Antiburguês por
excelência, nem mesmo o cartório que não há muito lhe arranjaram (e que por sinal
não é dos mais rendosos) conseguiu fazer com que Murilo Mendes perdesse aquele seu
ar entre infantil e lunático, que levou outro grande poeta, dos que prescindem até
do verso para exprimir-se - Rubem Braga - a dizer dele que é “de Juiz de Fora e
do mundo da lua”.
Sua biografia está pontilhada de anedotas saborosíssimas, reveladoras
do seu espírito absolutamente avesso a deixar-se prender em fôrmas e moldes. Desde
os seus tempos de mocidade, quando praticava o poema-piada e, batendo com amigos
à porta das casas burguesas de Botafogo, censurava asperamente, à pessoa que vinha
abrir, o mau gosto do proprietário, até àquela deliciosa sentença que está n’O Discípulo de Emaús: “Prefiro a nuvem ao
ônibus”, Murilo Mendes não saberia nunca deixar-se requentar nessa temperatura de
banho-maria em que transcorrem tantas vidas. Embora tenha caído de todo o comprimento
no chão do Municipal, no intervalo de um concerto, diante do comentário de uma amiga,
e haja, ainda recentemente, em Belo Horizonte, deixado a mesa de onde deveria pronunciar
uma conferência, para ir iniciá-la do outro extremo da sala, fugindo assim à fumaça
do magnésio dos fotógrafos - não se pense que o poeta é incapaz de tomar pé neste
mundo. Ao contrário, poucos serão os amigos mais dedicados e constantes, e nem apenas
a música e a poesia constituem suas preocupações, vivendo ele também, como uma vez
já se acentuou, “em estreita comunhão com as variações sociais, políticas e morais
do tempo”.
Tendo morado em vários bairros, neste Rio de Janeiro que conheceu ainda
com seus bons hábitos de cidade provinciana e pacata, tão subitamente desaparecidos,
algumas das casas em que residiu ficaram célebres - como a da Rua Marquês de Abrantes,
posta abaixo para que em seu lugar se levantasse um horrendo arranha-céu. E em todas
elas Murilo sabia trazer o seu quarto de solteirão arrumado sempre com notável ordem
e bom gosto, e tornar poético o ambiente em que, com suas lentas passadas, se movia.
Volvidos os anos, é mesmo o clima que vou encontrar na casa da Rua
Ibituruna nde foi residir depois do seu casamento (para o qual não houve convites)
com a escritora portuguesa Maria da Saudade Cortesão, filha do historiador Jaime
Cortesão e ela própria poetisa e jornalista. Lá estão os mesmos livros escolhidos
e bem cuidados, os mesmos álbuns de discos, a mesma vitrola coberta com um pano
de altar bordado a ouro, os mesmos quadros (além de outros, novos) de Maria Helena
Vieira da Silva, Pancetti, Portinari, Ismael Néri, Cícero Dias, Marcier, as mesmas
imagens de santos e, na parede, o mesmo anjo com o gládio (será mesmo um gládio?)
- elemento decisivo na composição do ambiente.
Passando a responder ao questionário que lhe apresentei, do qual a
primeira pergunta dizia respeito aos motivos que o levaram a tornar-se escritor
declara-me:
A questão da vocação do escritor está ligada ao mistério da própria
vida e da criação. Quanto ao meu caso particular, posso dizer que encontrei na literatura
um modo de exteriorizar a revolta diante do convencionalismo, do superficialismo
e do farisaísmo do ambiente social que me cercava.
- Quais as pessoas que maior influência exerceram em sua formação intelectual?
Não tive, na infância nem na adolescência contato com o que penso deva
ser o Mestre, no conceito antigo, grego, medieval da palavra. Esses mestres talvez
ainda existam na Europa. No Brasil, em Minas ou aqui no Rio, não tive a felicidade
e os encontrar. Pelo contrário, vi foram os professores burocratas, escravos dos
programas e sem o menor entusiasmo pela obra que realizavam. Assim, pessoa que marcasse
influência em minha formação só vim a conhecer depois dos vinte anos: meu grande
amigo Ismael Néri, que me trouxe ao catolicismo. Ismael era um espírito verdadeiramente
original, profundo e elevado, do qual os escritores e artistas, via de regra, se
afastavam por não poderem tolerar a sua força.
- Mas o ambiente que você, teve em casa não era favorável à arte?
Absolutamente. O ambiente em casa não era literário nem propício a
qualquer manifestação artística. Meu pai era um homem prático e por isso ficou horrorizado
quando, certo dia, perguntando-me o que queria ser, eu lhe respondi muito candidamente
que queria ser poeta. Aliás, ensaiei várias profissões, fui prático de dentista,
aprendiz de guarda-livros, auxiliar de telegrafista, estudante de Farmácia e de
Direito e de fato não me sentia com vocação para nada, tinha e tenho uma irremediável
falta de jeito para a vida prática.
- E dos autores, houve algum que o impressionasse mais fundamente?
Na adolescência, os que li com maior sofreguidão e marcaram mais minha
formação foram Victor Hugo, Baudelaire e Apollinaire. Mais tarde os super-realistas
vieram a ter sobre mim grande influência. Depois da minha conversão ao catolicismo,
passei a me interessar sobretudo pela obra dos filósofos e pensadores, e, destes,
principalmente Platão, Pascal, Kierkegaard e Novalis hão de ter influído em meu
espírito. Sem falar no Novo Testamento, que é a minha leitura predileta. Mas não
estaria sendo exato se neste capítulo falasse apenas de pessoas e livros, quando
houve muitos outros fatores que tiveram sobre minha formação uma influência poderosíssima
e decisiva. Estão neste caso a música, para a qual desde criança me senti extraordinariamente
atraído, o cinema, de que sou contemporâneo e que em determinada época muito me
apaixonou, e a pintura, que também sempre me seduziu. Infelizmente não temos ainda
instrumentos críticos poderosos para precisar até que ponto as outras artes exercem
influência sobre a formação de um poeta. Mas a verdade é que me sinto em grande
escala devedor da música, do cinema e da pintura. Dos músicos, devo destacar Mozart,
de quem descubro sinais até mesmo no aperfeiçoamento do meu caráter, e que poliu
certas arestas do meu temperamento. Pelo cinema me apaixonei de tal maneira que
o estudei a sério durante longo tempo, chegando, mesmo, a escrever um livro sobre
o assunto, livro que queimei logo depois de terminado. E sou o primeiro a reconhecer
que o meu volume de estreia, Poemas, foi feito em grande parte sob o signo da pintura.
Além das artes, há outros fatores que os poetas em geral não destacam quando falam
de sua formação, relegando-os a segundo plano, mas que às vezes são da maior importância.
Foi o que se deu comigo, por exemplo, com o cometa de Halley, cuja aparição, no
princípio do século, me deslumbrou quase até ao delírio. Eu tinha então nove anos,
e morava em Juiz de Fora. Mas ainda hoje a visão do cometa de Halley é uma das impressões
mais fortes que guardo. Nunca vi coisa mais
bela do que aquele corpo luminoso, com a sua enorme cauda resplandecente de estrelas, passeando pelo céu de minha cidade natal. Durante as três noites em que apareceu não dormi um minuto sequer e talvez tenha sido esse o primeiro instante em que me senti tocado pela Poesia … Propriamente sobre minha formação como católico, não posso deixar de citar dois beneditinos: Dom Martinho Michler e Dom Tomás Keller, dos mais ilustres teólogos da Igreja atual, que conheci no mosteiro de São Bento.
bela do que aquele corpo luminoso, com a sua enorme cauda resplandecente de estrelas, passeando pelo céu de minha cidade natal. Durante as três noites em que apareceu não dormi um minuto sequer e talvez tenha sido esse o primeiro instante em que me senti tocado pela Poesia … Propriamente sobre minha formação como católico, não posso deixar de citar dois beneditinos: Dom Martinho Michler e Dom Tomás Keller, dos mais ilustres teólogos da Igreja atual, que conheci no mosteiro de São Bento.
- Onde foi publicada sua primeira produção literária?
Num jornal de Juiz de Fora intitulado “A Tarde”. Era uma espécie de
poema em prosa, mas confesso que não experimentei a menor sensação ao vê-lo impresso.
Deixou-me absolutamente frio.
- Na sua opinião, quais serão as características da poesia de amanhã?
Em geral não gosto de fazer prognósticos, mas a julgar pelo rumo que
vai tomando o mundo, creio que a poesia do futuro terá um caráter místico e também
social, coletivo, comunitário. Deverá trazer aos homens uma palavra de esperança,
de consolo, e deverá ser educativa no mais alto sentido do termo, celebrando os
sofrimentos, as misérias e grandezas do Homem e a perenidade de Deus. Revestirá,
sem dúvida, como hoje ocorre, um duplo caráter, erudito e popular, não sendo impossível
que apareçam novas formas de intercomunicação poética.
- Não acha acadêmico o debate em torno do individual e do social em
arte?
Quando esse debate é travado entre escritores, acho. Mas em jornal,
para esclarecer o povo, admito que se volte a essa discussão que tem sido continuada
pelos novíssimos esnobes da Economia Política. De qualquer maneira, o problema me
parece mal colocado. E isto porque o artista, em si, é sempre individualista, o
que não o impede de compreender e interpretar os anseios da coletividade. A finalidade
da literatura não é política, em si; consiste em aumentar, aperfeiçoar e elevar
o patrimônio espiritual da humanidade. Todo homem que cria beleza, seja por um verso
sobre uma rosa ou uma borboleta, aumenta o bem-estar da comunidade. Os representantes
da corrente espiritualista falam nisso em nome do Espírito com E grande. Por sua
vez, os representantes da corrente materialista atacam o espírito. Ambas as facções
têm razão em parte. É preciso, de fato, defender os valores do espírito, mas sem
esquecer que esta posição de defesa implica altos deveres, dos quais não é o menor
o de ajudar a promoção de uma cultura verdadeiramente humanística e popular. A torre
de marfim só existe no papel. Mas o homem de pensamento não tem apenas deveres.
Tem também direitos, o mais importante dos quais é, sem dúvida, o de ser independente
na sua criação.
- Que destino
prevê para a Poesia? Pensa que ela se tornará cada vez mais livre, ou a tendência
será para voltarmos aos moldes antigos?
Condeno o recurso sistemático aos velhos clichês de expressão. Está
claro que com isso não quero decretar, por exemplo, a morte do soneto, gênero a
que ainda agora meu amigo Jorge de Lima acaba de dar expressão inteiramente nova.
Acho que o motivo convencional, a expressão obsoleta e morta é que é preciso combater.
- Já não se nota
hoje certa reação antimoderna, partida sobretudo dos moços que anualmente deixam
as nossas Faculdades de Filosofia?
Atribuo a reação de alguns moços à ausência de informação da maioria
dos mestres sobre o estado atual da literatura e da arte moderna. Os mestres, em
geral, ou têm parti pris, ou não estão suficientemente informados. Atribuo-a, também,
em parte, à estrutura antiquada do regime capitalista em que vivemos e em parte
à displicência e ao desinteresse da maioria dos artistas em iniciarem o leitor comum
na compreensão da arte moderna. A esse respeito, penso que a ação pessoal, doutrinária,
de explicação de cada um é muito necessária. E a verdade é que os artistas modernos
- poetas, músicos, pintores, arquitetos - de um modo geral se têm descuidado disso.
- Nascido em
1901, tinha Murilo Mendes, por ocasião da Semana de Arte Moderna, mais ou menos
vinte anos de idade. É sabido que sua obra poética de certa maneira se desenvolveu
à margem do movimento irrompido em São Paulo por volta de 1922. Por isso mesmo seria
interessante apurar que atitude tomou em face do Modernismo. A resposta não se faz
esperar:
Em 1922 eu estava no Rio, olhando de longe e com simpatia o movimento,
mas sem aderir oficialmente, porque nunca tive instinto gregário, o que sempre me
impediu de fazer parte de qualquer grupo. Publiquei alguns poemas em “Terra Roxa
e Outras Terras” e em “Antropofagia”, as revistas que o Oswald de Andrade dirigiu
em São Paulo, mas não tive ação mais saliente na revolução literária e artística
liderada por Mário de Andrade. Acho, porém, que o movimento, que representou ação
paralela ao desenvolvimento das ideias de transformação política que nos conduziram
à Revolução de 30, mas que deve ser visto, também, como conseqüência do surto de
renovação por que passou todo o mundo ocidental depois da guerra de 1914, foi muito
útil à nossa literatura. É verdade que não criou grandes coisas, mas policiou o
ambiente literário, dando possibilidades aos novos poetas e escritores de exprimirem
os anseios da era nova que se aproximava. [1]
- Do Modernismo
passamos a falar do caráter hermético de certas obras - músicas, poemas, quadros
- de alguns artistas contemporâneos, e a propósito assim se expressou o meu entrevistado:
Em primeiro lugar, de uma maneira geral, nego que tenha caráter hermético
a obra de arte moderna. Nego, por exemplo, que haja caráter hermético na poesia
do meu caro amigo Carlos Drummond de Andrade, na pintura de Portinari e na música
de Vila-Lobos. Evidentemente, é preciso uma certa iniciação para a compreensão dessas
obras. Mas para tudo na vida é preciso iniciação, inclusive para ler a cartilha…
O escritor não pode, em absoluto, sob pena de trair sua missão, modificar suas obras,
sob pretexto de agradar a quem quer que seja. Compete aos educadores, aos grupos
culturais, às autoridades de educação e cultura e também aos próprios escritores,
promover debates, conferências, irradiações, exposições, audições, para levar o
homem do povo até à compreensão e à fruição de todas as obras de arte, mesmo as
pretendidas herméticas. É preciso, por exemplo, no caso da pintura, explicar, aos
que não entendem, que a deformação existe em primeiro lugar na natureza, não sendo,
por conseguinte, invenção dos artistas modernos. E que os pintores mais acusados
disso, como Picasso e, entre nós, Portinari, não deformam sistematicamente, existindo
também neles, e até em alto grau, o senso da proporção e da harmonia, segundo a
medida clássica. De resto, se a natureza produz deformações plásticas, convém notar
que os monstruosos regimes políticos modernos como que se especializaram na criação
de aleijões, no sentido não só moral, mas também físico, o que fez com que Picasso
respondesse lepidamente ao embaixador nazista em Paris: “Quem pintou Guernica foram
vocês.” Ademais, a arte comporta um aspecto de transposição e transfiguração da
realidade objetiva que podemos ver em muitos exemplos clássicos. Na pintura posso
citar, de momento, Bosch, Grünewald, Leonardo e Greco, além de inúmeros outros,
que também deformaram. No que diz respeito ao hermetismo poético, na literatura
clássica, entre mil exemplos, temos Góngora e Sceve, que aos olhos de muitos parecem
ininteligíveis. E na música não falta quem ache herméticos os Quartetos de Beethoven.
- O poeta deixa
a cadeira preguiçosa em que estava recostado, vai até uma pequena estante e, apanhando
uma revista, continua:
Um grande escritor, que não é absolutamente hermético – André Gide
- escreveu há pouco, nesta revista, um artigo em que comenta a definição de Poesia
dada por Théodore de Banville (outro escritor nada obscuro), artigo que elucida
bem a questão. A definição de Banville é a seguinte: “A Poesia é um sortilégio que
consiste em despertar sensações com a ajuda de uma combinação de sons; essa feitiçaria,
graças à qual certas ideias nos são necessariamente comunicadas, de uma determinada
maneira, por palavras que, entretanto, não as exprimem.” A propósito, Gide cita
uns versos de Éluard, que ele confessa lhe produzirem o maior prazer e encantamento
devido somente à sonoridade e à combinação mágica dos vocábulos, acrescentando que
tal poesia escapa à compreensão da inteligência, à crítica e ao bom senso comum.6
Eu, pessoalmente - observa - devo frisar que não adoto de modo integral essa concepção
da poesia como simples combinação encantatória de sons, embora a compreenda e admita.
Acho, por conseguinte, absurdo que o poeta deixe de publicar uma poesia apenas por
não ser facilmente inteligível. No caso particular da poesia super-realista, que
é a mais visada, reconheço que a fórmula inicial, de espontaneidade, automatismo
e abandono, de fato transformou-se no fim num clichê intolerável de exploração do
subconsciente e do irracional, que entra em choque com uma concepção humanística
da vida. Entretanto, não considero esgotada a missão do super-realismo.
- Mas não conta
a poesia moderna com poucas possibilidades de descer às camadas populares, correndo
o risco de pairar sempre numa esfera muito limitada?
A causa do divórcio existente entre os poetas modernos e o grande público
reside principalmente no abandono da métrica de sílabas contadas no dedo e da rima.
A poesia era, até à renovação moderna, uma coisa essencialmente mnemônica. O leitor
gostava daquela cadência embaladora e das palavras rimando no fim ou no meio dos
versos. Ora, isso se deu durante séculos, ao passo que a reação moderna é de ontem.
A diferença é muito grande e o público não está ainda acostumado. E preciso que
os responsáveis, a começar pelos próprios escritores, iniciem os leitores e os críticos
nos mistérios e nas belezas desta nova Arte Poética, mostrando-lhes que, como na
música prevaleceu durante anos e anos o sistema tonal grego, depois substituído
pelo da
monodia cristã do canto gregoriano e, a seguir, pelo da atonalidade moderna, assim também pode existir um sistema poético grande e belo sem o recurso à rima. Quanto a mim, não condeno nem adoto, a priori, qualquer sistema de metrificação. O que condeno - como acima já disse - é a tentativa de voltar aos cânones acadêmicos, às formas peremptas de expressão. E gostaria, também, que não se esquecesse de que o poema pode valer independentemente dos resultados de interpretação lógica ou pragmática dos vocábulos que o compõem.
monodia cristã do canto gregoriano e, a seguir, pelo da atonalidade moderna, assim também pode existir um sistema poético grande e belo sem o recurso à rima. Quanto a mim, não condeno nem adoto, a priori, qualquer sistema de metrificação. O que condeno - como acima já disse - é a tentativa de voltar aos cânones acadêmicos, às formas peremptas de expressão. E gostaria, também, que não se esquecesse de que o poema pode valer independentemente dos resultados de interpretação lógica ou pragmática dos vocábulos que o compõem.
- Há, no Brasil, muitos poetas herméticos?
Não conheço nenhum. Como esta é uma crença mais ou menos generalizada,
pelo menos no que respeita a certos autores modernos, seria o caso de se escreverem,
sob o patrocínio das instituições literárias e das autoridades de educação e cultura,
estudos interpretativos dos livros desses poetas pretendidamente herméticos, como
em relação à obra de Góngora fez Dámaso Alonso e à de Mallarmé (que muitos consideram
obscuríssimo), E. Noulet.
- O poema-piada,
que certos poetas modernistas praticaram, não concorreu para o desprestígio da Poesia?
Meu amigo, o poema anedótico, que há tempos também me seduziu, é hoje
coisa inteiramente ultrapassada, superada e dever ser entendido como uma reação
dos poetas ao espírito burguês e à superstição da sagrada forma, que o Parnasianismo
nos legou.
- Outra crítica
que se faz comumente à poesia moderna é de que não há ninguém que saiba de cor um
desses poemas sem métrica nem rima, o que dá aos mais apressados a impressão de
que, assim como não se gravam na memória dos leitores, também não se gravarão na
história literária, sendo, por conseguinte, eminentemente perecíveis. Nesta ordem
de ideias, é fatal o confronto com a poesia romântica de fácil memorização, que
se recitava antigamente nas festinhas familiares, ao som da Dalila. Apresento
a questão a Murilo Mendes, que não se impressiona com ela e sem pestanejar responde:
A facilidade de memorização do poema é independente do seu valor literário.
Dante tem sete séculos. Que é que se sabe de Dante? Nel mezzo dei
cammin di nostra vita e Per me si va nella città dolente, isto é, o começo da
Divina Comédia e a passagem célebre do Inferno. Nada mais. O povo guardou
a Divina Comédia? Em absoluto. E essa história de que ninguém se recorda
dos poemas modernos não é verdadeira. A pedra no meio do caminho, de Carlos Drummond,
ficou tanto quanto o I-Juca-Pirama. O argumento da popularidade também não procede
como demonstração da superioridade dos poetas românticos sobre os modernos. Porque
precisamos não nos esquecer de que no século XIX a poesia virou um jogo de salão
como outro qualquer, ótimo para uma época sonolenta, ociosa, como a que então se
vivia. Ora, a poesia é uma coisa muito alta, profundamente ligada ao destino transcendente
do homem, é uma chave do conhecimento do universo, como a religião e a ciência,
e não pode, portanto, ser relegada à condição de um passatempo frívolo. [2]
Aliás, de modo geral. acho os nossos poetas românticos muito cacetes, e tirando
de suas obras as peças de antologia, que são, de fato, obras-primas, o resto é de
uma banalidade desanimadora. Quem os leu e decorou não tinha educação artística.
Logo, sua popularidade não prova nada contra a minha tese. E apenas a estima de
que gozou e ainda goza Castro Alves me parece justa porque o poeta baiano soube
ligar a sorte da sua poesia a uma grande causa humana, que foi a abolição da escravatura.
NOTAS
1. Na mesma carta, datada de 9-5-1965, pediu-me Murilo Mendes: “Gostaria
que você retificasse a frase de pág. 299 (da I.” edição de República das Letras):
‘É verdade que não criou grandes coisas.’ (Sobre o movimento modernista: acho o
contrário.)”
2. Em depoimento sobre A poesia e o nosso tempo, publicado no Suplemento
Dominical do Jornal do Brasil de 25/07/1959, Murilo voltou a afirmar: “Desde muitos
anos insisto em que a poesia é uma chave do conhecimento, como a ciência, a arte
ou a religião”. Nesse texto, aliás, são aprofundadas várias questões debatidas nesta
entrevista. Pode ele ser lido na in Presença da literatura brasileira, de Antonio
Cândido e José Aderaldo Castelo. São Paulo/Rio de Janeiro, Difel, 1975, vol. III,
pp 176-181.
Entrevista realizada por Homero Senna e publicada originalmente nas
revistas de O Jornal, de 09/12/1945, e
do Globo, de 01/04/1950, e republicada
no livro Republica das letras (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 3ed.
1996). Edição
preparada por Floriano Martins. Página ilustrada com obras de Paul Delvaux (Bélgica,
1897-1994), artista convidado da presente edição.
*****
Agulha Revista de Cultura
Número 123 | Novembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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