quarta-feira, 21 de novembro de 2018

HOMERO SENNA CONVERSA COM MANUEL BANDEIRA


Ao completar, no dia 19 de abril de 1946, sessenta anos de idade, recebeu Manuel Bandeira uma das maiores homenagens que no Brasil tem sido tributadas em vida a um escritor. Nos suplementos de todos os grandes jornais cariocas vários críticos e ensaístas ocuparam-se de sua obra. A essas homenagens associou-se a Academia, de que Bandeira faz parte desde 1940, quando foi eleito na vaga de Luís Guimarães Filho, tendo assim as comemorações do seu aniversário revestido, naquele ano o caráter de uma consagração. E afinal nada mais justo, pois Bandeira é de fato a maior figura da poesia brasileira atual. [1]
Pernambucano de nascimento, veio menino para o Rio, tendo estado depois em São Paulo, como aluno da Escola Politécnica, quando adoeceu e foi obrigado a abandonar os estudos.
Enfermo, entre a vida e a morte (num tempo em que não havia ainda estreptomicina), iniciou sua peregrinação pelas estações de cura, em busca de ares que lhe purificassem os pulmões. Esteve então em Campanha, no sul de Minas (onde, num ingênuo jornalzinho de quatro páginas, foram publicados seus primeiros versos), em Teresópolis, em Quixeramobim, no interior do Ceará, e por fim em Clavadel, na Suíça, lugar também procurado anos antes, e pelo mesmo motivo, por Antônio Nobre, e onde Bandeira iria conhecer Paul Eugene Grindel, que depois, sob o pseudônimo de Paul Éluard, se tornaria grande nome da poesia francesa. Sobrevindo a guerra de 14, voltou para o Brasil, passando a residir então outra vez com a família nesta capital, de onde pouco tem saído. Aqui morou em vários lugares: no Leme, onde o foi conhecer Ribeiro Couto (v. De Menino Doente a Rei de Pasárgada; no Curvelo, onde habitava “um magnífico rés-do-chão acavalado sobre três pisos de morro abaixo”; na Lapa (Lapa do Desterro), num beco que depois cantou num dístico “cheio ele elipses mentais” (“Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? - O que eu vejo é o beco”); no Flamengo, num edifício de extensas galerias e muitos elevadores, e por último num apartamento na Esplanada, escolhido a propósito, a dois passos da Faculdade Nacional de Filosofia, de que é professor, e da Academia, a cujas sessões não falta.
Literariamente, tendo começado simbolista, com a publicação, em 1917, de A cinza das horas, não demorou a emprestar todo o seu apoio ao movimento modernista irrompido em São Paulo por volta de 1920 e do qual resultou a famosa Semana de Arte Moderna. Aliás, muito antes de se falar aqui nestas coisas, já Bandeira, em seus versos, praticava certas liberdades que se tornariam postulados da nova corrente, razão por que é chamado o “São João Batista do Modernismo”. Sua profissão de fé modernista está feita num excelente poema em que se confessa definitivamente saturado “do lirismo comedido, do lirismo bem-comportado”, e declara não querer mais saber “do lirismo que não é libertação”, Nascesse, de resto, em qualquer outro tempo, sob o signo de não importa que escola literária, e haveria de ser o mesmo grande poeta, pois a poesia é nele uma força irreprimível.
Espírito jovial, apesar de tudo o que a vida lhe tem feito sofrer (“‘tenho todos os motivos menos um de ser triste”), gosta Bandeira às vezes de brincar com a poesia, em jogos onomásticos e versos de circunstância (v, Mafuá do malungo) ou mesmo em poemas que inclui depois em suas Poesias Completas. Isto lhe tem valido muitas incompreensões, que de modo algum o afetam (“aliás, ataques puramente literários nunca me envenenaram”), mas das quais certa ocasião se defendeu, escrevendo o seguinte, que é sempre oportuno citar: “Muita gente pensa que o poema é como aquele trapezista do conto de Kafka, um homem diferente dos outros, um sujeito que vive nas nuvens. e almoça e janta sublime, Essa gente não admite que o poeta brinque. Daí a incompreensão com leem certos poemas em que o poeta não faz mais do que voltar a certos moods da infância”. [2] Foi aliás, com um retorno à infância do poeta que se iniciou esta entrevista:
O mais antigo sinal de interesse pela poesia em minha vida data dos nove anos, em Recife. Lembro-me de, em casa de meu avô materno, o Dr. Antônio José da Costa Ribeiro, procurar o Jornal do Recife para ler a poesia que diariamente a folha publicava na primeira página. E me recordo até hoje de dois nomes que frequentemente apareciam assinando esses versos -Áurea Pires e Henrique Soído. Mas comecei a fazer ver­sos no Rio, para onde vim em 1896. Tinha, pois, dez anos. Quadrilhas satíricas, comentando os namoros de meus tios maternos. Não me recordo dos primeiros versos “sérios” que fiz. Lembro-me que, impressionado por um retrato de Chateaubriand, cujos Mártires admirava grandemente, cometi um soneto em alexandrinos, onde havia este verso incrível: “Da que altívolo engenho anima mente altiva”. Verso que, no entanto me é caro até hoje, porque me traz à memória afetiva toda aquela quadra da adolescência em que andei me iniciando nos gongóricos portugueses (na falta de Gôngora, que eu não conhecia, valia-me de Filinto Elísio, responsável por aquele meu verso). No Pedro II, onde fazia o meu curso de bacharel em Ciências e Letras, poetei calamitosamente, sustentei um duelo sonetístico com o Lucilo Bueno, colaborei num jornalzinho colegial editado por ele, mas a minha estreia na grande imprensa foi no Correio da Manhã. A folha de Edmundo Bittencourt costumava publicar na primeira página um soneto envolvido em cercadura art nouveau. A minha maior ambição naquele tempo era ver um soneto meu na página do Correio da Manhã. Manipulei laboriosamente um soneto em alexandrinos, tremendamente sensual, e mandei-o ao Antônio Sales, que era redator influente no jornal. Todos os dias comprava o Correio com o coração palpitante de emoção. Quinze dias se passaram e nada de soneto. Murchei e deixei de comprar o jornal. Um belo dia lá estava o soneto, na primeira página, com a cercadura art nouveau. Antônio Sales nunca soube que deu essa esplêndida alegria a um rapazola de dezesseis anos. Alegria toda pessoal, privadíssima,  porque não ousei falar dela em casa e o soneto estava assinado com pseudônimo. [3]

Faz uma pausa, mas logo prossegue:

Terminado o meu curso do Pedro II, fui para São Paulo estudar Arquitetura na Escola Politécnica daquela cidade. Durante o ano e meio que lá estive só me lembro de ter feito uma poesia, ainda um soneto. Não me julgava destinado à poesia, tomava a minha veia versificadora como uma simples habilidade. O que eu queria era ser arquiteto e não só me matriculei na Politécnica como no Liceu de Artes e Ofícios. Neste desenhava à mão livre e fazia aquarelas, porque eu desejava ser um arquiteto como Viollet-le-Duc, um arquiteto que soubesse desenhar, um arquiteto como são hoje Lúcio Costa, Carlos e Alcides Rocha. Tinha aspirações excessivas, construir casas, remodelar cidades, encher o Rio ou o Recife de edifícios bonitos como Ramos de Azevedo fizera em São Paulo… Tudo isso foi por água abaixo com a doença que me prostrou aos dezoito anos. Interrompi para sempre os estudos, andei pelo interior verificando a verdade daquele paradoxo do João da Ega: ‘Não há nada mais reles do que um bom clima’. [4] Então, na maior desesperança, a poesia voltou como um anjo e sentou-se ao pé mim. Imobilizado largos anos numa chaise-longue, consolava-me daquela forçada inação escrevendo versos, que não passavam de um desabafo das minhas tristezas. Não pensava em publicá-los em livro; só o fiz em 1917 e a epígrafe que pus ao meu primeiro volume de poesia - A Cinza das Horas é bem significativa. [5] Eram três versos de uma canção de Maeterlinck:

Mau âme eu est triste à Ia fin
Elle est triste enfin d’être lasse
Elle est lasse enfin d’être en vain.

Foi precisamente para me dar a ilusão de ‘não existir em vão’ que comecei a publicar os meus versos. O livrinho, impresso nas oficinas do Jornal do Commercio, recebeu pala­vras animadoras de João Ribeiro, Castro Meneses, Ribeiro Couto, Américo Facó, José Oiticica, Flecha Ribeiro e outros. Não morri, com surpresa dos médicos e de mim próprio, e atrás do primeiro livro vieram outros. Quando dei por mim estava, sem querer, encarreirado na literatura …

Quais os autores nacionais e estrangeiros que maior influência exerceram em sua formação intelectual?

Minhas maiores influências talvez tenham sido Camões, Antônio Nobre e Guillaume Apollinaire. [6]

A seguir, procuro fazer uma frase de efeito, e indago do poeta quando sentiu ele que seu destino era a Poesia, que esta o acompanharia como um sombra pelo resto da vida. Mas o cantor de Carnaval negaceia:

Jamais senti que meu destino fosse a Poesia, sobretudo assim com esse P maiúsculo que pressinto na sua pergunta. Creio que se fui poeta em alguns momentos, só o fui por incidente patológico ou passional.

E sempre foi bem tratado pela crítica? Bandeira sorri, pensa um pouco e responde:

Nem sempre… Quando publiquei, por exemplo, o meu segundo livro - Carnaval - o crítico de uma revista importante, a Revista do Brasil, na fase dirigida por Monteiro Lobato, limitou-se a transcrever o primeiro verso da coleção, o qual não passava de um grito de evasão de um doente recluso e perfeitamente abstêmio: “Quero beber, cantar asneiras”, acrescentou apenas este comentário ferino: “O Sr. Manuel Bandeira conseguiu plenamente o que queria.” [7] O remoque não me doeu nem me fez mossa. Ao contrário, até achei graça nele, porque de fato estava engraçado, Tive para reconfortar-me, além de alguns juízos honrosíssimos, a simpatia e o apreço dos rapazes que poucos anos depois iniciavam o movimento de renovação literária conhecido em nossas letras pelo nome de Modernismo. A simpatia acordada nesses rapazes me abriu os olhos, mostrando-me que na expressão genuína de minhas tristes experiências eu podia levar a outros uma mensagem de fraternidade humana. Desde então senti que podia ficar em paz com o meu destino, já que passara aquele cansaço de existir em vão, o mais pungente dos cansaços.

E a arquitetura?

Ficou no tinteiro. Desforrei-me, porém, de minhas arquiteturas malogradas reconstruindo uma cidade da Pérsia antiga - Pasárgada. Quando traduzia o meu Xenofonte, na classe de grego do Pedro II, li umas linhas sobre uma cidade fundada por Ciro, o antigo, nas montanhas do sul da Pérsia, para lá passar os verões, e a minha imaginação de adolescente começou a trabalhar sobre isso, criando um refúgio de delícias, um símbolo de evasão da “vida besta”. Mais de vinte anos depois, na minha casa da Rua do Curvelo, num momento de profundo desânimo, da mais aguda sensação de tudo que eu não fizera na vida por motivo da minha doença, saiu-me do subconsciente esse grito estapafúrdio: “Vou-me embora pra Pasárgada!” Senti que era a primeira célula de um poema. Tentei fazê-Io mas fracassei. Tempos depois, nova crise de desalento, desabafado no mesmo grito. Mas desta vez o poema saltou como por encanto.

Acha que teria dado um bom arquiteto?

Acho que sim, pelo menos do ponto de vista funcional.

Mas pode-se dizer que tivesse vocação para essa profissão?

Não creio que a arquitetura fosse a minha vocação. Em rigor, não sinto, nunca senti vocação para coisa nenhuma, o que considero uma infelicidade.

Mário de Andrade chamou certa vez Manuel Bandeira de “São João Batista do Modernismo”. O apelido pegou, e até o Sr, Henrique Perdigão o cita, ao tratar, no seu Dicionário Universal de Literatura, do poeta pernambucano. Assim, a pergunta que tinha engatilhada talvez fosse desnecessária, ou ingênua. Era evidente que Bandeira não poderia falar mal do movimento modernista. Mesmo assim, arrisquei: A reação modernista foi útil ou perniciosa à literatura à literatura nacional? Acha que o movimento foi bem orientado?

A reação modernista para nós foi utilíssima. Deu-nos o verso livre e maior liberdade de inspiração e expressão tanto na poesia como na prosa. As orientações foram muitas e em alguns pontos contraditórias: a que me parecia melhor era a que procurava conciliar as duas forças em eterno conflito na vida - tradição e renovação.

Sempre desejei saber se Manuel Bandeira tinha tomado parte ativa no Modernismo, ou se se limitara a ficar de longe, no “sereno”, embora emprestando ao movimento o prestígio do seu nome. Pergunto-lhe, por isso, se foi a São Paulo por ocasião da Semana de Arte Moderna.

Não fui, não -

Responde-me com sua fala simpática de pernambucano. E como que adivinhando meu pensamento, acrescenta:

Mas nem por isso deixei de apoiar sempre o movimento. Ronald de Carvalho leu, aliás, nessa época, numa das sessões do Teatro Municipal, o meu poema “Os Sapos” que, por ser uma sátira contra os maus parnasianos, vinha a propósito, mas foi terrivelmente vaiado pela assistência. [8]

Acha que a poesia se tornará cada vez mais livre, ou a tendência será para voltarmos aos moldes antigos?

É preciso distinguir duas espécies de poesia: a subjetiva e a de ação social. A meu ver, a primeira se tornará cada vez mais livre, ao passo que a segunda, tendo de exprimir o sentimento coletivo de uma maneira clara, ao alcance de todos, deve ser, na sua forma, tradicional, mnemônica e portanto, de versos medidos e rimados. O que não quer dizer que a outra não possa ser feita, também com métrica e rima… A alguém que se admirou de eu gostar, em poesia, das formas fixas, já uma vez respondi: gosto das formas fixas porque elas são padrões estróficos de raro, vivazes, mnemônicos; porque satisfazem o meu gosto de ordem, de disciplina. Ligou-se a elas, injustamente a meu, um certo “part-pris” antiparnasiano. Ora, nas mãos de um grande poeta nunca elas foram exibição de virtuosismo. Basta dizer que quase toda obra de Villon é de baladas.

O estilo de Manuel Bandeira sempre me pareceu o melhor possível. Seus versos e sua prosa têm uma elasticidade, uma graça e uma justeza de palavras que só o perfeito domínio do idioma dá ao escritor. E como a questão do “escrever mal”, ou pelo menos do escrever espontaneamente e sem excessivos cuidados de forma, vem sendo agora outra vez discutida com insistência, julguei oportuno saber se ele é partidário, em literatura, do estilista, ou se acha que isso de escrever mal não tem importância. A propósito, diz-me:

Acho que escrever bem tem a maior importância e todo escritor que se preze tem o dever de procurar fazê-lo. Tudo está em saber o que é escrever bem… Já não ouvi dizer que Gilberto Freire e José Lins do Rego escrevem mal? Não digo escrevam sempre bem, mas isso… Renan era para os homens de 1900 o estilista número 1: pois leia as observações do journal, de Gide, a respeito da linguagem de Renan… [9]

Por que motivo resolveu entrar para a Academia?

Entrei para a Academia porque fui chamado por excelentes amigos que já eram de lá (Ribeiro Couto, Múcio Leão, Cassiano Ricardo, Alceu Amoroso Lima, Olegário Mariano, Levi Carneiro); porque vi na minha possível entrada oportunidade de conviver mais assiduamente com mestres admiráveis como Roquete Pinto, Taunay, Oliveira Viana, Rodolfo Garcia, Aluísio de Castro, Clementino Fraga; porque, se não tenho preconceitos acadêmicos, também não os tenho antiacadêmicos.

E acha que a Academia vem cumprindo a finalidade para que foi criada?

A Academia tem por fim, segundo os estatutos de 1897, “a cultura da língua e da literatura”. Creio que o tem cumprido, não só pela atividade de seus membros, como pelos prêmios distribuídos e pelas numerosas reedições de obras importantes esgotadas e primeiras impressões de outras que ainda estavam inéditas, como, por exemplo, a Prosopopéia, de Bento Teixeira, as Obras, de Gregório de Matos, O Peregrino da América, as Cartas. de Nóbrega e Anchieta, o Tácito Português, de Francisco Manuel de Melo, o Florilégio de Varnhagen etc.

Devem os escritores novos procurar a Academia?

Não vejo razão para que não o façam, uma vez que ela já tem premiado tantos livros de espírito e técnica de vanguarda.

O telefone toca lá dentro e a conversa se interrompe por uns instantes. O repórter se levanta, olha os livros nas estantes. Há livros por todo canto, no apartamento de Manuel Bandeira [10] e estava admirando a linda cabeça de Gonçalves Dias que Portinari pintou para a edição das Obras Completas do poeta maranhense que o autor das Crônicas da Província do Brasil preparou para a Companhia Editora Nacional, quando o entrevistado voltou. Mas já aí a palestra muda de rumo e de tom. Professor da Faculdade Nacional de Filosofia, onde ensina Literatura hispano-americana, seria interessante apurar se o poeta gosta de lecionar.

Gosto, mas detesto as outras atividades de professor: julgar provas, examinar, assistir às sessões da Congregação etc.

De modo geral, interessam-se os alunos pela matéria?

Ainda não pude descobrir se as minhas aulas ou a matéria de minhas aulas interessam aos alunos. Às vezes parece que sim; falo, por exemplo, numa aula, da vida de Rubén Dario: prometo na lição seguinte analisar a obra do poeta, certo de que a turma, que vi muito atenta às minhas palavras, comparecerá inteira; fico desapontado quando verifico que muitos alunos não estão presentes.

É verdade que é grande apreciador de música?

A música não é para mim um simples passatempo; é uma necessidade. Privado dela me sinto infeliz de todo. [11]

E quais são os seus compositores prediletos?

Creio que são Bach, Haydn e Mozart. Mas sinto grande interesse, sobretudo interesse intelectual, pelos modernos, entre os quais um dos prediletos é Prokofief. Dos nossos compositores prefiro os modernos: Vila, Mignone, Camargo Guarnieri, Gnattali, Luis Cosme. Tenho, como você está vendo, rádio-vitrola. Não sou entendido, mas já li um livro inteiro para ficar conhecendo a estrutura da forma sonata, Houve tempo em que andei arranhando o violão, no qual cheguei a tocar, ainda que mal, o Rondó, de Aguado e - não se ria… – uma bourrée de Bach. Há uns quarenta anos, com grande dificuldade tirei por música ao piano e decorei meia dúzia de peças, algumas ainda hoje toco - os prelúdios 4 e 20 de Chopin, o Aveu do carnaval de Schumann e uma pecinha de Mac-Dowell.

E numa observação à parte:

O violão aliás, tem-me sido útil, pois nele é que tiro a melodia das músicas para as quais me pedem versos. Foi assim, por exemplo, que escrevi as palavras do Azulão de Jaime Ovalle.

Tem roda certa de amigos para o “papo”?

Não. Quando quero bater um bom “papo”, vou jantar com o Rodrigo (Rodrigo M. F. de Andrade).

Quais os seus poetas preferidos?

Já uma vez outro repórter me fez essa pergunta, a que por sinal é muito fácil responder. No Brasil, o poeta com sinto maiores afinidades é Carlos Drummond de Andrade. O poeta francês meu preferido é Villon. Português, Camões. Italiano, Dante. Nos outros países não tenho nenhuma predileção marcada: gosto igualmente de muitos. Assim, na Espanha os poetas do Siglo de Oro, no  Romantsmo, Becquer, entre os modernos Jorge Guillén, Antônio Machado, Juan Ramón Jiménez, Lorca, Alberti e outros. Na Inglaterra, entre os românticos, Keats; entre os modernos talvez Yeats; entre os hispano-americanos, Ruiz de Alarcón, Inés de Ia Cruz, Dario, Herrera y Reissig; os cubanos Nicolás Guillén, Florit, Ballagas; o equatoriano Jorge Carrera Andrade; os mexicanos López Velarde, Carlos Pellicer; o colombiano Porfirio Barba Jacob; o argentino José Hernández… Dezenas de outros, mas nenhuma predileção especial.

É sempre curioso apurar como escreve um poeta os seus poemas. Ou, em outras palavras, de que modo lhe acontecem os poemas. Tratando-se então, de Manuel Bandeira, essa questão aumenta ainda de importância, por ser ele hoje, segundo voz unânime, o maior poeta vivo do Brasil. Faço a pergunta e Bandeira responde-me prontamente:

Acontecem-me os poemas inesperadamente e às vezes mesmo fulminantemente. [12] De tal modo que a minha impressão a posteriori é que não fiz o poema: ele é que se fez em mim. Mesmo o que parece mais composto, Assim, A última canção do beco, Repare que são sete estrofes, cada estrofe de sete versos, cada verso de sete sílabas, Não houve em mim intenção de fazer assim e só dei conta disso dias depois de escrito o poema. [13]

De fato, abrindo o volume das suas Poesias Escolhidas (edição Pongetti), que o poeta acabara de me oferecer por causa do poema hors texte “Infância”, que eu desconhecia, posso verificar a coincidência a que se refere. Eis o poema:

Beco que cantei num dístico
Cheio de elipses mentais,
Beco das minhas tristezas.
Das minhas perplexidades
(Mas também dos meus amores
Dos meus beijos. dos meus sonhos)
Adeus para nunca mais!

É verdade que recebe muitos originais para ler e dar opinião?

Ai de mim! Vivo recebendo manuscritos. Que consultem sobre poesia, ainda vá lá! Mas sobre romances e contos?… Aos portadores destes gêneros vou logo dizendo: por que não procuram o Graciliano, O Zé Lins, o Otávio de Faria? Imagine que numa manhã fui despertado às sete horas pelo tilintar do telefone. Era um incipiente poeta desconhecido que, sem mais preâmbulo, me desfechou esta: “- O senhor pode ouvir um pardal novo?” Respondi que era cedo demais para ouvir pardais novos. Desde então chamo esses poetinhas “pardais novos”. Às vezes nem novos são. O tal do telefone já tinha 35 anos! Aliás, essas consultas me deixam perplexo. Não sei o que responder senão dizendo: leiam as Cartas a um jovem poeta, de Rilke. [14]

Gosta de morar no Rio?

Gosto, Aqui deitei raízes. Mas o Rio se me torna às vezes antipático no seu excessivo ruído, na legião de “cacetes” (merecem o outro nome, começando também por c e que eu não digo em homenagem ao meu amigo e mestre Aluísio de Castro), dos “cacetes” que estão em toda parte, surgem de toda parte…, Então tenho ganas de fugir, de me meter em qualquer cidadezinha do interior ou do litoral… Ubatuba, por exemplo.

Várias outras questões gostaria ainda de propor a Bandeira. Mas a conversa já ia longa e era preciso não abusar da paciência e boa vontade do poeta. Para concluir, então, perguntei-lhe: Tem escrito muita poesia nestes últimos tempos?

Pelo contrário. Há mais de ano que não faço versos, salvo duas brincadeiras onomásticas. Aliás, quase nunca procuro fazer versos; deixo que a carga de lirismo vá engrossando, engrossando, até romper minha habitual inércia; numa necessidade fatal de desabafo.

Noto, ainda, que há, nas suas Poesias Completas, inúmeros poemas datados de Petrópolis e Teresópolis, e Bandeira explica-me:

O isolamento fora do Rio, longe das minhas preocupações habituais, sempre foi para mim um estado propício à poesia. Eis o motivo de tantos poemas datados de Petrópolis e Teresópolis.

Quais são os poemas seus que prefere?

Os poemas meus que prefiro? Hum… É muito difícil responder. Já manifestei alguma preferência em mais de uma coletânea de Poesias Escolhidas. Em todo caso, assim de repen­te posso confessar certo fraco por Profundamente, Noite Morta, Evocação do Recife, Poema tirado de uma notícia de jornal, Poema de finados, O último poema, Cantiga, Momento num Café, Maçã, Canção de parada do Lucas, Canção do vento e da minha vida, Canção de muitas Marias, Última canção do beco, Piscina, Eu vi uma rosa, Brisa, Temas e voltas e o segundo Belo belo.

NOTAS
(1) Tais homenagens se repetiram, com a mesma ou talvez maior amplitude, em 1956 e 1966, ao completar o poeta 70 e 80 anos de idade, pois faleceu com 82 anos, aos 13 de outubro de 1968.
(2) Para epígrafe de seu Mafuá do Malungo. Bandeira confessou, certa vez, que gostaria de ter tomado as palavras de Alfonso Reyes, extraídas do curto prefácio que escreveu para o volume Cortesia (também versos de circunstância) aparecido simultaneamente com o seu. e no qual o escritor mexicano lamenta que se tenha perdido o bom costume de tomar a sério - o mejor en broma – os versos sociais , de álbuns de cortesia, observando então: Desde ahora te digo que quien sólo canta en dó de pecho no sabe cantar: que quienl sólo trata em versos para las cosas sublimes no vive Ia verdadera vida de la poesia y de lãs letras, sino que las lleva postizas como adorno para las fiestas.
3) Em 1946, em entrevista a Edmundo Lys, Bandeira voltaria a aludir a esse soneto, revelando não só o pseudônimo “impossível” com que o assinou - C. Creberquia, - mas também o texto dos quatorze alexandrinos laboriosamente manipulados:
Nasceste para o beijo e os êxtases divinos
Do amor, e és para o amor a heroína ideal.
Trazes disso estampado o vívido sinal
Na rubra tumidez dos lábios purpurinos.
Seios duros, em pé, lácteos e pequeninos
Larga boca sensual, largas ancas sensuais,
E em tudo essa volúpia e essa intuição do mal
Que há nos teus olhos, flor de aromas assassinos!
Ah, percorrer-te o corpo, a boca e os lábios cheios
De beijos a cair numa alegre sonata
- Beijos da boca aos pés, nas pernas e nos seios:
Enrubescer teu corpo ao férvido calor
Dos meus beijos de fogo a cobrir-te em cascata
- Ai meus sonhos de amor! Ai meus sonhos de amor!
(Andorinha, andorinha. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio, 1966, p.42)
4) Neste ponto, a memória do poeta o traiu, poi a boutade não é de João da Ega, mas sim de outro personagem de Eça de Queiroz - O Visconde Reinaldo, d’ O primo Basílio.
5) Numa ampla “Reportagem com Manuel Bandeira”, em quatro partes, publicada n’ O Jornal, do Rio, de 19 e 26 de setembro, 3, e 10 de outubro de 1948, mais tarde transcrita na revista Provincia de São Pedro, nº 13, e atualmente incluida na edição Aguilar, com o título de “República Literária”, observa Paulo Mendes Campos: “Sabe-se que o primeiro livro do poeta teria sido os Poemetos melancólicos: os senhores França Amado & Companhia, editores de Coimbra, não respondem à carta em que Manuel Bandeira propunha o livro. O poeta estava em Clavadel, na Suiça, e com a guerra de 1914, deixou no sanatório o manuscrito dos Poemetos melancólicos, não tendo, mais tarde, conseguido refazê-lo inteiramente”. Já Francisco de Assis Barbosa, na excelente notícia biográficado poeta - Milagre de um vida, que escreveu especialmente para a edição Aguilart, assim se refere a esse frustrado primeiro livro de Bandeira: “foi em Cladavel que Manuel Bandeira começou a preocupar-se em publicar um livro reunindo as suas produções poéticas. Poemetos melancólicos foi o título escolhido. Separou três poemas - a Epigrafe (aquela da Cinza das horas), Soneto a Camões e Paisagem noturna - e escreveu a Eugênio de Castro, que conhecia apenas de leitura e era, dentre os portugueses, um dos seus poetas da sua predileção, despachando a carta para Lisboa aos cuidados dos editores França Amado & Cia. e ficou ingenuamente (expressão dele próprio) esperando pela resposta”. Esta não veio jamais.
6) Na reportagem acima citada, refere Paulo Mendes Campos que, tendo indagado de Bandeira quais os poetas preferidos nos temoos d’ A cinza das horas, obteve a seguinte resposta: “Camões, preferido de sempre e até hoje na língua portuguesa, Antonio Nobre, Raimudo Correia e Vicente de Carvalho, Musset, Sully Prudhomme, Herédia, Maeterlinck”(…) Mas há que assinalar como influência a música e os textos de Schubert, tanto que quase pus como epígrafe do livro a frase inicial do lied Der Leirmann. A esses, Bandeira, mais adiante, acrescentaria Eugênio de Castro, outro preferido do tempo d’A cinza das horas que se escquecera de mencinar. E ainda sobre influências, confidenciou ele a Paulo Mendes Campos: “As rimas toantes não me foram sugeridas pela poesia espanhola, que eu desconhecia então (1917), mas por Charles de Guérin, que li muito por volta de 1907. Um dos grandes preferidos do tempo do Carnaval: Lenau. e mais Apollinair. Na música Schumann”. No Itinerário de Passárgada, observaria o poeta: “as influências assinaladas anteriormente há que acrescentar essa da atmosfera de Petrópolis. Dos vinte e quatro poemas que perfazem O ritmo dissoluto, oito foram escritos na Mosela. Mas a ação de Petrópolis só se exerce quando estou lá, ação lenitiva, que atuando sobre a minha sensibilidade, logo me comunica aos versos em manso ritmo de aceitação” (pp 71/72).
7) Por curiosidade, procuramos localizar na Revista do Brasil, esse comentário crítico. Mas nossa busca - realizada na excelente coleção de Plinio Doyle - resultou infrutífera. Aliás, no Itinerário de Passárgada, Bandeira atribui essa crítica a ‘certa revista’ ,sem revelar qual seja, e transcreve outro comentário, mais extenso e igualmente ferino, que lhe fez, este sim, a Revista do Brasil (obr cit., p. 55).
8) Em sua memórias, confidenciou o poeta: “Pouco me deve o movimento, o que eu devo a ele é enorme. Não só por intermédio dele vim a tomar conhecimento da arte de vanguarda da Europa (da literatura e também das artes plásticas e da música), como me vi sempre estimulado pela aura de simpática que me vinha do grupo paulista (Itinerário de Passárgada, p. 67).
9) As observações de são de 27 de junho de 1932 e acham-se à p. 134 da edição NRF (Bibliotheque de la Pleiade). Ainda sobre o problema do estilo, no Itinerário de Passárgada lê-se o seguinte: “ Cedo compreendi que o bom fraseado não é o fraseado redondo, mas aquele em que cada palavra está no seu lugar exato e cada palavra tem uma função prefisa, de caráter intelectivo ou puramente musical, e não serve senão a palavra cujos fonemas fazem vibrar cada parcela da frase por suas ressonâncias anteriores e posteriores” (p. 43). É, ampliado, o conceito de Swift, citado por Gilberto Amado e segundo o qual só há uma definição para estilo: “A palavra exata no lugar devido”. A propósito, aliás, observa Mark Twain: “A diferença entre a palavra certa e a palavra quase certa é a diferença que existe entre um relâmpago e um vaga-lume (Apud GA O enigma de Capitu, in Jornal do Brasil de 6-4-1968).;
10) Por morte do poeta, sua biblioteca foi doada à Academia Brasileira de |Letras.
11) “Na verdade, faço versos porque não sei fazer música” - confessou o poeta no Itinerário de Passárgada (p.43).
12) A Paulo Mendes Campos, revelou Bandeira que o soneto Renúnciaque fecha A cinza das horas e é, cronologicamente, o seu primeiro poema, dentre os incluidos nesse livro, foi feito numa crise da doença, com 40 grausde febre, num estado de subdelírio noturno. Tendo, aliás, em carta a Mario de Andrade, aludido a esses estados de transe em que às vezes lhe acontecm os poema, o escritor paulista estranhou que uma pessoa com 40 graus de febre, “vômitos, suores frios, escarros de sangue”, fosse se lembrar de escrever um poema, “fazer arte que tem catorze versos, rimas em lugares certos, tantas sílabas para cada verso”. E bandeira observa, em nota à carta do amigo: Tive de explicar a Mário que ‘não me lembrei’ de escrever o soneto, não quis escrever coisa nenhuma: o soneto é se organizou em mim na excitação do subdelírio. O fato de ser um poema “que tem catorze versos, rimas em lugares certos, tantas silabas pra cada verso”, não tem, pelo menos para mim, a mínima importância”. (Cartas de Mario de Andrade a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro, Organização Simões Editora, 1958, pp. 47-48). “Palinódia” - confessou também o poeta a Paulo Mendes Campos - “é a tentativa frustrada de reconstituir um poema feito em sonho. Ao despertar, só me lembrava dos quatro últimos versos: “…não és só / Senão prima de prima / Prima-dona de prima / primeva”. Muito curiosa, igualmente é a gênese do soneto O lutador: “Ouvi um dia de minha prima Maria do Carmo do Cristo Rei, monja carmelita, a narrativa de viagem que lhe fizeram umas irmãs peruanas, de volta de uma peregrinação a Ávila, onde viram as relíquias da reformadora do Carmelo. Naturalmente falaram com unção do coração transverberado da grande santa. A palavra ‘transverberado’ impressionou-me fundamente. Passei o resto do dia pensando nela, mas sem nenhuma ideia de poema. No dia seguinte de manhã acordo dom o soneto pronto na cabeça, com título e tudo”. (Itinerário de Passárgada,o. 124).
13) Nas suas memórias, conta-nos Bandeira como o fato se passou: A última canção do beco é o melhor poema para exemplificar como em minha poesia quase tudo resulta de um jogo de intuição. Não faço poesia quando quero e sim quando ela, a poesia, quer. E ela quer às vezes em horas impossíveis: no meio da noite, ou quando estou em cima da hora para ir dar uma aula na Faculdade de Filosofia ou sair para um jantar de cerimônia… A última canção do beco nasceu num momento destes, só que o jantar não era de cerimônia. Na véspera de me mudar da Rua Morais e Vale, às seis e tanto da tarde, tinha eu acabado de arrumar os meus troços e caíra exausto na cama. Exausto da arrumação e um pouco também da emoção de deixar aquele ambiente, onde vivera nove anos. De repente a emoção se ritmou em redondilhas, escrevi a primeira estrofe, mas era hora de vestir-me para sair, vesti-me com os versos subindo na cabeça, desci à rua, no beco das Carmelitas me lembrei de Raul de Leôni, e os versos vindo sempre, e eu com medo de esquecê-los, tomei um bonde, saquei do bolso um pedaço de papel e um lápis, fui tomando as minhas notas numa estenografia improvisada, senão quando lá se quebrou a ponta do lápis, os versos não paravam. Chegando ao meu destino, pedi um lápis e escrevi o que ainda guardava de cor… De volta a casa, bati os versos na máquina e fiquei espantadíssimo ao verificar que o poema se compusera, à minha revelia, em sete estrofes de sete versos de sete sílabas (Itinerário de Passárgada, pp. 115/116).
14) Das cartas de Rilke há uma excelente edição brasileira. Traduzidas por Paulo Rónai, foram publicadas pela Editora Globo, de Porto Alegra, juntamente como a Canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristovão Rilke, na tradução de Cecília Meireles. De fato, a leitura dessas cartas pode ser muito útil aos “pardais novos”.


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Entrevista realizada por Homero Senna, publicada originalmente na revista do O Jornal, 31/12/1944. Reproduzida no livro República das letras (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969). Edição preparada por Floriano Martins. Página ilustrada com obras de Paul Delvaux (Bélgica, 1897-1994), artista convidado da presente edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 123 | Novembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES





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