Todos os que, num país como o nosso, insistimos em realizar
o milagre de viver com o produto de uma atividade intelectual, sabemos, muito bem,
que não existe a menor relação de equidade, entre o miolo de cérebro que damos e
a insignificância do miolo de pão que recebemos.
Por que, então,
insistimos? Porque, embora reconhecendo e identificando o fato, não lhe ligamos
a importância que os outros lhe atribuem. O homem de pensamento compreende e sente,
em toda a sua amplitude, a grande verdade que se consubstancia no preceito bíblico:
“nem só de pão vive o homem”.
O pão, no sentido
que o burguês empresta ao vocábulo, nós o relegamos a plano bem secundário. Nossas
aspirações pairam bem mais alto: as coisas sublimes do espírito são as que principalmente
nos preocupam. Somos animados pela força indomável e incoercível de um ideal de
estética e de arte.
Por que, então,
estou assinalando o fato? Por que estou dizendo que a inteligência é moeda que,
na generalidade dos casos, não tem cotação no mercado? A resposta é simples. Devo
aludir à regra, para dar maior realce à exceção que vou referir: Cornélio Pires.
É curioso e chega,
mesmo, a ser estranho que, a esse respeito, as coisas, com ele, tenham acontecido
de maneira justamente inversa, ou, melhor, que, no seu caso, a exceção é que tenha
sido a regra. Com efeito, a sua verve de humorista consumado e irresistível tem-lhe
dado verdadeiras fortunas.
Tivesse Cornélio
reunido o que tem ganho com suas conferências e com seus livros e, certamente, não
faltaria muito para ser nababo. Poderia viver confortavelmente instalado em um palácio,
dispor de automóveis de classe, conhecer todas as facilidades que a opulência oferece.
Mas, nenhuma
dessas coisas ele possui e nada disso lhe é possível gozar. Reside numa casa pequenina
e modesta, numa rua descalça de um bairro longínquo - a Rua Amélia, na Lapa. É obrigado
a suportar, diariamente, a caturrice burocrática e os sacolejões impertinentes de
um bonde plebeu. É com o suor do próprio rosto, que tem de amassar, laboriosamente,
o pão de cada dia.
E as dezenas de contos de réis que lhe renderam
as palestras e os volumes de anedotas, para onde teriam ido? Aí, justamente, é que
está o aspecto paradoxal do caso Cornélio Pires. Tudo o que a literatura lhe deu,
a indústria e o comércio lhe tiraram.
Conseguiu, de
uma feita, reunir um capital apreciável. Quis, então, aburguesar-se; alimentou o
sonho de ficar rico… Decidiu-se, por isso, a abandonar suas atividades intelectuais
e a instalar uma olaria. Não demorou muito, porém, tudo deu para trás e não lhe
foi possível evitar o fracasso.
Outra vez, com
os “cobres” que lhe resultaram de uma série de conferências, abriu uma loja de curiosidades,
em que as bolsas de casca de tatu se misturavam às paisagens feitas com asas de
borboletas e aos cintos de couro de cobra. Logo mais, o estabelecimento foi por
água abaixo…
O Destino, como
veem, é sobremodo caprichoso para com ele e faz que lhe ocorra precisamente o contrário
do que aos outros acontece. Ganha dinheiro com as suas anedotas, para perdê-lo em
atividades que, regra geral, proporcionam lucros fabulosos aos que a elas se dedicam.
Assim relatada
a incoerência da sorte de Cornélio, deixem-me examinar uma faceta de sua personalidade.
Todos os que
tiveram oportunidade de ouvir uma de suas palestras, ou assistir a um dos espetáculos
que, de tempos a tempos, ele promove, sabem de quanto é capaz a sua veia de humorista.
Quando está em um palco, ou quando sobe ao estrado de um salão, Cornélio não admite
que alguém, na assistência, não escancare os maxilares, em gargalhadas intermináveis.
A coisa muda,
inteiramente, no entanto, se, entre os ouvintes, há alguém de sua família: trava-se-lhe
a língua, perde a graça, fica impossibilitado de emprestar à narrativa a vivacidade
necessária. Para que tudo corra bem, é preciso que os seus se abstenham de ouvi-lo.
Certa ocasião,
uma parenta insistiu: esperou que ele iniciasse a palestra e entrou, muito sorrateiramente,
no teatro. A plateia ria continuamente, sem parar, e o sucesso já estava assegurado,
quando os olhos de Cornélio, a dado momento, descobriram a cunhada, numa das últimas
filas…
Foi o bastante
para que ficasse totalmente inibido. Prosseguiu, é verdade, mas a muito custo, hesitando
e gaguejando, sem conseguir dar, ao que dizia, o colorido indispensável a produzir
o efeito desejado. Foi um insucesso completo.
Acrescente-se:
na intimidade ou entre amigos, Cornélio Pires, o homem que mais tem feito rir o
Brasil, fica todo sisudo, todo compenetrado, todo soturno e é incapaz de dizer uma
piada que preste. E anote-se, ainda: nasceu em Tietê, uma pequena cidade do interior
paulista e “não se lembra”, muito ao certo, quantos anos já tem, sinal evidente
de que esses anos já devem ser contados por várias dezenas…
Faz muitos dias
que ando à procura de Cornélio Pires, a ver se dele obtenho uma entrevista, quando,
afinal, o acaso vem em meu auxílio e encontro-o à porta de um café, em plena Rua
Líbero Badaró. Gordalhudo, o chapeirão enorme à cabeça, o cigarrão de palha espetado
entre os dentes, está muito pacatamente conversando com dois amigos.
Não perco a oportunidade.
Agarro-o pelo braço e, apesar de todas as suas banhas, acho forças para rebocá-lo
até uma das mesas. Obrigo-o a sentar-se e, antes mesmo que ele se refaça da surpresa,
intimo-o: Você vai me dar uma entrevista.
Eu?!
- Você mesmo,
sim. E deixe de olhar-me com esses olhos arregalados.
Mas… É que eu…
Não sei explicar-me por que você vem pedir-me uma entrevista… Sou uma espécie de
“corpo estranho”, no mundo literário e intelectual de São Paulo. Vivo muito quieto,
no meu cantinho, recolhido à minha insignificância… Sinceramente, isso até me comove…
- Não é preciso.
Quero é a entrevista.
Mas, deixe ao
menos que me refaça da surpresa. Quando você me agarrou, à porta, até pensei que
ia ser sequestrado. Com perdão da palavra, julguei que estava sendo vítima de um
“gangster”. E agora você me fulmina, à queima-roupa, com o pedido de uma entrevista.
É emoção muito forte… Fiquei assustado…
O garçom aproxima-se.
Pedimos café. E enquanto saboreamos a rubiácea, formulo a primeira interrogação:
Quando você começou?
Quando comecei
o quê?
- Quando começou
a escrever?
Muito criança.
Deixe dizer a coisa desde o princípio. Como sabe, nasci na roça. Ainda garoto, amanhecia
nos fandangos, assistindo a “cururus” e “cateretês”. Gostava imenso dessas danças
e atribuo isso a uma questão de atavismo.
- Atavismo?!
Ou coisa parecida.
O “cururu” e o “cateretê” são de origem indígena e é bem possível que já fossem
dançados Pelos meus décimo terceiro e décimo quarto avós, isto é, por Piquerobi
e Tibiriçá.
Tira um pedaço
de fumo do bolso, escolhe uma palha e va preparar outro cigarro, quando surpreende
uma certa incredulidade nos meus olhos.
Você está duvidando,
hein? Pois embora isso pareça uma boa mentira, a verdade é que descendo daqueles
dois caciques. Já estudei muito bem o caso e cheguei a essa conclusão. Ainda lhe
mostrarei a minha árvore genealógica que, aliás, é uma verdadeira complicação internacional.
Enrola o cigarro,
acende-o, tira uma baforada e continua:
Uma complicação
tremenda, que eu mesmo ainda não pude entender. Engraçado é que o sangue português
que tenho nas veias, pois descendo de Antônio Rodrigues e João Ramalho que, dizem
por aí, naufragaram em 1502 e deram à costa de São Vicente - sempre me atraiu, também,
para os “viras” e os fados. Por seu turno, o galho castelhano me deixou inclinação
especial para os trocadilhos. Do holandês, me ficou uma tendência para o fumo, a
cerveja e a genebra…
- Mas, você não
bebe…
- Já bebi.
Faz uns vinte e dois anos que me descartei da “água que passarinho não bebe”… E
não me aparteie muito, que senão eu perco o fio da meada. Do lado escocês - os Drumond
- não cheguei a herdar nem mesmo a sovinice. Dos meus antepassados belgas, fiquei
com a bonacheironice moleirona. Dos franceses - Gurgel e Missel - recebi uma parcelazinha
de espírito e uma sombra insignificantíssima de cortesia…
- E em razão
de tudo isso?
Você bem vê que
eu poderia ser um escritor internacional. Mas, resolvi fazer-me exclusivamente brasileiro,
como rabiscador de folhas impressas, a que, com muito boa vontade, há quem dê o
nome de livro.
- Ainda não disse
quando começou.
Eu ainda era
um rapazola, quase um fedelho. E foi levado por uma paixonite, que comecei. Assim,
comecei como todos começam, nessas circunstâncias: “poetando”. Depois de muito ensaiar,
consegui que, num domingo, “O Tietê”, semanáriozinho de minha terra natal, estampasse,
em meio a um quadradinho de vinhetas, a minha “obra-prima”.
- A obra-prima?
Iniciava-se com
esta quadra:
“Por que será,
querida minha Alice,
que quanto mais
procuro te deixar,
mais, no teu
rosto, estampa-se a meiguice,
para melhor,
assim, me cativar?”
Faz uma pausa
e acrescenta:
Fiquei acordado,
até madrugada, à espera de que pusessem o jornal por baixo da porta. Ao topar com
o soneto na primeira página, senti alguma coisa que nem pode ser descrita. Mas,
pouco durou a minha satisfação. Logo à noite, encontrei, dentro de um envelope que
atiraram na sala de visita, um soneto que começava assim:
Por que será,
Cornélio, amigo meu, que quanto
mais procuro
te querer, mais te afiguras tipo de
sandeu, para
melhor, assim, me aborrecer?
E em mais uma
quadra e dois tercetos, um pedagogo despeitado alinhou coisas que me amarguraram
as horas de alguns dias.
- Mas, você continuou.
Claríssimo. Não
me escarmentei e acabei criando o “meu gênero”, os sonetos caipiras, que tanto revoltaram,
mais tarde. esse meu grande amigo e imortal puritano do verso, que foi Vicente de
Carvalho. Ele achava que eu estava cometendo um crime de lesa-nobreza, contra a
soneto… A propósito, devo acrescentar que foi ainda em Tietê que escrevi os primeiros
desses sonetos. Um “amigo” conseguiu furtar alguns deles e remeteu-os para “O Malho”,
visando surpreender-me com uma daquelas troças da “caixa” dessa revista.
- O resultado?
O feitiço virou
contra o feiticeiro. Eu, inocente, nem sabia da surpresa que ia ter. Foi isso num
dezembro. Um dia, vieram perguntar-me se já vira o “Almanaque do Malho”. Respondi
que não. “Traz quatro sonetos de você, em página especial! - disseram-me. Saí correndo,
fui à livraria da cidade, pedi o tal almanaque… Lá estavam os meus versos! Foi um
deslumbramento! E, dessa vez, não recebi qualquer paródia…
- O seu primeiro
livro, como nasceu?
Certa vez, minha
tia, dona Belisária Ribeiro, viúva do grande filólogo Júlio Ribeiro, resolveu trazer-me
para S. Paulo, a ver se conseguia fazer-me estudar. Mas, a veia poética não me deixava…
Tia Belisária tinha uma casa de pensão, à Rua da Quitanda, nº 11 e aí sustentava
uma ninhada de sobrinhos, pobres como ela e que queriam estudar. E como os quartos
fossem ocupados pelos pensionistas que pagavam, nós, a bem dizer, morávamos no corredor,
onde, todas as noites, enfileirávamos nossas camas. Para escrever - temendo ser
ridicularizado - fechava-me no banheiro.
- No banheiro?!
Exatamente. E
foi ali que, um dia, compus um soneto caipira, ao qual deve ser atribuída a culpa
de ter me torado escritor. É aquele que tem o nome de Ideal do caboclo:
Ai, seu moço,
eu só quiria, prá minha filicidade,
um bão fandango
por dia
e um pala de
qualidade.
Pórva, espingarda
e cutia,
um facão fala-verdade,
e na viola de
harmunia,
pra matá minha
sodade.
Um rancho na
bêra dágua,
vara de anzó,
pôca mágua,
pinga boa e bão
café.
Fumo forte de
sobejo;
pra cumpretá
meu desejo,
cavalo bão e
muié… “
Mostrei o soneto
ao Simões Pinto que, então, dirigia a “Farpa”, uma revista do tipo da “Kosmos”.
Ele pediu-me os versos e, dias depois, publicou-os em página especial. Foi então
que, num encontro casual com meu primo, o boníssimo e grande Amadeu Amaral, dele
recebi, com um abraço, felicitações que muito me lisonjearam: “Muito bem! Você descobriu
um filão a explorar e que está inteiramente abandonado. Continue: escreva um livro…
“
- Veio, então,
o livro?
Tomei conta do
banheiro e, dez dias depois, entreguei à Livraria Magalhães os originais de meu
primeiro livro - Musa caipira - dedicado a meus pais e ao Amadeu.
A verdade é que a coisa saiu muito aquém de meus desejos: a capa era um borrão de
tintas, à guisa de tricromia, com um caipira barbado empunhando uma viola; no alto
das páginas, puseram vinhetas com mulheres nuas, em desacordo com a proverbial pudicícia
do caboclo. Apesar de tudo isso e mesmo assim…
- Mesmo assim?
Fiquei encantado!
Ao te-lo em mãos o primeiro exemplar, fiquei a namorá-lo, uma porção de tempo… Sim
senhor! O caipirinha de Tietê que, seis meses antes, escrevia “cuando”, estava com
um livro publicado! No alvoroço daqueles dias, ingenuamente audacioso, mandei exemplares
do livreco a Sílvio Romero, a João Ribeiro, a Leite Vasconcelos, a Carolina Michaelis,
aos jornais e às revistas. Uma noite, metido na roupa dos grandes dias, fui à redação
do Correio Paulistano, levar um volume ao Amadeu…
- Ele, então?…
Quando viu o
livreco, não pode disfarçar a surpresa. Olhou-me, paternalmente. E com aquele jeitão
que lhe era tão característico, não se fez de rogado para passar-me uma descompostura:
“Você está maluco! Não vê que livro não se faz assim, do pé para a mão?” Encabulado,
muito timidamente, arrisquei: “Mas, você me disse que escrevesse um livro… “ A resposta
não se fez esperar: “Mas, um livro, para ser publicado, tem de ser trabalhado, polido,
durante meses, durante anos, com paciência e cuidado!… Enfim, vamos ver “isso” aí…
“ Leu o primeiro soneto e sorriu. Leu o segundo e aprovou-o, com gestos de cabeça.
Leu o terceiro e não pode conter o seu aplauso: “Muito bem! Mas, podia ser melhor,
se você não fosse desleixado como é… “
- E os outros?
Que outros?
- Sílvio Romero…
Recebi, pouco
depois, uma carta do grande mestre. Vibrei intensamente ao ler aquelas palavras,
que ainda hoje não me saem da cabeça: “Vossa Senhoria saiu-se admiravelmente bem,
pois o gênero que cultiva, muito ao contrário do que geralmente se pensa, é cheio
de grandes dificuldades.” João Ribeiro, a seguir, manifestava sua opinião, sobremodo
lisonjeira para mim. Vieram as citações na revista da Academia Brasileira de Letras.
Vieram cartas de Portugal, vieram as opiniões de nossos acadêmicos… Comecei, assim,
a minha carreira.
Estaca. Fica
meio indeciso. É ainda hesitante que continua:
Tenho uma confissão
a fazer… Não sei se devo dizer…
- Que confissão
é essa?
É o diabo a gente
botar os podres na rua… Em todo o caso, como quero penitenciar-me, devo dizer, aqui,
num parêntesis, que sou culpado de todos os erros, sobre brasileirismos, que existem
no dicionário de Cândido de Figueiredo.
- Como é isso?
É que o velho
filólogo me escreveu umas dez cartas, juntando listas de vocábulos, pedindo definições
e rogando que eu perdoasse “as impertinências de um velho ignorante das coisas do
Brasil”.
- Você respondeu
errado…
Não é bem assim.
Por desleixo e por preguiça, não respondi a nem uma dessas cartas.
- Qual a tiragem
alcançada pela Musa caipira?
O livreiro disse
que a edição foi de mil exemplares. Mas, francamente, até hoje tenho a impressão
de que eles se multiplicaram, como os pães de Jesus. Os editores, às vezes, também
são milagrosos… Mais tarde juntei outros trabalhos com os que figuravam na Musa e saíram
cinco mil Cenas e paisagens de minha terra.
- Que é que você
acha, atualmente, de Musa caipira?
A pergunta é
difícil… Deixe pensar um pouco. Quer saber de uma coisa? O que acho desse livro
é que foi o primeiro no gênero.
- Que achou das
primeiras críticas?
Tive a impressão
de que os críticos todos, inclusive o Duque Estrada e o Medeiros e Albuquerque,
estavam protegendo, com muita generosidade, um caipirinha ignorante. De todas as
críticas, a que mais me impressionou, pela sua sinceridade, foi a que se continha
numa observação que me fez o sáhib dinamarquês professor Alexandre Humel. Sob a
ação do “in vino veritas”, disse-me ele, um dia: “Corrrnélio Pirres. Você é muito
inteligente, mas você é muito ignorrante!…”
Sobre O monturo?
Devo confessar
que meu espírito estava bastante influenciado por Guerra Junqueiro, quando escrevi
esse poemeto, em que dei voz a objetos atirados ao lixo: a pena de um juiz, o tinteiro
de um poeta, o sapato do rico, o chinelo do operário, o travesseiro da barregã,
um caco de espelho… Para o desfecho, fiz que um velho cão endeusasse o monturo,
por transformar-se em chuva de água puríssima, em flor e em fruto e, ainda, por
ser o “monte santo que procuro, para saciar minha fome”… A fome dele, cão, é evidente.
- Você trabalhou
na imprensa…
João Lúcio Brandão,
ótimo romancista, modesto como todos os mineiros, inexplicàvelmente pouco conhecido
em nosso país, foi que me lançou no jornalismo, como repórter de “O Comércio de
São Paulo”. Eu ensaiava, então, os meus primeiros passos… Amadeu Amaral foi o meu
anjo tutelar…
- Foi quem fez
que você escrevesse o seu primeiro livro…
E foi quem me
fez escrever alguns outros. A propósito, é bom referir que foi graças aos seus estímulos
que escrevi meu primeiro volume de contos regionais - Quem conta um
conto… Eu estava nessa pinturesca cidade do interior paulista, que é Itapira,
quando, uma vez, li no “Estadinho” - edição vespertina que então publicava “O Estado
de S. Paulo” - uma página intitulada “Entre um café e um cigarro”. Tratava-se de
coisa regionalista, assinada por “Antônio Branco” e dedicada a mim. Não me foi difícil
perceber, aí, o dedo de Amadeu e comecei a escrever contos regionais.
- Nasceu, então,
Quem conta um conto…
É verdade. Vieram,
depois, as Conversas ao pé do fogo. Depois, dei a ler a Amadeu os originais de Joaquim Bentinho,
O queima-campo. Ele gostou e crismou o livro, isto é, mudou-lhe o nome para Estrambóticas
aventuras de Joaquim Bentinho. Não deixa de ser interessante o que aconteceu
com esse volume. Boêmio e sempre precisando de dinheiro - justamente por não ligar
ao tal - ofereci-o à Companhia Melhoramentos por quatro contos de réis. Foi recusado.
Ofereci-o por dois contos de réis e baixei para um… Não quiseram. Fui à Imprensa
Metodista e consegui que imprimissem, fiado, uma primeira edição de três mil exemplares.
Isso queria dizer que, dentro de noventa dias, eu deveria pagar quatro contos e
duzentos mil réis à empresa. Pois o livreco saiu numa sexta-feira e na terça da
semana seguinte eu pagava a dívida e vendia os direitos por dez contos de réis.
Atualmente, sua tiragem anda aí pelos quarenta mil exemplares.
Faz quase uma
hora que estamos conversando, em frente ao quadrilátero da mesinha. O garçom já
nos olha um tanto significativamente, de vez em vez… Já chegou a perguntar se quereríamos
mais café; esbarrou, porém, com a recusa de Cornélio.
Acho que já é
tempo de a gente ir levantando o acampamento. O homem já está olhando de esguelha
para o nosso lado… - adverte o Cornélio.
Deixamos o café
e tomamos pela Rua Libero Badaró.
Você não ignora
que eu sempre fui muito preguiçoso… - diz Cornélio,
que vem andando, muito lerdamente, ao meu lado. - Foi por isso que achei cacete
dizer em dez páginas o que poderia dizer em algumas frases. Aí o motivo por que
comecei a escrever livros de anedotas e, ultimamente, fiz adaptações ao “meu feitio”.
Era tão “pau” ter de escrever um conto inteirinho!.
- Quantos livros
você já publicou?
Dezenove.
- Qual você acha
o melhor?
Nenhum.
- A tiragem total?
Os editores,
nós sabemos muito bem, são mestres em milagres de multiplicação… Creio não errar,
porém, calculando em mais ou menos um milhão de exemplares. Daí para fora.
- Ao que atribui
o sucesso que tem alcançado?
É muito fácil
de explicar: ao fato de não escrever para letrados, num país de iletrados. Escrevo
para o povo e o povo sabe apreciar os meus trabalhos. Também sei que muita gente
começou lendo as minhas borracheiras e evoluiu para melhores livros. Ao menos essa
utilidade tem os meus trabalhos.
- Sofreu influência
de algum autor?
Influência acentuada,
creio que não. Sou, no Brasil, o escritor que menos tem lido…
- Como prefere
escrever?
Não tenho caligrafia,
isto é, tenho uma letra horrível Para evitar possíveis greves de linotipistas, quando
me resolvo a escrever um livro, trato, logo, de comprar uma máquina de escrever.
Assim que se esgota o dinheiro do livro, vendo a máquina. Como vê, a máquina, dessa
forma, presta-me dois serviços: um quando estou fazendo o livro; outro, quando os
“cobres” encurtam… Posso acrescentar que, além dessa, levo outra grande vantagem
sobre os datilógrafos: eles escrevem com dez dedos e eu com um só.
- A que horas
sente melhor disposição para escrever?
Deixei o álcool
há vinte e dois anos. No tempo em que bebia, era sempre à noite e com umas quatro
ou cinco garrafas de vinho nas proximidades, que eu escrevia. Hoje, prefiro escrever
durante a manhã, fumando uma porção de cigarros de palha. Quando começam a chamar-me
para o almoço, é que sinto melhor disposição para produzir.
- Faz rascunho…
Não. Nunca fiz.
Creio que é por isso que sinto acanhamento de tudo que escrevo…
- Precisa de
ambiente, para escrever?
Qualquer ambiente
me serve.
- Que é que você
acha que um livro deve reunir, para alcançar êxito?
Para alcançar
êxito comercial, bem entendido, deve ser escrito em linguagem simples, sem rebuscamentos
de vocábulos, sem ostentações eruditas e em períodos e capítulos bem curtos.
- Estamos já
na Praça do Patriarca, quando pergunto: Quais os autores que você prefere?
Os que mais me
impressionaram, dos poucos que tenho lido, foram Júlio Ribeiro, Zola, Antônio Nobre,
Mark Twain, Alberto Costa e Bastos Tigre. Agora e conquanto isso nada tenha com
a pergunta que você acaba de fazer, quero dizer uma coisa. Você perguntou, quando
íamos passando em frente ao Clube Comercial, qual de meus livros acho melhor. Respondi
secamente: nenhum. Mas, não dei as razões… Quer saber? Meus livros não prestam,
porque nunca releio o que escrevo e a todos eu os fiz, no máximo, em quinze dias
cada um…
- Os livros que
tem em projeto?
Estou começando
a escrever um volume de anedotas, que terá o título de Prosa fiada,
mas será vendido à vista. Completando um total de vinte livros, promoverei a minha
auto-consagração, oferecendo-me um banquete. Os amigos e admiradores serão convidados,
para me verem comer.
Faz uma pausa.
É com um brilho estranho no olhar que me diz:
Peixoto, a minha
melhor obra eu nunca poderei publicá-la! É produzida durante o sono, em sonhos maravilhosos.
Se eu pudesse escrever, quando estou dormindo!…
- Você tem ganho
muito dinheiro com livros?
Alguma coisa.
A verdade é que tenho vivido do meu cérebro, com os meus livros e com as minhas
conferências. É preciso acrescentar que, apesar de humorísticas, essas conferências
são verdadeiros estudos de nosso folclore.
- Já foi tipógrafo…
Já fui tanta
coisa! Tipógrafo, caixeiro de sírio, oleiro, plantador de algodão, comerciante,
industrial, revisor de jornais, repórter. Fui feitor da Limpeza Pública, a acompanhar
varredores desde as quatro da manhã até as seis da tarde, por cinco mil réis diários…
Fui mestre-escola, fui professor de ginástica…
- Professor de
ginástica?!
Não precisa admirar-se
tanto. Fui professor de ginástica, sim. Houve uma ocasião em que eu estava desempregado.
Pedi uma colocação a um amigo. Ele estava de cima, na política… E como eu tivesse
urgência em colocar-me e como não houvesse outra coisa, assim de momento, para dar-me,
fui nomeado professor de ginástica de uma escola do interior.
- Como você se
arranjou? Você sabe ginástica?
Não era preciso
saber. Era preciso ensinar.
- E você ensinou?
Não tenho muita
certeza, não. Em todo caso, posso dizer-lhe que tive as melhores intenções…
- Que mais você
foi?
Cinematografista.
Fiz dois filmes sobre o Brasil e perdi dinheiro nessa brincadeira. Agora, sou inventor…
- Você é inventor?!
Exatamente. Inventor,
sim. Haverá alguma coisa demais nisso?
- Que é que você
inventou?
Um cantil, a
que dei o nome de “Decantil C. P.”. É de formato anatômico e provido de um filtro
que torna potável qualquer água, mesmo que seja de enxurrada. Já tenho a patente
nacional e já requeri patente em outros países.
- Você é o tipo
do sujeito engraçado!…
Ele olha-me de
frente. E é sério - é paradoxalmente sério que diz:
Tenho vivido
do humorismo, é real. Mas, francamente, acho que sou o tipo do sujeito sem graça!…
Entrevista conduzida
por José Benedito Silveira Peixoto em data não indicada (antes de 1950) e publicada
em seu livro Falam os escritores (vol.
1, 2ed. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1971). Edição preparada
por Floriano Martins. Página ilustrada com obras de Paul Delvaux (Bélgica, 1897-1994),
artista convidado da presente edição.
*****
Agulha Revista de Cultura
Número 123 | Novembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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