[ DEZ POEMAS
]
O CADERNO SURREALISTA DE
IBÁN
1
É no baixo curso dos ventos
a primeira morte, quando os
afogados crescem suas asas
mas não despertam, tendo saído
a gravar limões com a inscrição
de um nome. E lemos: ibán
—
enquanto os membros caem
com a força das águas, enquanto
os celeiros se enchem de música.
Perguntaremos se somos de fato
este intervalo corrompido
e descobriremos o avesso do corpo,
onde é possível existir através
de outras mãos que não estas, sangrando
sobre os líquidos do armazém.
Afinal, que diriam os espíritos
criadores? Mete-se a carne na
raiz dos nomes? São eles
próprios esta trilha magnética?
Que paisagens ardem no espelho
quando agito seus conteúdos?
Que mortes anunciam logo
nas primeiras sílabas?
2
As dormideiras
cobriam-se nos sons vegetais,
reunidas no interior do musgo,
postas no árduo dever de urdir a colina,
seus braços pronunciados nas substâncias da terra
onde os ruídos e os favos copulavam
ao modo de uma linguagem elementar.
Era aquele teorema tudo que no coração
enterrava-se vivo — a palavra, ainda acesa,
estalava nos dentes.
O dia parecia não poder levantar-se
dos buracos nas árvores mais que poucos metros
— sua luz arrefecida, contendo-se nos nós —,
como se uma pequena divindade, do exato volume
dos pólens, nascesse ou morresse àquela hora,
como se o fantasma ferido fosse
a dança contínua à outra margem do rio.
Talvez oculta entre as dormideiras e os favos,
a flauta envolvesse nas ervas o seu pulmão;
talvez se fizesse encher o ar de brancas mariposas;
talvez dormisse o mais triste homem
o mais tenro sono.
3
Sabia-se do coração
posto na pedra posta no rio,
e das mulheres deitadas
nos panos de sangue — da pluma negra
que esperavam
para se tornarem extremas.
A noite abria-se em várias idades
e ajuntava os símbolos no centro.
Enquanto fora chovia, os incêndios
dialogavam numa força do pátio.
O nome da estrela ardia sobre a casa.
A água mandava os vapores
a um espaço da noite. As mãos alcançavam
o nome. Chamava-se Eleanor.
Quatro semanas vibrou o terreiro até
que a hora silenciosa se instalasse.
Pôs sobre o chão os besouros e a água dividida,
os seixos,
e repartiu-se entre os buracos,
puramente invariável — como o fazem
as coisas em silêncio.
Seria necessária uma vida inteira
para medir os pormenores daquela raiz.
Que teorias lancinavam em seus olhos!
Sabia-se que ao sexto pardal fechava-se o dia
e pousava aos colos um lamento.
Era-se, então, visitado, dia após dia,
ao fechamento do dia,
e as folhas petrificavam-se.
Aquilo era como a luz de um símbolo
atravessando uma casa. Um sinônimo da vida
— interminavelmente este pomar,
sem as luzes no alto.
Quantas cidades dormem
sobre este peito convertido em pássaro?
Basta a primeira metade
de um instante cego, relampeando,
e já as senhoras se põem a barganhar maçãs
com os meninos afogados do pântano
de Nossa Senhora da Conceição.
Quantas cidades, digo, quantas cidades
dentro das cidades
dentro deste sonho aproximado,
por onde caminha-se, tomado pelas serpentinas,
tendo-se comido uma parte do céu
desprendida do céu?
Uma vez mais as luminárias descem ao inferno.
Com um punhado de lábios,
costura-se todo o corpo, subverte-se-o
com sua própria verdade.
Escutas o chão?
Estes mortos que não calam
cultivaram em seu tempo
grandes hortas taciturnas.
Mas como falam, agora! Como esbracejam!
Suas cabeças inclinadas sobre os peixes;
suas substâncias erguidas, transformando-se;
a extensão e o branco de seus espaços
diz que é preciso anunciá-los
como uma luz fragmentada ou um nome
enterrado, líquido, como o caminho
aos mares suspensos.
Estão cingidos pelo único membro das águas,
para além do arco de qualquer seta,
para além do raio de qualquer olhar.
Flutuam. Inaniquiláveis.
5
p/
Herberto Helder
Sobe a noite entreposta aos vaga-lumes,
entregue aos abismos. Quarto de joia
queimando sobre o mármore exaltado,
quando o mergulhador encontra a mão sobre
o sangue, boiando em penas leves, e o homem
entra na cabeça, subterrâneo, como se
partisse o fio da madrugada.
A cabeça prolonga-se até as luzes.
O homem toca o centro da boca.
No centro está o silêncio, o branco das substâncias.
No centro está o homem, colidindo com o centro
e tocando-me nas imagens, por onde escorremos
até a púrpura isolada na ilha da Madeira.
Ardiam-lhe a pedra e a pedra sobre a idade.
Os rochedos menores, amava-os com a erva acurada.
Sobre a cabeça
estava a cabeça — e a gangorra, tornada
amarela, onde de um certo ponto assistíamos
aos seres do ar baloiçando.
Aproximavam-se e tornavam-se pequenos,
ora mais perto, ora invisíveis — apenas supostos.
Havia uma hora em que era possível tocá-los,
estar ao mesmo nível, tombar em seu ritmo
de tombo, supostos e exatamente aéreos,
pronunciados nos tufões.
Estávamos para além do ar de uma noite ordinária,
suspensos e entregues na raiz do Funchal,
dinamitados até o espírito.
Não saberia dizer com que palavra dava
de comer às lâmpadas ou que aroma dizia
para chamar os besouros.
Sei que os relógios não nos encontravam.
Passava ali o anjo respiratório e não reconhecia
nossos nomes engolfados sob a árvore.
Eu observava o olho cravado na face do homem,
enquanto as lacraias dormiam em seu interior
vulcânico. Pudesse, eu adivinharia quantos dedos
tinha dançando em suas têmperas.
As paredes mugiam ao longe.
Sabíamos dos muros e de sua demora.
O instante tornava-se eterno
— imensamente, salvava-me.
6
• Fácil seria planar sobre • as várias
cordas da cidade, a suspender seus astros nos extremos da luz, atravessadas
desde a cabeça aos pontos onde primeiro se faz urdir a noite • as sagrações da
hortaliça de inverno • ou a oferta de um frio misericordioso • este frio
entristecido nos estômagos, fazendo-os transparente • Fácil seria alçar um
verbo livre, agudo o suficiente, capaz de anular a dureza destes muros enterrados
• ou uma pausa, tão gravíssima e planetária, que arrebentasse o trigal dos
cárceres, tendo dito-lhes com que assemelha-se o amor • Fácil seria, no ano
mais incomum, trocar o hábito das roupas pelo arbítrio das plumas • um tanto de
repouso sobre estas pedras arteriais • arquipélago último de vida, onde somos
batizados pelo Sol com um nome silvestre • Fácil, muito fácil seria, por um
instante mais, ter este arco aceso sobre a mágica dos filhos • deixá-los sobre
o rio, com grandes favos de algodão ao centro • ensinar às raízes o motivo da
água • assistir-lhes entrarem no rio • dividirem os gomos • apalmarem o algodão
• tocá-las sob um espaço da água e ver da concha abrir-se o adulto, com sua
vida mineral • Fácil, demasiadamente fácil, tendo-se posto o corpo e seus
pastos suspensos à esquerda do sol •
Criança adormecida em meus cálculos,
fixarei teu nome numa concha isolada.
Ensinarei a ti o manual do fogo, das chuvas.
Ajuntarei os animais para que os toque.
Guardarei tua voz numa adaga de cristal.
Desmembrarei teus sons e converterei
o fruto em símbolo e palavra — em linfa.
Plantarei uma flor audaz sob teus lençóis.
Cultivarei tuas mãos num jardim suspenso.
Direi às criaturas ela
dorme, porque dormes.
Cobrirei de luz as manhãs, para que nasças.
Criança minha, feita de semente e sonho,
porei o saber das árvores em teu coração.
8
À sombra do jardim a estátua se levanta.
O escuro de uma semana pousa sobre as abelhas.
Tudo no pátio é mais líquido porque sagrado.
Passa o Mirábolo com seus animais luminosos,
Passa com a leveza dos astros,
movendo a sombra na pedra da sombra,
ardendo como arde uma consciência.
As coisas fundem-se na atenção branca de um
corpo vazio, enquanto os espelhos rotacionam
seus reflexos projetados sobre as coisas sobre o
corpo sobre a mesa sobre o vazio.
Ó nuvens como móbiles no céu desvairado!
O que impedirá a nuvem de ser nuvem?
Sei que a água parte em curtos trechos de voz.
Sei que se conjuga com as vespas, com a noite.
Conjuga-se com a morte. Sei que há uma ilha
suspensa sobre a água, posta acima do mapa.
Sei que espera ser encontrada
— pelos ventos, pelos deuses, pelas mulheres.
A claridade dos peixes cintila no barco.
Dançam os sapatos mas o corpo já não há.
Minha sorte atirada a teus amores lancinantes,
meu pensamento jogado entre os meridianos
do teu sexo.
Tudo é mais sagrado neste momento.
9
E
os grãos de areia do deserto
Giram
desnorteados.”
Rumi
Vêm os peregrinos
descendo o deserto,
como há mil anos
os peregrinos desciam o deserto.
E o deserto é esta mão
aberta, coberta de grãos.
E não é a mão de deus,
talhada nos oceanos.
À noite, as tendas cintilam
contra os metais no ar.
Nos relógios, é a claridade
tudo quanto se move.
Que dizem estas formas,
pronunciadas na areia?
Os meninos têm o cheiro
das laranjas porque saem
a noite para roubar laranjas.
E não as encontrando,
tornam-se enxame e furor.
Tornam-se punhais.
Por isso deitam fogo
à tenda e sequestram a
noite. Porque têm fome.
As águas repousam
no fundo da duna.
Do tapete saltam os
dromedários.
Mercadores sonham.
Escorpiões dançam.
O dia é consumido
num vagão de ópio,
a caminho das estrelas.
10
Tenho-te aqui como um brinco alucinante
ou um guarda-roupa muito antigo.
Tapeçaria virgem repousando no ar.
Futuro degrau dos amantes — sanguíneo.
Sou tua barba exausta
— esticada até o céu pelos ofícios da adaga,
atingida na idade com a temperatura,
a palavra e a substância da criança atmosférica.
Última esperança posta à prova dos animais:
este novelo atravessado desde a antiguidade,
esta mão convertida em agulha, indicando o sul
nos mapas giratórios.
O século nos parte ao meio. Silencioso.
Por que não haverias de jantar comigo aquela
noite, quando já não tínhamos um único plano
de escape, quando a última salvação
eram as pontes de sargaço?
Recolher o espólio dos amores é preciso.
Afundar o restante — cavalos, rotas, ciclones,
cidades inteiras erguidas sobre a claridade
de um nome. Um estremecimento.
É hora. Os rouxinóis mudam de hemisfério.
Uma sombra cai nos quintais, liberada pelos
incensos. Tenho-te agora na vertigem do alpendre,
tornado paisagem interior da paisagem
— um espasmo contínuo, uma lembrança arenosa
e todo o fogo arderá em tua memória
esta noite.
[ TRÊS
PERGUNTAS ]
FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade
essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra
à tua criação?
LR | De maneira indissociável. É preciso
derrubar a farsa do poeta de ocasião, isso não existe. A poesia é, acima de
tudo, vivência. Acima, inclusive, dos livros de poesia, que são uma
consequência, ou, antes, um produto dessa vivência levada aos extremos da
experimentação e da fruição. Assim, uma vez tendo feito da minha própria vida
um imenso e desregrado laboratório onde tudo observo, experimento e transformo,
valores como o AMOR e a LIBERDADE assumem uma posição vital: o AMOR à vida,
este “um só possível de prazer”, como diz o poeta e amigo Thiago E; vida no
sentido amplo, cósmico, búdico, que envolve em sua membrana extática todos os
seres sencientes e compreende sua importância no TODO que é UM SÓ. E esta vida
não é possível sem a verdadeira LIBERDADE, uma liberdade que vai muito além de
fatores externos, econômicos, financeiros – uma liberdade que só é possível
àquele que entende que o mundo e seus fenômenos estão à sua disposição para se
encherem de sentido. Falo de uma liberdade criativa, experimental, antônima do
medo de errar e até mesmo do medo de morrer. O medo, aliás, é o único fator
que, quando alimentado, é capaz de destruir os três componentes dessa tríade.
FM | Dentro e fora do país, entre vivos e
mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas
comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação
artística?
LR | As culturas dos povos originários – ou
indígenas, como preferir –, por ser uma verdadeira aula de como retratar com beleza e simplicidade (valores tão caros à poesia) os mistérios que permeiam
o homem, o mundo e a vida, além do misticismo dos pajés, que para mim tem uma
potência poética imensurável por estar intrinsecamente ligada à floresta e seus
habitantes. Na música, impossível não citar o nome do (também poeta) Jim
Morrison. Sua afinidade com o xamanismo e sua forma de fazer música ligada
diretamente à poesia influenciam bastante, principalmente, o modo como trabalho
o ritmo dos meus textos, sempre pensados para serem falados com acompanhamento
de tambores, guitarra, sintetizadores, ou o que mais produzir som e êxtase. Na
poesia, finalmente, poderia me estender falando de dezenas de poetas que têm
influência direta ou indireta na minha criação, mas me limitarei a dois, ambos
grandes amigos: Kilito Trindade, poeta de verve performática poderosíssima, da
poesia falada, proferida com fervor, que assim como o Jim Morrison, tem
influência direta na forma como penso ritmo e modo de falar poesia – mas que
vai muito além e me ensina sobre a vida e sobre o grande laboratório de
sentidos que ela é, de forma pessoal, olho no olho. Aliás, esse termo
“laboratório”, que usei ao me referir à vida, é coisa dele, e eu tomo
emprestado. Por fim, o querido amigo e grande poeta Demetrios Galvão, que me
acolheu desde o início e me deu boas lições de poesia, ensinando a importância
e a força das imagens e a beleza de sugerir mais do que inferir. É importante
dizer que Demetrios foi quem me apresentou a poesia surrealista, tendo ele
mesmo grande afinidade com a escrita onírica.
FM | Tenho percebido que, sobretudo em
poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que
é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto
no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de
um movimento. O que observas a este respeito?
LR | Apesar de grandes inconveniências no
mercado do livro, como o fechamento de livrarias, o encarecimento do papel, das
gráficas, etc., penso que estamos vivendo um bom tempo na poesia brasileira,
pelo menos no âmbito da criação literária, com o surgimento de poetas de grande
potencial inventivo. À parte o eixo RJ-SP, onde me parece saturado de
escritores que, via de regra, ainda não superaram a poética dos marginais e dos
beatniks – feitas, claro, as devidas ressalvas, pois também há nesse eixo
grandes poetas –, em todo o país é evidente a formação de vozes poéticas
bastante plurais reinventando-se em busca do novo. Alguns já atingiram a
maturidade dessa voz. Outros se mostram bem encaminhados neste rumo (e aqui me
incluo, ainda em meio à busca). Quanto à existência de um movimento, não sei
bem se um dia voltaremos a ter algum, como houve em décadas e séculos passados.
No entanto, não há como saber. Além disso, sou temporário demais para fazer uma
projeção tão longa no futuro. O que penso é que, se por um lado não há a
existência de um movimento, por outro, há inúmeros coletivos surgindo todos os
dias. Tais coletivos são responsáveis por reunir poetas (e demais artistas),
promover acontecimentos como feiras literárias, saraus, lançamentos, editar
revistas de arte e literatura, manter sites e periódicos on-line voltados para
esse fim, etc., tudo isso a partir da união, da colaboração e do junto-andar de
pessoas que criam e fruem a criação. Sem falar na internet, que possibilita
certa proximidade entre poetas de diferentes regiões. Então pode até não haver
um movimento literário distinto acontecendo
no país, mas há sem dúvidas um movimento não-estilístico, geral, de poetas
conectados entre si, pessoalmente ou não, em favor da continuidade do fazer e
dos fazeres poéticos.
[FOLHA DE
VIDA]
Lucas Rolim (Piauí, 1995). Poeta,
tradutor e editor independente. Publicou Os Cantos de Eleanor (2017), Terrário (2017)
e O Caderno Surrealista de Ibán (2018) em edições artesanais
através do selo editorial Kizumba Edições, além do livro O Mirábolo (2017),
pela Editora Moinhos. É membro do coletivo Acrobata.
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: Enrique
de Santiago (Chile, 1961)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 126 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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