobrará dinheiro
para deixar a filhos e netos, segundo o bom hábito dos campônios de que descendo… [13]
Quer dizer que esse negócio de conferências é de fato
rendoso…
Rendosíssimo.
E estou pronto a indicar aos colegas as melhores praças. Já agora prefiro fazer
conferências a escrever. É uma ocupação muito mais divertida e rende incomparavelmente
mais. O que me pagam de direitos autorais pela edição de um livro posso ganhar numa
noite em qualquer cidade do interior de São Paulo. Depois, penso sempre no contentamento
com que se sai de uma conferência, e na inquietação com que se sai de um artigo,
Mas apesar de tudo, devo retomar em breve ao meu rodapé de crítica, pois diante
do que vai por aí é impossível deixar de protestar e de fazer um pouco de blague
e zombaria…
NOTAS
(1) Hoje não será mais assim. O bairro desenvolveu-se
muito, e o presente texto resultou de duas entrevistas, uma de 1944 e outra de 1949.
(2) Seus pais – Pascoal Grieco e Rosa Covello Grieco
- eram naturais de Basilicata (antiga Lituânia)
(3) Essa atitude de Grieco em relação à crítica não
é, aliás, nova, No citado artigo sobre Tristão de Ataíde, observa ele: “Os que pretendem
dar à crítica um papel pragmático, uma função educativa, atribuindo-lhe antes uma
finalidade social que estética, fazem sorrir quantos leram o artigo em que Faguet,
abrindo os seus Propos Littéraires, discorreu, abeberando-se em profusos exemplos,
sobre a inutilidade da profissão que ele próprio, Faguet, exercia. Sim, a crítica
não pode ter o rigor de uma ciência, como pretendem os críticos que são apenas críticos,
os que jamais criaram coisa alguma, os que nunca sentiram a dor do parto mental
e a consequente alegria da maternidade artística, doutrinadores ressequidos que
tratam os criadores autênticos com o possível desdém das simples lagartas pelos
bichos-da-seda (…)” E pouco mais adiante: “A crítica não pode ter o ’valor demonstrativo
de uma experiência química' .[…] Talvez mesmo o fato de Brunetière ter sido tão
imparcial é que o torna antipático aos nossos olhos, ao passo que Gourmont, com
as suas violências, os seus sobressaltos de cólera, as suas injustiças para com
os adversários, parece-nos tão humano e mesmo tão simpático”. E o artigo conclui
com esta reflexão: “O prazer que nos dá um livro, um belo livro, é o julgamento
mesmo desse livro. Será isso diletantismo, epicurismo de inteligências enamoradas
de si próprias, narcisismo literário através das obras alheias, será tudo o que
quiserem, mas não deixa de ser ainda o melhor dos métodos críticos, ou antes o único
eficiente. Bem julgar deve ser apenas o resultado da volúpia de bem compreender,
de tudo compreender (…)” (Caçadores de Símbolos, Rio de Janeiro, Editora Leite Ribeiro,
1923, pp. 125, 159-160e 164).
(4) Ampla documentação sobre o rompimento de Graça Aranha
com a instituição para a qual ingressara por insistência de Machado de Assis e Joaquim
Nabuco foi reunida por Josué Montelo no precioso volume O Modernismo na Academia
- Testemunhos e Documentos. Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 1994.
(5) Em Poetas e Prosadores do Brasil (Rio de Janeiro,
Conquista, 1968), ao tratar de Graça Aranha, Grieco inseriu algumas páginas de crítica
à Viagem Maravilhosa, talvez reproduzidas desse artigo.
(6) Embora não seja impossível que essa circunstância
tenha influído na sua decisão de formar entre moços, a nosso ver a adesão de Graça
Aranha ao Modernismo se explica por outros motivos, como se verifica das páginas
do livro de memórias, infelizmente inacabado. O Meu Próprio Romance. onde se declara
“hereditariamente revolucionário”, fatalidade que lhe impunha “a ânsia da libertação,
o furor de mudar o mundo e tudo transformar” (p. 162). Antes, no mesmo livro, já
havia escrito: “A unidade da minha vida está no espírito de libertação, que animou
o meu ser moral desde a infância até a velhice. Aos doze anos libertei-me da ideia
religiosa. Aboli em mim o terror inicial. Desde então a minha vida foi uma aspiração
de conhecimento e por este conhecimento tomar posse do universo. Libertei-me do
preconceito político e, o que é mais difícil, do preconceito estético. Libertei-me
de todo o terror,” [… 1 “Se a minha vida não se assinalou por grandes feitos sociais,
o drama interior foi intenso e fecundo. O meu caso é de um homem em constante libertação
espiritual e, sob esta inspiração, construindo a sua existência. A minha vida tem
sido a perfeita harmonia entre as ideias e os atos. Realizei e vivi o meu pensamento”
(…). “Nada poderia contribuir para o meu incessante progresso intelectual, como
o espírito de negação. Aos doze anos neguei Deus, aos quatorze neguei o direito
natural. aos quinze neguei o princípio monárquico e o direito à escravidão. Dos
dezesseis em diante acrescentei às minhas negações a libertação estética.” (pp.
31 a 33).
(7) A entrevista é de uma época em que, pelo Regimento,
o processo eleitoral da Academia se dividia em dois momentos: no primeiro - que
vigorava durante o primeiro mês, a partir da declaração da abertura da vaga - a
inscrição era espontânea por parte dos candidatos; no segundo - que se prolongava
pelo mês seguinte - a inscrição podia ser feita pela própria Academia, mediante
indicação subscrita por dez acadêmicos, Recebendo qualquer indicação nesse período,
cabia ao Presidente transmitir a informação ao candidato apresentado; e este, no
prazo máximo de dez dias, devia responder se aceitava ou não a indicação e se desejava
concorrer à vaga. Por esse processo Getúlio Vargas foi eleito em 1941 como sucessor
de Alcântara Machado, E em 1944 um grupo de acadêmicos tentou eleger Monteiro Lobato,
o qual, no entanto, à última hora, acabou recusando. Atualmente tal sistema não
mais vigora, devendo a inscrição ser solicitada, por escrito, pelo candidato.
(8) Depois de sua morte, em 1973, sua biblioteca foi
vendida para a Universidade de Brasília.
(9) Alusão à monumental História da Literatura Brasileira
que a Livraria José Olímpio pretendia editar, sob a direção de Álvaro Lins, e cujo
plano era o seguinte: 1º voI. - Gilberto Freire - O ambiente social e de cultura.
O meio físico e os elementos étnicos; 2° vol. Barreto Filho - O Pensamento Filosófico
e Científico; 3º vol. - Abgar Renault - Evolução da Língua Literária; 4º vol. -
Paulo Rónai - Influências e Correntes Estrangeiras; 5º vol. – Fidelino de Figueiredo
- A Literatura Portuguesa no Brasil; 6º vol. Luís da Câmara Cascudo - Literatura
Oral; 7.° vol. Sérgio Buarque de Holanda - Período Colonial; 8º vol. Roberto Alvim
Corrêa - De 1830 a 1970 (Poesia); 9º vol. - Astrogildo Pereira - De 1830 a 1870
(Prosa de ficção); 10º vol. Otávio Tarquínio de Sousa - De 1830 a 1870 (Prosa: história,
crítica, ensaio, eloquência, jornalismo etc,); 11º vol. Aurélio Buarque de Holanda
- De 1870 a 1920 (Poesia); 12º vol. Lúcia Miguel-Pereira - De 1910 a 1920 (Prosa
de ficção); 13º vol. Tristão de Ataíde - De 1870 a 1920 (Prosa: história, crítica,
ensaio, eloquência, jornalismo, etc.), e 14º vol. Alvaro Lins - Literatura Contemporânea
(De 1920 aos nossos dias), Desses, apareceram apenas os volumes 6º e 12º
(10) Até hoje não publicada, Também não figura no plano
de suas Obras completas.
(11) Das memórias de Agripino Grieco, apareceram dois
volumes: 1 Província e 2 - Rio de Janeiro, publicados pela Editora
Conquista, do Rio, em 1972.
12) Queria Grieco referir-se à antiga loja da Livraria
José Olímpio, na Rua do Ouvidor, quase esquina de Avenida, que funcionou de 1934
a 1955 e era ponto de encontro de escritores. Ali podiam ser vistos, com freqüência,
José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Otávio Tarquínio de Sousa. Amando Fontes, Gastão
Cruls, Brito Broca e inúmeros outros. A loja ficava quase em frente à velha Livraria
Garnier, freqüentada, nos princípios do século, por Machado de Assis e a geração
que fundou a Academia.
(13) Em 1952 foi a Portugal (onde o filho, o hoje Embaixador
Donatelo Grieco, era Ministro Conselheiro), estendendo a viagem à Inglaterra e à
França. Em 1962 voltou a visitar esses países.
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Entrevista
conduzida por Homero Senna, publicada originalmente na revista d’O Jornal, de 10/12/1944 e revista do Globo # 476, de 05/02/1949 e republicada
no livro República das letras (Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1996). Edição preparada por Floriano Martins. Página ilustrada
com obras de Paul Delvaux (Bélgica, 1897-1994), artista convidado da presente edição.
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Agulha Revista de Cultura
Número 123 | Novembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
Também morador do Méier desde que cheguei ao Rio de Janeiro nos anos 1960, conheci Agripino Grieco já octogenário. Conheci sua fantástica biblioteca e me disse que sabia onde estava localizado cada um dos mais de 30 mil livros. Visitei-o algumas vezes e ficou contente quando soube que eu era colaborador do jornal do bairro. Volta e meia recebia estudantes que iam à sua casa pesquisar para fazer trabalhos escolares. Quando sugeri levar um gravador para registrar nossas conversas ele me disse: -“Não precisa gravar, escreva de memória. Do que não se lembrar, invente”. O material que escrevi sobre ele saiu às pressas - sem revisão - no Suplemento Cultural da Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), com o título: Agripino Grieco, o esgrimista da palavra. Era uma homenagem na semana do seu falecimento, causado por uma operação cirúrgica malsucedida. Ele era "rendido", como se diz popularmente de quem tem hidroceles testicular. O velhinho simpático deixou saudades. Hoje a sua casa é uma padaria bem típica do subúrbio e o seu busto se mudou para a Rua Dias da Cruz, no lado nobre do bairro.
ResponderExcluirMuito interessante para conhecermos esse ícone da literatura tão pouco divulgado em nossos dias.
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