Ao completar, no dia 19 de abril de 1946,
sessenta anos de idade, recebeu Manuel Bandeira uma das maiores homenagens que no
Brasil tem sido tributadas em vida a um escritor. Nos suplementos de todos os grandes
jornais cariocas vários críticos e ensaístas ocuparam-se de sua obra. A essas homenagens
associou-se a Academia, de que Bandeira faz parte desde 1940, quando foi eleito
na vaga de Luís Guimarães Filho, tendo assim as comemorações do seu aniversário
revestido, naquele ano o caráter de uma consagração. E afinal nada mais justo, pois
Bandeira é de fato a maior figura da poesia brasileira atual. [1]
Pernambucano
de nascimento, veio menino para o Rio, tendo estado depois em São Paulo, como aluno
da Escola Politécnica, quando adoeceu e foi obrigado a abandonar os estudos.
Enfermo,
entre a vida e a morte (num tempo em que não havia ainda
estreptomicina), iniciou sua peregrinação pelas estações de cura, em busca de ares
que lhe purificassem os pulmões. Esteve então em Campanha, no sul de Minas (onde,
num ingênuo jornalzinho de quatro páginas, foram publicados seus primeiros versos),
em Teresópolis, em Quixeramobim, no interior do Ceará, e por fim em Clavadel, na
Suíça, lugar também procurado anos antes, e pelo mesmo motivo, por Antônio Nobre,
e onde Bandeira iria conhecer Paul Eugene Grindel, que depois, sob o pseudônimo
de Paul Éluard, se tornaria grande nome da poesia francesa. Sobrevindo a guerra
de 14, voltou para o Brasil, passando a residir então outra vez com a família nesta
capital, de onde pouco tem saído. Aqui morou em vários lugares: no Leme, onde o
foi conhecer Ribeiro Couto (v. De Menino Doente a Rei de Pasárgada; no Curvelo,
onde habitava “um magnífico rés-do-chão acavalado sobre três pisos de morro abaixo”;
na Lapa (Lapa do Desterro), num beco que depois cantou num dístico “cheio ele elipses
mentais” (“Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? - O que
eu vejo é o beco”); no Flamengo, num edifício de extensas galerias e muitos elevadores,
e por último num apartamento na Esplanada, escolhido a propósito, a dois passos
da Faculdade Nacional de Filosofia, de que é professor, e da Academia, a cujas sessões
não falta.
Literariamente,
tendo começado simbolista, com a publicação, em 1917, de A cinza das horas, não
demorou a emprestar todo o seu apoio ao movimento modernista irrompido em São Paulo
por volta de 1920 e do qual resultou a famosa Semana de Arte Moderna. Aliás, muito
antes de se falar aqui nestas coisas, já Bandeira, em seus versos, praticava certas
liberdades que se tornariam postulados da nova corrente, razão por que é chamado
o “São João Batista do Modernismo”. Sua profissão de fé modernista está feita num
excelente poema em que se confessa definitivamente saturado “do lirismo comedido,
do lirismo bem-comportado”, e declara não querer mais saber “do lirismo que não
é libertação”, Nascesse, de resto, em qualquer outro tempo, sob o signo de não importa
que escola literária, e haveria de ser o mesmo grande poeta, pois a poesia é nele
uma força irreprimível.
Espírito
jovial, apesar de tudo o que a vida lhe tem feito sofrer (“‘tenho todos os motivos
menos um de ser triste”), gosta Bandeira às vezes de brincar com a poesia, em jogos
onomásticos e versos de circunstância (v, Mafuá do malungo) ou mesmo em poemas
que inclui depois em suas Poesias Completas. Isto lhe tem valido muitas incompreensões,
que de modo algum o afetam (“aliás, ataques puramente literários nunca me envenenaram”),
mas das quais certa ocasião se defendeu, escrevendo o seguinte, que é sempre oportuno
citar: “Muita gente pensa que o poema é como aquele trapezista do conto de Kafka,
um homem diferente dos outros, um sujeito que vive nas nuvens. e almoça e janta
sublime, Essa gente não admite que o poeta brinque. Daí a incompreensão com leem
certos poemas em que o poeta não faz mais do que voltar a certos moods da
infância”. [2] Foi aliás, com um retorno
à infância do poeta que se iniciou esta entrevista:
O
mais antigo sinal de interesse pela poesia em minha vida data dos nove anos, em
Recife. Lembro-me de, em casa de meu avô materno, o Dr. Antônio José da Costa Ribeiro,
procurar o Jornal do Recife para ler a poesia que diariamente a folha publicava
na primeira página. E me recordo até hoje de dois nomes que frequentemente apareciam
assinando esses versos -Áurea Pires e Henrique Soído. Mas comecei a fazer versos
no Rio, para onde vim em 1896. Tinha, pois, dez anos. Quadrilhas satíricas, comentando
os namoros de meus tios maternos. Não me recordo dos primeiros versos “sérios” que
fiz. Lembro-me que, impressionado por um retrato de Chateaubriand, cujos Mártires
admirava grandemente, cometi um soneto em alexandrinos, onde havia este verso incrível:
“Da que altívolo engenho anima mente altiva”. Verso que, no entanto me é caro até
hoje, porque me traz à memória afetiva toda aquela quadra da adolescência em que
andei me iniciando nos gongóricos portugueses (na falta de Gôngora, que eu não conhecia,
valia-me de Filinto Elísio, responsável por aquele meu verso). No Pedro II, onde
fazia o meu curso de bacharel em Ciências e Letras, poetei calamitosamente, sustentei
um duelo sonetístico com o Lucilo Bueno, colaborei num jornalzinho colegial editado
por ele, mas a minha estreia na grande imprensa foi no Correio da Manhã. A folha
de Edmundo Bittencourt costumava publicar na primeira página um soneto envolvido
em cercadura art nouveau. A minha maior ambição naquele tempo era ver um soneto
meu na página do Correio da Manhã. Manipulei laboriosamente um soneto em alexandrinos,
tremendamente sensual, e mandei-o ao Antônio Sales, que era redator influente no
jornal. Todos os dias comprava o Correio com o coração palpitante de emoção. Quinze
dias se passaram e nada de soneto. Murchei e deixei de comprar o jornal. Um belo
dia lá estava o soneto, na primeira página, com a cercadura art nouveau. Antônio
Sales nunca soube que deu essa esplêndida alegria a um rapazola de dezesseis anos.
Alegria toda pessoal, privadíssima, porque
não ousei falar dela em casa e o soneto estava assinado com pseudônimo.
[3]
Faz uma pausa, mas logo prossegue:
Terminado
o meu curso do Pedro II, fui para São Paulo estudar Arquitetura na Escola Politécnica
daquela cidade. Durante o ano e meio que lá estive só me lembro de ter feito uma
poesia, ainda um soneto. Não me julgava destinado à poesia, tomava a minha veia
versificadora como uma simples habilidade. O que eu queria era ser arquiteto e não
só me matriculei na Politécnica como no Liceu de Artes e Ofícios. Neste desenhava
à mão livre e fazia aquarelas, porque eu desejava ser um arquiteto como Viollet-le-Duc,
um arquiteto que soubesse desenhar, um arquiteto como são hoje Lúcio Costa, Carlos
e Alcides Rocha. Tinha aspirações excessivas, construir casas, remodelar cidades,
encher o Rio ou o Recife de edifícios bonitos como Ramos de Azevedo fizera em São
Paulo… Tudo isso foi por água abaixo com a doença que me prostrou aos dezoito anos.
Interrompi para sempre os estudos, andei pelo interior verificando a verdade daquele
paradoxo do João da Ega: ‘Não há nada mais reles do que um bom clima’.
[4] Então, na maior desesperança,
a poesia voltou como um anjo e sentou-se ao pé mim. Imobilizado largos anos numa
chaise-longue, consolava-me daquela forçada inação escrevendo versos, que
não passavam de um desabafo das minhas tristezas. Não pensava em publicá-los em
livro; só o fiz em 1917 e a epígrafe que pus ao meu primeiro volume de poesia -
A Cinza das Horas é bem significativa. [5] Eram três versos de uma canção de Maeterlinck:
Mau âme eu est triste à Ia fin
Elle est triste enfin d’être lasse
Elle est lasse enfin d’être en vain.
Foi
precisamente para me dar a ilusão de ‘não existir em vão’ que comecei a publicar
os meus versos. O livrinho, impresso nas oficinas do Jornal do Commercio, recebeu
palavras animadoras de João Ribeiro, Castro Meneses, Ribeiro Couto, Américo Facó,
José Oiticica, Flecha Ribeiro e outros. Não morri, com surpresa dos médicos e de
mim próprio, e atrás do primeiro livro vieram outros. Quando dei por mim estava,
sem querer, encarreirado na literatura …
Quais os autores nacionais e estrangeiros que maior influência
exerceram em sua formação intelectual?
Minhas
maiores influências talvez tenham sido Camões, Antônio Nobre e Guillaume Apollinaire.
[6]
A seguir, procuro fazer uma frase de efeito, e indago
do poeta quando sentiu ele que seu destino era a Poesia, que esta o acompanharia
como um sombra pelo resto da vida. Mas o cantor de Carnaval negaceia:
Jamais
senti que meu destino fosse a Poesia, sobretudo assim com esse P maiúsculo que pressinto
na sua pergunta. Creio que se fui poeta em alguns momentos, só o fui por incidente
patológico ou passional.
E sempre foi bem tratado pela crítica? Bandeira sorri,
pensa um pouco e responde:
Nem
sempre… Quando publiquei, por exemplo, o meu segundo livro - Carnaval - o crítico
de uma revista importante, a Revista do Brasil, na fase dirigida por Monteiro Lobato,
limitou-se a transcrever o primeiro verso da coleção, o qual não passava de um grito
de evasão de um doente recluso e perfeitamente abstêmio: “Quero beber, cantar asneiras”,
acrescentou apenas este comentário ferino: “O Sr. Manuel Bandeira conseguiu plenamente
o que queria.” [7] O
remoque não me doeu nem me fez mossa. Ao contrário, até achei graça nele, porque
de fato estava engraçado, Tive para reconfortar-me, além de alguns juízos honrosíssimos,
a simpatia e o apreço dos rapazes que poucos anos depois iniciavam o movimento de
renovação literária conhecido em nossas letras pelo nome de Modernismo. A simpatia
acordada nesses rapazes me abriu os olhos, mostrando-me que na expressão genuína
de minhas tristes experiências eu podia levar a outros uma mensagem de fraternidade
humana. Desde então senti que podia ficar em paz com o meu destino, já que passara
aquele cansaço de existir em vão, o mais pungente dos cansaços.
E a arquitetura?
Ficou
no tinteiro. Desforrei-me, porém, de minhas arquiteturas malogradas reconstruindo
uma cidade da Pérsia antiga - Pasárgada. Quando traduzia o meu Xenofonte, na classe
de grego do Pedro II, li umas linhas sobre uma cidade fundada por Ciro, o antigo,
nas montanhas do sul da Pérsia, para lá passar os verões, e a minha imaginação de
adolescente começou a trabalhar sobre isso, criando um refúgio de delícias, um símbolo
de evasão da “vida besta”. Mais de vinte anos depois, na minha casa da Rua do Curvelo,
num momento de profundo desânimo, da mais aguda sensação de tudo que eu não fizera
na vida por motivo da minha doença, saiu-me do subconsciente esse grito estapafúrdio:
“Vou-me embora pra Pasárgada!” Senti que era a primeira célula de um poema. Tentei
fazê-Io mas fracassei. Tempos depois, nova crise de desalento, desabafado no mesmo
grito. Mas desta vez o poema saltou como por encanto.
Acha que teria dado um bom arquiteto?
Acho
que sim, pelo menos do ponto de vista funcional.
Mas pode-se dizer que tivesse vocação para essa profissão?
Não
creio que a arquitetura fosse a minha vocação. Em rigor, não sinto, nunca senti
vocação para coisa nenhuma, o que considero uma infelicidade.
Mário de Andrade chamou certa vez Manuel Bandeira de
“São João Batista do Modernismo”. O apelido pegou, e até o Sr, Henrique Perdigão
o cita, ao tratar, no seu Dicionário Universal de Literatura, do poeta pernambucano.
Assim, a pergunta que tinha engatilhada talvez fosse desnecessária, ou ingênua.
Era evidente que Bandeira não poderia falar mal do movimento modernista. Mesmo assim,
arrisquei: A reação modernista foi útil ou perniciosa à literatura à literatura
nacional? Acha que o movimento foi bem orientado?
A
reação modernista para nós foi utilíssima. Deu-nos o verso livre e maior liberdade
de inspiração e expressão tanto na poesia como na prosa. As orientações foram muitas
e em alguns pontos contraditórias: a que me parecia melhor era a que procurava conciliar
as duas forças em eterno conflito na vida - tradição e renovação.
Sempre desejei saber se Manuel Bandeira tinha tomado
parte ativa no Modernismo, ou se se limitara a ficar de longe, no “sereno”, embora
emprestando ao movimento o prestígio do seu nome. Pergunto-lhe, por isso, se foi
a São Paulo por ocasião da Semana de Arte Moderna.
Não
fui, não -
Responde-me com sua fala simpática de pernambucano. E
como que adivinhando meu pensamento, acrescenta:
Mas
nem por isso deixei de apoiar sempre o movimento. Ronald de Carvalho leu, aliás,
nessa época, numa das sessões do Teatro Municipal, o meu poema “Os Sapos” que, por
ser uma sátira contra os maus parnasianos, vinha a propósito, mas foi terrivelmente
vaiado pela assistência. [8]
Acha que a poesia se tornará cada vez mais livre, ou
a tendência será para voltarmos aos moldes antigos?
É
preciso distinguir duas espécies de poesia: a subjetiva e a de ação social. A meu
ver, a primeira se tornará cada vez mais livre, ao passo que a segunda, tendo de
exprimir o sentimento coletivo de uma maneira clara, ao alcance de todos, deve ser,
na sua forma, tradicional, mnemônica e portanto, de versos medidos e rimados. O
que não quer dizer que a outra não possa ser feita, também com métrica e rima… A
alguém que se admirou de eu gostar, em poesia, das formas fixas, já uma vez respondi:
gosto das formas fixas porque elas são padrões estróficos de raro, vivazes, mnemônicos;
porque satisfazem o meu gosto de ordem, de disciplina. Ligou-se a elas, injustamente
a meu, um certo “part-pris” antiparnasiano. Ora, nas mãos de um grande poeta nunca
elas foram exibição de virtuosismo. Basta dizer que quase toda obra de Villon é
de baladas.
O estilo de Manuel Bandeira sempre me pareceu o melhor
possível. Seus versos e sua prosa têm uma elasticidade, uma graça e uma justeza
de palavras que só o perfeito domínio do idioma dá ao escritor. E como a questão
do “escrever mal”, ou pelo menos do escrever espontaneamente e sem excessivos cuidados
de forma, vem sendo agora outra vez discutida com insistência, julguei oportuno
saber se ele é partidário, em literatura, do estilista, ou se acha que isso
de escrever mal não tem importância. A propósito, diz-me:
Acho
que escrever bem tem a maior importância e todo escritor que se preze tem o dever
de procurar fazê-lo. Tudo está em saber o que é escrever bem… Já não ouvi dizer
que Gilberto Freire e José Lins do Rego escrevem mal? Não digo escrevam sempre bem,
mas isso… Renan era para os homens de 1900 o estilista número 1: pois leia as observações
do journal, de Gide, a respeito da linguagem de Renan…
[9]
Por que motivo resolveu entrar para a Academia?
Entrei
para a Academia porque fui chamado por excelentes amigos que já eram de lá (Ribeiro
Couto, Múcio Leão, Cassiano Ricardo, Alceu Amoroso Lima, Olegário Mariano, Levi
Carneiro); porque vi na minha possível entrada oportunidade de conviver mais assiduamente
com mestres admiráveis como Roquete Pinto, Taunay, Oliveira Viana, Rodolfo Garcia,
Aluísio de Castro, Clementino Fraga; porque, se não tenho preconceitos acadêmicos,
também não os tenho antiacadêmicos.
A
Academia tem por fim, segundo os estatutos de 1897, “a cultura da língua e da literatura”.
Creio que o tem cumprido, não só pela atividade de seus membros, como pelos prêmios
distribuídos e pelas numerosas reedições de obras importantes esgotadas e primeiras
impressões de outras que ainda estavam inéditas, como, por exemplo, a Prosopopéia,
de Bento Teixeira, as Obras, de Gregório de Matos, O Peregrino da América,
as Cartas. de Nóbrega e Anchieta, o Tácito Português, de Francisco Manuel
de Melo, o Florilégio de Varnhagen etc.
Devem os escritores novos procurar a Academia?
Não
vejo razão para que não o façam, uma vez que ela já tem premiado tantos livros de
espírito e técnica de vanguarda.
O telefone toca lá dentro e a conversa se interrompe
por uns instantes. O repórter se levanta, olha os livros nas estantes. Há livros
por todo canto, no apartamento de Manuel Bandeira [10] e estava admirando a linda cabeça de Gonçalves
Dias que Portinari pintou para a edição das Obras Completas do poeta maranhense
que o autor das Crônicas da Província do Brasil preparou para a Companhia
Editora Nacional, quando o entrevistado voltou. Mas já aí a palestra muda de rumo
e de tom. Professor da Faculdade Nacional de Filosofia, onde ensina Literatura hispano-americana,
seria interessante apurar se o poeta gosta de lecionar.
Gosto,
mas detesto as outras atividades de professor: julgar provas, examinar, assistir
às sessões da Congregação etc.
De modo geral, interessam-se os alunos pela matéria?
Ainda
não pude descobrir se as minhas aulas ou a matéria de minhas aulas interessam aos
alunos. Às vezes parece que sim; falo, por exemplo, numa aula, da vida de Rubén
Dario: prometo na lição seguinte analisar a obra do poeta, certo de que a turma,
que vi muito atenta às minhas palavras, comparecerá inteira; fico desapontado quando
verifico que muitos alunos não estão presentes.
É verdade que é grande apreciador de música?
A
música não é para mim um simples passatempo; é uma necessidade. Privado dela me
sinto infeliz de todo. [11]
E quais são os seus compositores prediletos?
Creio
que são Bach, Haydn e Mozart. Mas sinto grande interesse, sobretudo interesse intelectual,
pelos modernos, entre os quais um dos prediletos é Prokofief. Dos nossos compositores
prefiro os modernos: Vila, Mignone, Camargo Guarnieri, Gnattali, Luis Cosme. Tenho,
como você está vendo, rádio-vitrola. Não sou entendido, mas já li um livro inteiro
para ficar conhecendo a estrutura da forma sonata, Houve tempo em que andei arranhando
o violão, no qual cheguei a tocar, ainda que mal, o Rondó, de Aguado e - não se
ria… – uma bourrée de Bach. Há uns quarenta anos, com grande dificuldade tirei por
música ao piano e decorei meia dúzia de peças, algumas ainda hoje toco - os prelúdios
4 e 20 de Chopin, o Aveu do carnaval de Schumann e uma pecinha de Mac-Dowell.
E numa observação à parte:
O
violão aliás, tem-me sido útil, pois nele é que tiro a melodia das músicas para
as quais me pedem versos. Foi assim, por exemplo, que escrevi as palavras do Azulão
de Jaime Ovalle.
Tem roda certa de amigos para o “papo”?
Não.
Quando quero bater um bom “papo”, vou jantar com o Rodrigo (Rodrigo M. F. de Andrade).
Quais os seus poetas preferidos?
Já
uma vez outro repórter me fez essa pergunta, a que por sinal é muito fácil responder.
No Brasil, o poeta com sinto maiores afinidades é Carlos Drummond de Andrade. O
poeta francês meu preferido é Villon. Português, Camões. Italiano, Dante. Nos outros
países não tenho nenhuma predileção marcada: gosto igualmente de muitos. Assim,
na Espanha os poetas do Siglo de Oro, no
Romantsmo, Becquer, entre os modernos Jorge Guillén, Antônio Machado, Juan
Ramón Jiménez, Lorca, Alberti e outros. Na Inglaterra, entre os românticos, Keats;
entre os modernos talvez Yeats; entre os hispano-americanos, Ruiz de Alarcón, Inés
de Ia Cruz, Dario, Herrera y Reissig; os cubanos Nicolás Guillén, Florit, Ballagas;
o equatoriano Jorge Carrera Andrade; os mexicanos López Velarde, Carlos Pellicer;
o colombiano Porfirio Barba Jacob; o argentino José Hernández… Dezenas de outros,
mas nenhuma predileção especial.
É sempre curioso apurar como escreve um poeta os seus
poemas. Ou, em outras palavras, de que modo lhe acontecem os poemas. Tratando-se
então, de Manuel Bandeira, essa questão aumenta ainda de importância, por ser ele
hoje, segundo voz unânime, o maior poeta vivo do Brasil. Faço a pergunta e Bandeira
responde-me prontamente:
Acontecem-me
os poemas inesperadamente e às vezes mesmo fulminantemente.
[12] De tal modo que a minha impressão
a posteriori é que não fiz o poema: ele é que se fez em mim. Mesmo o que
parece mais composto, Assim, A última canção do beco, Repare que são sete
estrofes, cada estrofe de sete versos, cada verso de sete sílabas, Não houve em
mim intenção de fazer assim e só dei conta disso dias depois de escrito o poema.
[13]
De fato, abrindo o volume das suas Poesias Escolhidas
(edição Pongetti), que o poeta acabara de me oferecer por causa do poema hors
texte “Infância”, que eu desconhecia, posso verificar a coincidência a que se
refere. Eis o poema:
Beco
que cantei num dístico
Cheio
de elipses mentais,
Beco
das minhas tristezas.
Das
minhas perplexidades
(Mas
também dos meus amores
Dos
meus beijos. dos meus sonhos)
Adeus
para nunca mais!
É verdade que recebe muitos originais para ler e dar
opinião?
Ai
de mim! Vivo recebendo manuscritos. Que consultem sobre poesia, ainda vá lá! Mas
sobre romances e contos?… Aos portadores destes gêneros vou logo dizendo: por que
não procuram o Graciliano, O Zé Lins, o Otávio de Faria? Imagine que numa manhã
fui despertado às sete horas pelo tilintar do telefone. Era um incipiente poeta
desconhecido que, sem mais preâmbulo, me desfechou esta: “- O senhor pode ouvir
um pardal novo?” Respondi que era cedo demais para ouvir pardais novos. Desde então
chamo esses poetinhas “pardais novos”. Às vezes nem novos são. O tal do telefone
já tinha 35 anos! Aliás, essas consultas me deixam perplexo. Não sei o que responder
senão dizendo: leiam as Cartas a um jovem poeta, de Rilke.
[14]
Gosto,
Aqui deitei raízes. Mas o Rio se me torna às vezes antipático no seu excessivo ruído,
na legião de “cacetes” (merecem o outro nome, começando também por c e que eu não
digo em homenagem ao meu amigo e mestre Aluísio de Castro), dos “cacetes” que estão
em toda parte, surgem de toda parte…, Então tenho ganas de fugir, de me meter em
qualquer cidadezinha do interior ou do litoral… Ubatuba, por exemplo.
Várias outras questões gostaria ainda de propor a Bandeira.
Mas a conversa já ia longa e era preciso não abusar da paciência e boa vontade do
poeta. Para concluir, então, perguntei-lhe: Tem escrito muita poesia nestes últimos
tempos?
Pelo
contrário. Há mais de ano que não faço versos, salvo duas brincadeiras onomásticas.
Aliás, quase nunca procuro fazer versos; deixo que a carga de lirismo vá engrossando,
engrossando, até romper minha habitual inércia; numa necessidade fatal de desabafo.
Noto, ainda, que há, nas suas Poesias Completas, inúmeros
poemas datados de Petrópolis e Teresópolis, e Bandeira explica-me:
O
isolamento fora do Rio, longe das minhas preocupações habituais, sempre foi para
mim um estado propício à poesia. Eis o motivo de tantos poemas datados de Petrópolis
e Teresópolis.
Quais são os poemas seus que prefere?
Os
poemas meus que prefiro? Hum… É muito difícil responder. Já manifestei alguma preferência
em mais de uma coletânea de Poesias Escolhidas. Em todo caso, assim de repente
posso confessar certo fraco por Profundamente, Noite Morta, Evocação
do Recife, Poema tirado de uma notícia de jornal, Poema de finados,
O último poema, Cantiga, Momento num Café, Maçã, Canção
de parada do Lucas, Canção do vento e da minha vida, Canção de muitas
Marias, Última canção do beco, Piscina, Eu vi uma rosa, Brisa, Temas e voltas
e o segundo Belo belo.
NOTAS
(1) Tais homenagens se repetiram, com a mesma ou talvez
maior amplitude, em 1956 e 1966, ao completar o poeta 70 e 80 anos de idade, pois
faleceu com 82 anos, aos 13 de outubro de 1968.
(2) Para epígrafe de seu Mafuá do Malungo. Bandeira
confessou, certa vez, que gostaria de ter tomado as palavras de Alfonso Reyes, extraídas
do curto prefácio que escreveu para o volume Cortesia (também versos de circunstância)
aparecido simultaneamente com o seu. e no qual o escritor mexicano lamenta que se
tenha perdido o bom costume de tomar a sério - o mejor en broma – os versos
sociais , de álbuns de cortesia, observando então: Desde ahora te digo que quien
sólo canta en dó de pecho no sabe cantar: que quienl sólo trata em versos para las
cosas sublimes no vive Ia verdadera vida de la poesia y de lãs letras, sino que
las lleva postizas como adorno para las fiestas.
3) Em 1946, em entrevista a Edmundo Lys, Bandeira voltaria
a aludir a esse soneto, revelando não só o pseudônimo “impossível” com que o assinou
- C. Creberquia, - mas também o texto dos quatorze alexandrinos laboriosamente manipulados:
Nasceste
para o beijo e os êxtases divinos
Do
amor, e és para o amor a heroína ideal.
Trazes
disso estampado o vívido sinal
Na
rubra tumidez dos lábios purpurinos.
Seios
duros, em pé, lácteos e pequeninos
Larga
boca sensual, largas ancas sensuais,
E
em tudo essa volúpia e essa intuição do mal
Que
há nos teus olhos, flor de aromas assassinos!
Ah,
percorrer-te o corpo, a boca e os lábios cheios
De
beijos a cair numa alegre sonata
-
Beijos da boca aos pés, nas pernas e nos seios:
Enrubescer
teu corpo ao férvido calor
Dos
meus beijos de fogo a cobrir-te em cascata
-
Ai meus sonhos de amor! Ai meus sonhos de amor!
(Andorinha,
andorinha. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio, 1966, p.42)
4) Neste ponto, a memória do poeta o traiu, poi a boutade
não é de João da Ega, mas sim de outro personagem de Eça de Queiroz - O Visconde
Reinaldo, d’ O primo Basílio.
5) Numa ampla “Reportagem com Manuel Bandeira”, em quatro
partes, publicada n’ O Jornal, do Rio, de 19 e 26 de setembro, 3, e 10 de outubro
de 1948, mais tarde transcrita na revista Provincia de São Pedro, nº 13, e atualmente
incluida na edição Aguilar, com o título de “República Literária”, observa Paulo
Mendes Campos: “Sabe-se que o primeiro livro do poeta teria sido os Poemetos
melancólicos: os senhores França Amado & Companhia, editores de Coimbra,
não respondem à carta em que Manuel Bandeira propunha o livro. O poeta estava em
Clavadel, na Suiça, e com a guerra de 1914, deixou no sanatório o manuscrito dos
Poemetos melancólicos, não tendo, mais tarde, conseguido refazê-lo inteiramente”.
Já Francisco de Assis Barbosa, na excelente notícia biográficado poeta - Milagre
de um vida, que escreveu especialmente para a edição Aguilart, assim se refere a
esse frustrado primeiro livro de Bandeira: “foi em Cladavel que Manuel Bandeira
começou a preocupar-se em publicar um livro reunindo as suas produções poéticas.
Poemetos melancólicos foi o título escolhido. Separou três poemas - a Epigrafe
(aquela da Cinza das horas), Soneto a Camões e Paisagem noturna
- e escreveu a Eugênio de Castro, que conhecia apenas de leitura e era, dentre
os portugueses, um dos seus poetas da sua predileção, despachando a carta para Lisboa
aos cuidados dos editores França Amado & Cia. e ficou ingenuamente (expressão
dele próprio) esperando pela resposta”. Esta não veio jamais.
6) Na reportagem acima citada, refere Paulo Mendes Campos
que, tendo indagado de Bandeira quais os poetas preferidos nos temoos d’ A cinza
das horas, obteve a seguinte resposta: “Camões, preferido de sempre e até hoje
na língua portuguesa, Antonio Nobre, Raimudo Correia e Vicente de Carvalho, Musset,
Sully Prudhomme, Herédia, Maeterlinck”(…) Mas há que assinalar como influência a
música e os textos de Schubert, tanto que quase pus como epígrafe do livro a frase
inicial do lied Der Leirmann. A esses, Bandeira, mais adiante, acrescentaria
Eugênio de Castro, outro preferido do tempo d’A cinza das horas que se escquecera
de mencinar. E ainda sobre influências, confidenciou ele a Paulo Mendes Campos:
“As rimas toantes não me foram sugeridas pela poesia espanhola, que eu desconhecia
então (1917), mas por Charles de Guérin, que li muito por volta de 1907. Um dos
grandes preferidos do tempo do Carnaval: Lenau. e mais Apollinair. Na música
Schumann”. No Itinerário de Passárgada, observaria o poeta: “as influências assinaladas
anteriormente há que acrescentar essa da atmosfera de Petrópolis. Dos vinte e quatro
poemas que perfazem O ritmo dissoluto, oito foram escritos na Mosela. Mas
a ação de Petrópolis só se exerce quando estou lá, ação lenitiva, que atuando sobre
a minha sensibilidade, logo me comunica aos versos em manso ritmo de aceitação”
(pp 71/72).
7) Por curiosidade, procuramos localizar na Revista
do Brasil, esse comentário crítico. Mas nossa busca - realizada na excelente coleção
de Plinio Doyle - resultou infrutífera. Aliás, no Itinerário de Passárgada,
Bandeira atribui essa crítica a ‘certa revista’ ,sem revelar qual seja, e transcreve
outro comentário, mais extenso e igualmente ferino, que lhe fez, este sim, a Revista
do Brasil (obr cit., p. 55).
8) Em sua memórias, confidenciou o poeta: “Pouco me
deve o movimento, o que eu devo a ele é enorme. Não só por intermédio dele vim a
tomar conhecimento da arte de vanguarda da Europa (da literatura e também das artes
plásticas e da música), como me vi sempre estimulado pela aura de simpática que
me vinha do grupo paulista (Itinerário de Passárgada, p. 67).
9) As observações de são de 27 de junho de 1932 e acham-se
à p. 134 da edição NRF (Bibliotheque de la Pleiade). Ainda sobre o problema do estilo,
no Itinerário de Passárgada lê-se o seguinte: “ Cedo compreendi que o bom fraseado
não é o fraseado redondo, mas aquele em que cada palavra está no seu lugar exato
e cada palavra tem uma função prefisa, de caráter intelectivo ou puramente musical,
e não serve senão a palavra cujos fonemas fazem vibrar cada parcela da frase por
suas ressonâncias anteriores e posteriores” (p. 43). É, ampliado, o conceito de
Swift, citado por Gilberto Amado e segundo o qual só há uma definição para estilo:
“A palavra exata no lugar devido”. A propósito, aliás, observa Mark Twain: “A diferença
entre a palavra certa e a palavra quase certa é a diferença que existe entre um
relâmpago e um vaga-lume (Apud GA O enigma de Capitu, in Jornal do Brasil
de 6-4-1968).;
10) Por morte do poeta, sua biblioteca foi doada à Academia
Brasileira de |Letras.
11) “Na verdade, faço versos porque não sei fazer música”
- confessou o poeta no Itinerário de Passárgada (p.43).
12) A Paulo Mendes Campos, revelou Bandeira que o soneto
Renúnciaque fecha A cinza das horas e é, cronologicamente, o seu primeiro
poema, dentre os incluidos nesse livro, foi feito numa crise da doença, com 40 grausde
febre, num estado de subdelírio noturno. Tendo, aliás, em carta a Mario de Andrade,
aludido a esses estados de transe em que às vezes lhe acontecm os poema, o escritor
paulista estranhou que uma pessoa com 40 graus de febre, “vômitos, suores frios,
escarros de sangue”, fosse se lembrar de escrever um poema, “fazer arte que tem
catorze versos, rimas em lugares certos, tantas sílabas para cada verso”. E bandeira
observa, em nota à carta do amigo: Tive de explicar a Mário que ‘não me lembrei’
de escrever o soneto, não quis escrever coisa nenhuma: o soneto é se organizou em
mim na excitação do subdelírio. O fato de ser um poema “que tem catorze versos,
rimas em lugares certos, tantas silabas pra cada verso”, não tem, pelo menos para
mim, a mínima importância”. (Cartas de Mario de Andrade a Manuel Bandeira. Rio de
Janeiro, Organização Simões Editora, 1958, pp. 47-48). “Palinódia” - confessou também
o poeta a Paulo Mendes Campos - “é a tentativa frustrada de reconstituir um poema
feito em sonho. Ao despertar, só me lembrava dos quatro últimos versos: “…não és
só / Senão prima de prima / Prima-dona de prima / primeva”. Muito curiosa, igualmente
é a gênese do soneto O lutador: “Ouvi um dia de minha prima Maria do Carmo
do Cristo Rei, monja carmelita, a narrativa de viagem que lhe fizeram umas irmãs
peruanas, de volta de uma peregrinação a Ávila, onde viram as relíquias da reformadora
do Carmelo. Naturalmente falaram com unção do coração transverberado da grande santa.
A palavra ‘transverberado’ impressionou-me fundamente. Passei o resto do dia pensando
nela, mas sem nenhuma ideia de poema. No dia seguinte de manhã acordo dom o soneto
pronto na cabeça, com título e tudo”. (Itinerário de Passárgada,o. 124).
13) Nas suas memórias, conta-nos Bandeira como o fato
se passou: A última canção do beco é o melhor poema para exemplificar como
em minha poesia quase tudo resulta de um jogo de intuição. Não faço poesia quando
quero e sim quando ela, a poesia, quer. E ela quer às vezes em horas impossíveis:
no meio da noite, ou quando estou em cima da hora para ir dar uma aula na Faculdade
de Filosofia ou sair para um jantar de cerimônia… A última canção do beco nasceu
num momento destes, só que o jantar não era de cerimônia. Na véspera de me mudar
da Rua Morais e Vale, às seis e tanto da tarde, tinha eu acabado de arrumar os meus
troços e caíra exausto na cama. Exausto da arrumação e um pouco também da emoção
de deixar aquele ambiente, onde vivera nove anos. De repente a emoção se ritmou
em redondilhas, escrevi a primeira estrofe, mas era hora de vestir-me para sair,
vesti-me com os versos subindo na cabeça, desci à rua, no beco das Carmelitas me
lembrei de Raul de Leôni, e os versos vindo sempre, e eu com medo de esquecê-los,
tomei um bonde, saquei do bolso um pedaço de papel e um lápis, fui tomando as minhas
notas numa estenografia improvisada, senão quando lá se quebrou a ponta do lápis,
os versos não paravam. Chegando ao meu destino, pedi um lápis e escrevi o que ainda
guardava de cor… De volta a casa, bati os versos na máquina e fiquei espantadíssimo
ao verificar que o poema se compusera, à minha revelia, em sete estrofes de sete
versos de sete sílabas (Itinerário de Passárgada, pp. 115/116).
14) Das cartas de Rilke há uma excelente edição brasileira.
Traduzidas por Paulo Rónai, foram publicadas pela Editora Globo, de Porto Alegra,
juntamente como a Canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristovão Rilke,
na tradução de Cecília Meireles. De fato, a leitura dessas cartas pode ser muito
útil aos “pardais novos”.
Entrevista
realizada por Homero Senna, publicada originalmente na revista do O Jornal, 31/12/1944. Reproduzida no
livro República das letras (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969).
Edição
preparada por Floriano Martins. Página ilustrada com obras de Paul Delvaux (Bélgica,
1897-1994), artista convidado da presente edição.
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Agulha Revista de Cultura
Número 123 | Novembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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