Atulhado de livros, o apartamento do escritor
Aurélio Buarque de Holanda mais parece uma livraria em balanço: são volumes pelo
chão, em cima das cadeiras, na mesa, entre cadernos, jornais, maços de provas tipográficas.
É que o autor de Dois mundos– entre seus numerosos afazeres – está preparando
agora a 9ª edição do Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa, e como costuma trabalhar
em mais de um lugar, por todos eles vai esparramando os elementos de que se serve.
Todavia, dentro daquela aparente balbúrdia há certa ordem e, como ninguém, em casa,
tem autorização para mexer nos seus papéis, não lhe é difícil encontrar o volume
ou o caderno de notas que procure.
A entrevista
se realiza à noite, hora em que o escritor prefere trabalhar, pois durante o dia,
além das aulas no Pedro II, onde desde 1940 leciona português, e de suas outras
ocupações, há o choro das crianças, o telefone, as visitas, as mil e uma interrupções,
enfim, a que está sujeito um mortal, que, morando em apartamento, precisa dedicar-se
a trabalhos intelectuais.
À noite, porém,
Aurélio recupera o tempo perdido e, segundo me diz, já lhe tem acontecido amanhecer
em sua mesa de trabalho. Depois dorme até nove e meia, dez horas. O repouso está
de qualquer forma sacrificado, mas de outro modo não poderia dar conta das múltiplas
que há vários anos vem executando.
A maior de todas,
a mais penosa e fatigante é, sem dúvida, o Pequeno dicionário, que,
a partir da 3ª edição, tem sido revisto integralmente por ele e cuja 9ª edição,
agora em preparo, deverá sair consideravelmente refundida e ampliada. [1]
Reunindo duas
qualidades que nem sempre andam juntas – a de conhecedor da língua e a de escritor
–, Aurélio Buarque de Holanda sempre me pareceu a pessoa indicada para, numa entrevista,
debater certos problemas, esclarecendo o público a respeito de determinados assuntos.
Autodidata como
quase todo brasileiro, sua intuição guiou-o, no terreno filológico, ao bom caminho,
e seu bom gosto literário, sua cultura, sua paixão da minúcia e da exatidão fizeram
dele não só um consultor e mestre de escritores, mas também uma pessoa naturalmente
indicada para certos trabalhos, como a organização de antologias, preparo de edições
críticas, apuração de textos, confecção de dicionários , traduções etc. É nisso
principalmente, que tem se ocupado desde que chegou ao Rio, e muitos autores já
têm dado testemunho do que lhe devem em orientação, conselhos e emendas.
Através do Pequeno
Dicionário, tem Aurélio Buarque de Holanda prestado enorme serviço a milhares de
pessoas neste país, havendo mesmo quem, ao escrever, como, por exemplo, o escritor
Paulo Rónai e o jornalista Costa. Rego, não dispensem de modo algum esse valioso
auxiliar. Pois vejamos um pouco da história do principal autor desse dicionário
que milhares de mão diariamente folheiam.
Começo por perguntar-lhe a que deve ou julga dever seu gosto pelo estudo da
língua, e Aurélio, depois de pensar um pouco, confessa-me:
Não saberia dizer-lhe.
Não foi por certo o ambiente familiar nem qualquer professor. Pelo contrário, nunca
pessoa alguma soube orientar-me no estudo da língua ou em qualquer outro estudo,
o que, somado às dificuldades dos meus primeiros tempos de menino e de rapaz, teria
dado para desistir, se a curiosidade e a possível vocação não fossem mais poderosas
do que tudo. Nascido em Camaragibe, no interior de Alagoas, com menos de um ano
mudei-me para Porto de Pedras, onde passei a meninice até aos 10 anos, quando fui
levado para Porto Calvo. Ora Porto de Pedras e Porto Calvo eram nessa ocasião, como,
até certo ponto, ainda hoje, lugares paupérrimos. Assim, os seus professores não
podiam ser bons. Os mestres que ali tive não me explicavam quase nada do que eu
mais desejava saber. Lembro-me que já nessa época vivia preocupado com as palavras;
mas escapava-me o sentido da maioria delas. Cheguei mesmo decorar a poesia Velhice
e mocidade, de Gonçalves Dias, incluída no Quarto livro de leitura, de Felisberto
de Carvalho.
Senta-te embaixo do chorão, que dobra
A verde rama sobre a campa nua
Dizia o poeta.
Mas quem estava ali para explicar-me o que é “chorão” e “campa”?
Não havia em casa um dicionário?
Não. O único,
de Simões da Fonseca, minha irmã, ao casar-se, levara-o, e eu não tinha permissão
de consulta-lo à vontade. Passei a viver sonhando com a delícia de possuir um livro
dessa espécie, mas como adquiri-lo, se meu pai se queixava sempre da “crise pavorosa”?
Tempos mais tarde vim a descobrir no cartório do tabelião de Porto Calvo – José
Bonifácio de Paula Cavalcanti, aliás aparentado comigo – o dicionário de Jaime de
Séguier. Aí então fartei-me. Quando queria decifrar o sentido de alguma palavra,
corria ao tabelião – e o gordo volume desvendava-me os mistérios vocabulares.
O meu entrevistado fica um instante em silêncio, como que rememorando esses
fatos – agora que em sua biblioteca tem à mão os principais dicionários da língua
e todos os livros informativos de que necessita – mas logo, prossegue:
É verdade que
meu pai, apesar de homem simples, de poucas letras, tinha jeito para os versos e,
mal e mal, chegou a fazer um acróstico para minha irmã. Gostava também de ler, e
em Porto de Pedras era mesmo uma espécie de leitor municipal: à noite, ou nas tardes
vazias de domingo, ele, empunhando o romance que na ocasião estava sendo lido –
geralmente de Alexandre Dumas, Xavier de Montepin, de Victor Hugo – punha-se a ler
para diversos amigos e conhecidos. Dava então às frases as inflexões que lhe pareciam
exatas. Caprichava nos lances dramáticos ou cômicos. Mas, apesar dos versos e das
leituras que eram o regalo dos maiorais de Porto de Pedras, também não posso dizer
tenha sido de meu pai que herdei o gosto do estudo e principalmente do estudo da
língua. Entretanto ainda outro dia, remexendo em velhos papéis, encontrei uma comédia
escrita por mim aos 14 anos, sobre um almofadinha em apuros. E o interessante é
que a comédia, do pondo de vista da linguagem, é correta. O que, parece-me só pode
ser levado à conta de intuição, de um como sexto sentido, pois até essa data bem
pouco eu aprendera nas escolas por onde andara, e nem sequer adquirira o hábito
da leitura.
Até que idade morou em Porto Calvo?
Até os 13 anos,
quando meu pai se mudou para Maceió.
E aí, as coisas melhoraram?
Muito pouco.
O professor de Português suplicava-nos como a análise a frio das estrofes de Os Lusíadas,
sem uma palavra acerca da beleza do poema. Podia-se, então, fazer o curso secundário
no regime parcelado, e foi o sistema por que optei. Mas logo depois, aos 15 anos,
agravando-se as coisas em casa, tive de abandonar os estudos para trabalhar. Empreguei-me
no comércio, ganhando de início sessenta mil-réis. Depois, em outra firma, cheguei
a cem.
Isso em que época?
De 1923 a 1925.
Em 1930 e 1931 fiz os preparatórios que me faltavam e no ano seguinte ingressei
na Faculdade de Direito do Recife. Mas durante todo o curso continuei morando em
Maceió, indo ao Recife apenas fazer as provas. Com 200 mil-réis por mês podia um
estudante viver nessa época em Recife. Pois bem, foi em vão que procurei ali um
emprego onde pudesse ganhar essa importância e, nas horas vagas, estudar. Assim,
continuei morando em Maceió com meus pais, pois lá não tinha grandes despesas e
até já os ia ajudando, uma vez que desde 1933 conseguira o lugar de professor primário
no Orfanato São Domingos. Depois passei a lecionar Português e outras matérias no
curso secundário, e em 1936 fui nomeado professor do Liceu Alagoano, hoje Colégio
Estadual de Alagoas, onde lecionei Português, Francês e Literatura. Mais tarde passei
a secretário da Prefeitura e. depois, diretor da Biblioteca Municipal.
Havia nessa ocasião, um bom grupo de escritores e intelectuais em Maceió,
não?
Um grupo notável,
como talvez nunca mais se reúna em pequena capital de província. Para falar somente
nas figuras de primeiro plano, moravam em Maceió nesse tempo: Graciliano Ramos,
José Lins do Rego, Jorge de Lima, Raquel de Queirós, Santa Rosa. À noite, o grupo
– com exceção de Jorge de Lima – reunia-se no “Ponto Central”, não faltando às conversas
outros escritores mais jovens ou menos famosos, como Valdemar Cavalcanti, Carlos
Paurílio, Alberto Passos Guimarães, Raul Lima, Barreto Falcão, Diegues Jr., Afrânio
Melo e Aluísio Branco. Aluísio, morto aos 27 anos, foi uma das mais brilhantes promessas
de ensaísta que já tivemos. Vários dos mais importantes livros da moderna literatura
brasileira foram escritos, então em, Maceió: Angústia, de Graciliano Ramos;
Menino de engenho, Doidinho, Bangüê, a parte do Moleque Ricardo,
de José Lins do Rego. Não faltava, pois ao grupo, assunto para conversas, e, de
fato, conversava-se muito em Maceió naquela época. Boa época... Em 1938 vim para
o Rio: muitos daqueles companheiros já estavam aqui.
Quer dizer que não teve, propriamente, professores de Filologia?
Nem de Filologia,
nem, a rigor, de qualquer outra coisa. Será uma insuficiência, uma falha, mas não
posso inventar. Meu último professor de Português, tive-o aos 12 anos. E que professor!
É, portanto, 100% autodidata...
Só não digo que
sou 101% porque isso é impossível.
Por que motivo se tornou dicionarista?
O culpado foi
o Manuel Bandeira. Indicou-me o poeta à Editora Civilização Brasileira para, a partir
da 3ª edição, fazer, no Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua
Portuguesa, a parte de brasileirismos. Porém, minucioso, meti-me em outras searas,
de tal forma que praticamente acabei revendo, na parte da redação, todo o dicionário,
e acrescentando-lhe inúmeras palavras de uso geral. Publicada essa edição fui chamado
para preparar nova, que não pôde ser a 4ª nem a 5ª, mas apenas a 6ª, que saiu inteiramente
revista e consideravelmente aumentada, sobretudo na parte de brasileirismos. Agora
estou preparando nova edição, que deveria ser a 7ª, mas que provavelmente só será
a 9ª, pois depois da 6ª duas novas tiragens já foram lançadas. É que, no sentido
de melhorar cada vez mais o dicionário, tornando-o mais útil a todos os consulentes,
resolvi, para essa nova tiragem, fazer no seu texto várias alterações e transposições,
incluindo também algumas novidades que me pareceram vantanjosas.
Sempre se interessou pela Lexicografia?
Sempre, mas não
de modo particular. Foi o Pequeno Dicionário que me obrigou a preocupar-me
a sério com este assunto.
Gosta do trabalho de dicionarista?
Fazer um dicionário
dá um trabalho dos diabos. Sobretudo quando o autor tem, como eu, o gosto do pormenor
e a mania de querer sempre fazer tudo da melhor forma possível.
Como se faz um dicionário?
De várias maneiras...
Em geral o dicionarista, não só na relação como na definição dos verbetes, se serve
do trabalho dos que o antecederam. E ali vai enxergando coisas suas, corrigindo
o que lhe parece errado ou imperfeito, escolhendo, transpondo, em alguns casos suprimindo,
estabelecendo novos métodos para a ordenação dos assuntos etc. Um dicionário não
pode ser trabalho puramente individual. Duas qualidades são essenciais ao dicionarista:
paciência e bom senso. Engano supor que é apenas com cultura, com um amplo conhecimento
da língua, que se faz dicionário. Esse conhecimento sem dúvida é necessário, mas
de pouco valerá se não estiver a serviço de um bom método. Método que é fruto, em
grande parte, do bom senso. O resto é questão de paciência e de muitas outras coisas
que não poderia dizer sem correr o risco de tornar-me prolixo e, talvez, suficiente.
Mas afinal você não respondeu: gosta do trabalho?
Apesar de ser
absorvente e estafante, é-me impossível dizer que não gosto. Há muita coisa, no
trabalho do dicionarista, que fala à imaginação – certas palavras, usadas em determinada
região, que a gente fica a supor como será; outras já em desuso, mas que são pitorescas
e expressivas; outras ainda que nos recordam vozes da infância. Isto sem falar na
satisfação de saber que muitas vezes vamos dar uma como vida nova a determinada
palavra. Traze-la da língua falada, geral e regional, para a letra de fôrma. Aliás,
desde que tenha um pouco de imaginação é possível encontrar encanto em qualquer
tarefa. E afinal a tarefa de lidar com as palavras – defini-las grupa-las, dar-lhe
sinônimos – não deixa de estar ligada à profissão de escritor. Eis por que acho
prazer nesse trabalho, que frequentemente me prende a esta mesa até alta madrugada.
E de lecionar, também gosta?
Gosto. Como sou
professor de Português, a matéria de minhas aulas é ainda, em parte, a Literatura.
Não me divorcio, assim, daquilo para que talvez seja maior a minha vocação. E o
ensino tem os seus atrativos: sentir o interesse com que a classe acompanha a leitura
de uma boa página; vislumbrar vocações literárias; saber que estamos abrindo sulcos
em algumas inteligências quase virgens; supor que muitas das nossas lições talvez
frutifiquem mais tarde.
De que modo orienta suas aulas?
Procuro dar-lhe
um cunho prático e vivo. Assim, o que mais faço com mês alunos é a leitura e comentário
de páginas célebres, salientando nestas não só a correção da linguagem mas também
as qualidades literárias. Obrigo-os, ainda, a escrever bastante e comento, depois,
em aula, os erros encontrados. Parto, portanto, dos textos, da língua viva, para
a teoria gramatical. De nada serve atulhar a cabeça dos meninos de regrinhas, esquemas,
exceções, diagramas: o importante é fazer que aprendam a língua viva, que saiam
do ginásio capazes de sentir o sabor literário, o vigor, a força de uma página e,
o que é mais importante,de escrever corretamente uma carta, um requerimento, um
ofício. Este é que me parece o melhor método de ensinar Português. Andam hoje muito
em moda os “textos para corrigir”, prejudicialíssimos, pois levam os alunos a se
impressionarem demasiadamente com os erros, incutindo-lhe o antiquado e inaceitável
conceito de que a linguagem é um terreno onde se defrontam, como adversários, formas
erradas e formas corretas. Imaginam os entusiastas desse método as construções mais
estapafúrdias, e os alunos, que normalmente, muitas vezes, não usariam tais construções,
acabam, influenciadas por elas, não sabendo escrever. Acho que devemos impressionar
o espírito dos jovens com a forma boa da linguagem e não com a menos correta. Os
“textos para corrigir” sempre me pareceram uma espécie de método negativo de ensino.
E enquanto se exerce à larga esse método, vão-se os anos letivos e o aluno fica
sem saber redigir mediocremente uma carta ou uma petição.
Dos estudos a que se dedica, qual o que mais o atrai?
A Filologia ou,
mais precisamente, a Estilística. Estudar a linguagem e o estilo de um grande escritor
seduz-me fortemente.
Acha que seria possível escrever-se uma Gramática Brasileira da Língua Portuguesa?
Embora sem admitir,
de forma alguma, a tolice da “língua brasileira”, seria impossível negar que a língua
portuguesa, transplantada para o Brasil, ganhou muitas características próprias.
Há, assim, numerosos fatos peculiares ao português falado nesta parte da América,
e talvez já seja tempo de procurarmos sistematiza-los, para que possam ser devidamente
conhecidos, estudados e, se for o caso, respeitados. Tanto no vocabulário como na
sintaxe, a língua que falamos aqui tem modalidades típicas, algumas de sabor muito
especial, que devem ser levadas em conta, do mesmo modo que as formas do português
falado em Portugal. Essa gramática que você imagina e que a meu ver já podia, de
fato, ser escrita, viria fixar muita coisa que, por flutuante, dificulta, entre
nós, o ensino do Português.
Daí passamos a falar de outros assuntos, e indago, então, de Aurélio, se é
partidário, em literatura, do estilista, ou se pensa que o escrever mal não tem
importância, desde que as ideias do autor sejam boas ou o livro possa valer por
outras qualidades.
Não admito, de
forma alguma, o estilista pelo estilista. Mas admiro e prezo, em quem escreve, a
preocupação, o cuidado com o estilo. Pergunta-me você se o estilo não é secundário,
desde que as ideias sejam boas. Ora, de boas ideias anda o mundo cheio , como o
inferno de boas intenções... Escrever mal é exprimir de modo imperfeito o pensamento
e, assim, aquilo que talvez fosse uma boa ideia nem chega a ser boa ideia. Isto
não quer dizer, entretanto, que justifique o estilista que constrói no vácuo e se
limita a fazer meros jogos vocabulares. A palavra ajustada ao pensamento, e mais
o ritmo, a harmonia, a originalidade, é que fazem, a meu ver, a maneira dos grandes
escritores. [2]
Aceita a teoria dos que pretendem escrever como falam?
Claro que não.
Literariamente, é impossível escrever como falamos, e a rigor nenhum escritor faz
isso, o que de resto se compreende, pois falar e escrever são coisas distintas.
Enquanto falar é um ato natural, escrever representa sempre uma atitude. Além disso,
quem fala completa, muitas vezes, a ideia com os gestos, sublinha a intenção com
diferentes entonações de voz, volta, repete, usa enfim de vários recursos de que
não pode nem deve servir-se ao escrever. A página escrita tem, assim, de valer por
si mesma, desajudada de qualquer elemento subsidiário. Mas não é só: note que falamos
geralmente depressa, pois o interlocutor não poderia esperar que achássemos a expressão
justa, nem que ficássemos pensando até encontrar o melhor modo de construir a frase.
Na conversa tudo é improvisado e visa ao momento que passa. Ao escrever, porém,
em geral temos tempo, visamos não ao efêmero, mas ao permanente, e podemos arrumar
melhor as ideias, aperfeiçoar a construção, procurar o termo exato. Por tudo isto,
o escritor que pretendesse escrever como fala não poderia produzir senão algumas
páginas chochas, inconsistentes, sem qualquer das qualidades de permanência que
em geral se exigem dos escritos literários. Isto não quer dizer, no entanto, que
não seja partidário de maior aproximação entre a língua literária e a língua falada,
sobretudo nos diálogos, que devem, tanto quanto possível, refletir a espontaneidade
com que se fala. Nos livros de ficção os personagens devem expressar-se como em
geral falam as pessoas de seu meio, sem ir o autor – está claro – ao ponto de sacrificar
à exatidão as qualidades artísticas do estilo. Pois é preciso não nos esquecermos
de que mesmo na boca dos personagens a língua literária é recriação e não fotografia...
Não aprecio, assim, os autores que, por um conceito infra-realista da literatura,
fazem os seus personagens dizerem dotô, coroné etc.
Que acha da linguagem de alguns autores modernistas, como, por exemplo, Mário
de Andrade e Antônio de Alcântara Machado?
Tanto o autor
de Belazarte como o contista de Brás, Bexiga e Barra Funda trouxeram,
indiscutivelmente, contribuição preciosa à literatura brasileira. Mas do ponto de
vista da linguagem, a meu ver, não se sustentarão. Alcântara Machado morreu muito
moço, e não se sabe que rumos lhe indicaria sua lúcida inteligência. Quanto a Mário
de Andrade, se é verdade que abandonou os exageros do verdadeiro esperanto em que
está escrito, por exemplo, o Macunaíma, conservou até o fim numerosos cacoetes
modernistas e a preocupação de criar uma linguagem a que talvez chamasse brasileira,
mas que é dele, só dele, pois seus livros não estão segundo a fala geral do país
nem segundo nenhuma fala regional. E é isso, precisamente, que os prejudica. E note
que quanto mais nos distanciamos, no tempo, do admirável polígrafo que foi o escritor
paulista, mais dificuldade teremos em ler os seus livros. É que a linguagem falada,
de que ele procurou aproximar demasiadamente seu estilo, enxertando-o, ainda, de
regionalismos de todos os Estados do Brasil e de eruditismos e desconcertantes preciosismos
de invenção própria, é uma linguagem que se altera com extrema facilidade. No início
do movimento modernista, para fazer barulho, escandalizar o burguês, sacudir o ambiente,
admito que se usasse, em entrevistas, conferências ou artigos de jornal, de uma
linguagem daquelas. Mas passado esse instante, não; a não ser por pilhéria e em
tom familiar. No entanto, o grande Mário não expurgou bastante nem mesmo seus últimos
livros desses defeitos, o que, sobretudo num pais mal alfabetizado como o nosso,
constitui verdadeiro desserviço ao ensino e à cultura. Frases como “Fulano se zangou
com”, “eu sube, “Fazem dez anos”, frequentes na obra do autor de admirável livro
de ensaios que é O Empalhador de Passarinho, só podem causar confusão no
espírito de leitores menos avisados. Prova de que sua maneira de escrever era personalíssima
é que não fez escola, não deixou imitadores, a não ser o seu xará Mário Neme. Criada
com certa pretensão de base científica, a linguagem do escritor que, cultivando
tantos gêneros, em nenhum foi medíocre, era, afinal de contas, anticientífica.
Autor de um excelente ensaio sobre “Linguagem e estilo de Eça de Queirós”,
incluído no Livro do Centenário, publicado em 1945 pela editora Dois Mundos,
e de outro sobre “Linguagem e estilo de Machado de Assis”, saído na Revista do Brasil,
é sabido que Aurélio Buarque de Holanda realizou estudo semelhante em relação ao
grande escritor regionalista do Rio Grande do Sul J. Simões Lopes Neto, estudo que
enriquecerá, juntamente com um prefácio de Augusto Meyer e um posfácio de Carlos
Reverbel, a nova edição do Contos Gauchescos e Lendas do Sul, que em breve
será lançada pela Editora Globo. Seria, pois curioso indagar do autor de Dois
Mundos por que motivo se interessou pelo prosador gaúcho e que aspecto mais
o impressionou em as obra.
Já uma vez contei
isso numa entrevista para a própria Revista do Globo. Vi pela primeira vez
referência a Simões Lopes Neto em fins de 1938, na Revista Acadêmica, que
estava fazendo um inquérito a respeito dos dez maiores contos brasileiros. Então
consegui emprestada a edição de 1926 dos Contos Gauchescos e Lendas do Sul.
Com o auxílio de consultas, fui vencendo, aos poucos, os obstáculos do vocabulário
simoneano. Não tardou que me entusiasmasse pelo grande autor. Tanto assim que cheguei
a transcrever na Revista do Brasil treze dos seus contos, cerca da metade
da matéria enfeixada em seus dois volumes. Alguns amigos não podiam compreender
tão viva admiração a Simões Lopes Neto, não lhe atribuindo a grande importância
que eu lhe dava no quadro geral da literatura brasileira. Isso, em parte pelo menos,
por causa da falta de um bom glossário... Meu entusiasmo, porém, foi crescendo sempre.
Quando tive notícias, em fins de 1943, por intermédio de Augusto Meyer, de que se
achava em provas uma reedição de Contos Gauchescos e Lendas do Sul, pedi-lhe
que se entendesse com os editores, a fim de que me incumbissem de anotar o livro,
organizando, ao mesmo tempo, em vista da urgência do lançamento da edição. Acontece,
porém, que, recebidas as provas, a releitura daqueles contos convenceu-me de que
não seria possível realizar em tão breve prazo a minha tarefa. E sucessivas releituras
me foram revelando sempre novos aspectos dessa grande obra. Assim, resolvi fazer,
em vez de simples anotações, um estudo introdutório a respeito da linguagem e estilo
de Simões Lopes Neto, um glossário bem mais amplo do que a princípio imaginara e
a anotação, ao pé das páginas, das variantes verificadas na segunda das edições
anteriores em relação à primeira, única feita em vida do autor. O trabalho foi-se
estendendo, foi tomando tempo, exigindo sempre novas leituras já agora não apenas
de Simões Lopes Neto, mas de grande número de autores que me foi necessário citar.
A introdução, que eu imaginara de começo ir a umas vinte páginas datilografadas,
estendeu-se por mais de cem. Noites e noites, e dias também, foram consumidos assim,
com inevitáveis interrupções, resultantes de minhas outras atividades, mas que somados
à minha enervante minúcia na composição do trabalho, quase esgotaram a paciência
dos editores e a saúde já frágil de D. Francisca Meireles Simões Lopes, viúva do
autor. Mas agora, felizmente o livro está para sair. [3]
Não gostaria de realizar estudos semelhantes em relação ao outros escritores
brasileiros?
Gostaria
muito; falta-me é tempo.
Que autores, especialmente, teria prazer em estudar do ponto de vista estilístico?
Entre outros,
dos vivos, Gilberto Freyre, J. Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, José Lins do Rego;
e entre os mortos, Euclides da Cunha e o mais original e estranho dos nossos poetas:
Augusto dos Anjos.
Evidentemente estávamos abusando da boa vontade do nosso entrevistado. Era
urgente por fim à conversa, ainda que para tanto tivéssemos de desprezar certas
perguntas que levávamos preparadas. Foi o que decidimos fazer e, para concluir,
indagamos: Por que motivo, depois de Dois Mundos, nada mais publicou no terreno
da ficção?
Tenho alguns
contos esboçados, mas a ficção, pelo menos no meu caso, exige um certo ócio. É preciso
observar, captar, trabalhar, em seguida, a narrativa. Ora, esse ócio ultimamente
tem-me faltado de todo. Magistério, o dicionário, traduções, revisão de originais
e de provas, artigos, absorvem-me todas as horas disponíveis, o que me faz dar razão
a João Ribeiro, quando nas Cartas Devolvidas, assinala o prejuízo
que podem representar para as atividades puramente artísticas essas profissões digamos
“para-literárias”. Em vez de favorecerem o trabalho de criação artística, as profissões
que pelo menos no Brasil andam quase sempre ligadas à de escritor – jornalismo,
o professorado, a magistratura, a ciência, a política – por paradoxal que pareça,
são mais nocivas que benéficas ao trabalho de criação artísticas. São profissões
que – como observa João Ribeiro – fatigam o espírito e lhe sorvem todas as forças.
NOTAS
1. Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, organizado
por Hidelbrando de Lima e Gustavo Barroso e revisto na parte geral por Manuel Bandeira
e José Batista da Luz (9ª edição). Inteiramente revista e consideravelmente aumentada
– sobretudo na parte de brasileirismos – por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.
Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira S/A, 1951. Depois dessa edição, ou
simultaneamente com ela, dedicou-se lexicógrafo à elaboração do Novo Dicionário
da Língua Portuguesa, publicado em 1975 pela Editora Nova Fronteira, e que ficaria
conhecido como Novo Aurélio, ou Aurelião, nomes que viraram substantivos comuns,
como sinônimos do dicionário.
2. Muitos anos depois dessa entrevista, no seu discurso de posse na Academia,
onde, na cadeira nº 30, sucedeu ao Prof. A. Austregésilo, lembraria Aurélio Buarque
de Holanda: “Servir a ideia à frase – já havia dito Garret – é vício de ignorantes
e impostores, os quais primeiro escolhem as palavras depois buscam o pensamento,
como um pintor que fizera um retrato antes de ver o original”
3. Só sairia quatro anos mais tarde: J. Simões Lopes Neto. Contos Gauchescos
e Lendas do Sul. Edição crítica. Com introdução, variantes, notas e glossário por
Aurélio Buarque de Holanda. Prefácio e notas de Augusto Meyer. Posfácio de Carlos
Reverbel. 3ª edição. Porto Alegre, Editora Globo, 1953.
Entrevista
realizada por Homero Senna, publicado originalmente na Revista do Globo # 489, de 20/08/1949, e republicada no livro República
das letras (3ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996). Edição preparada
por Floriano Martins. Página ilustrada com obras de Paul Delvaux (Bélgica,
1897-1994), artista convidado da presente edição.
*****
Agulha Revista de Cultura
Número 123 | Novembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
Nenhum comentário:
Postar um comentário