[ DEZ POEMAS ]
OS
GESTOS INCISIVOS
1
Como quem parte em duas metades uma maçã,
serenamente
eu te peço:
adormece
nos meus olhos.
Pois seus passos atestam a clareza
e o que
há de mais sutil
em
meus trajetos mais sombrios.
E por isso te peço,
tal como se
os ventos se fizessem flor:
adormece
nos meus olhos.
2
Coloco-me diante da luz que acaricia seus cabelos
e me busco
noturnamente
em
todos os seus estiletes.
Levantando-se de seu prêmio,
eu te vejo
caminhar livre
com
a leveza dos alfinetes.
Surpreendo-te,
pois é
preciso.
A calma de nossos delitos
é a prova
de que merecemos nosso encontro.
3
Minhas mãos que em outra carne se dissolvem
quando
tocam a música do vinho,
brilham.
O que fazer com os sons todos,
que se
delineiam no obscuro abrigo dos lábios?
Daqui os vejo abertos:
vertem a
substância iluminada
que
compõe os crimes passionais.
4
Se te estremeço ao primeiro toque,
a minha mão
toda se inunda,
submerge
inteira no seu corpo,
a
fonte escondida das noites.
Tal como a labareda que se acalma,
assim como
as águas que se enfurecem,
rogo:
atravessa-me
o canto e a morte.
Não há nada maior do que nascer.
O vinho de seus cabelos se estende
e toca seus
lábios de rapina.
Sua boca preserva a altura de um cálice
onde os
dedos se dilapidam.
Em seu gesto,
a
velocidade das serpentes que retomam seu caminho.
A boca,
jóia abaixo
da noite,
negocia
com o infinito e seus segredos.
Ouço o balido dos incêndios.
Preparo-me para saudar a sombra dos olhos.
6
Sombras e lagos,
toda
uma natureza se ergue sobre seus olhos,
que
dardejam as casas.
Os raios dormem nas extensões de sua sombra
e você
sonha com a mão que me fere os lábios.
Sua forma clara penteia-se aos olhos da esfinge.
Seus dedos tingem o sabre com um tom negro.
Os móveis todos estremecem com seu passo alto de nascente,
esfaqueando
os dilúvios.
Seu suspiro é uma estrela que gira sem órbita,
um pêndulo
de água sobre todas as coisas.
7
O mito dos amores terrestres
não está em nós para
causar o riso.
As oscilações que presencio me fazem atravessar o céu.
Para adornar a febre com seu corpo,
entre uma parábola de
flores,
eu levanto e
pouso a mão da névoa
sobre
sua boca de lírio ardente.
Um pequeno pássaro sobrevoa um sol maculado de voragens,
astro sem qualquer piedade
que repousa
abaixo dos seios.
8
O que dizer então quando seus braços
compõem
a música de fundo?
As canções começam de sua carícia,
e
os bichos olham para tudo
como
se tudo fosse eternidade.
As casas abandonaram-se ao sangue,
e
os frutos enfim são colhidos
na
hora propícia dos massacres.
O que dizer:
começou
a beleza de você repleta,
como
as primaveras.
Olha com olhos caridosos minha face,
com
os olhos de vontade
e
de ouro estremecido.
Caminho pelos desertos sob o inverno
enquanto
minha oração recobra a garganta.
São vermelhas as lágrimas do punhal.
Todas as cartas que escrevo
Todas as cartas que escrevo
desdobram-se
no tempo.
E então digo:
a
flor não murcha no crepúsculo.
As espirais jamais cessam
quando
relâmpago nos conduz.
10
Quis ouvir sua voz ao fundo dos portos
e apenas o arrepio
do
pescoço ao ouvido,
tradução surda do espanto que se instaura,
se fez delinear ao longo da vontade.
Que mão soturna toca agora o seu rosto?
Leva contigo meu sopro,
e então uma roseira
nasce sob o
lento beijo desmaiado.
Qualquer coisa de extraordinário
não se entenderá pelo pensamento.
Ou estar contigo ou não ser –
nada retorna –
não há técnica
perfeita para falar às rosas.
Mergulha,
perde a nuvem que te
alentava:
agora
te vejo deitada
e estou aos
seus pés.
[ TRÊS
PERGUNTAS ]
FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial
do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?
EF | Já não é possível para mim pensar a
vida, o trajeto que percorro, sem a busca que tenho feito pela chave destes
três segredos. Nesse sentido, não é possível também pensar criação senão como
consequência desta mesma busca. O que importa é sempre a aventura.
FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos,
independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os
motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?
EF | Não costumo pensar muito em termos de
criação artística. Para mim, a criação é consequência da leitura e vivência com
diversas obras, mas não só. Não falaria portanto em termos de afinidades ou
influências, mas sim de autores que moldaram minha maneira de pensar e agir no
mundo. Os primeiros choques provêm da leitura de Lautréamont e Baudelaire. As
palavras de virulência, aliadas às de amor, definiram meu pensar e agir. É a
partir deles que se dá o desdobramento para autores que travam relações muito
particulares com a tríade mencionada acima. O terceiro choque veio com a
leitura de Manoel de Barros e seu manancial inesgotável de imagens: a infância.
Nele é possível encontrar a contundência de quem identifica a infância com a
verdadeira vida, como disse Breton no Segundo Manifesto:
O
espírito que mergulha no surrealismo revive com exaltação a melhor parte de sua
infância. Para ele é um pouco como a certeza de quem, a ponto de morrer afogado,
repassa em menos de um minuto todo o insuperável de sua vida. Dirão que é muito
animador. Mas não faço questão de animar quem me diz isto. Das recordações
de infância e de algumas outras, vem um sentimento de não abarcado, e pois, de desencaminhado,
que considero o mais fecundo que existe. Talvez seja a infância que mais se aproxima
da “vida verdadeira”. [tradução
de Luiz Forbes, ed. Brasiliense, 1985]
Posso dizer, portanto, que meus olhos se
abriram para o Surrealismo com a leitura assídua de Manoel de Barros. Através
dele pude compreender ainda mais Baudelaire, Rimbaud e Lautréamont. Depois,
como que naturalmente, vieram leituras de autores que atuam ou atuaram
assiduamente dentro do Surrealismo, e também de autores que em maior ou menor
grau apresentam afinidades com o mesmo.
FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas
nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto
na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido
de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento.
O que observas a este respeito?
EF | O limbo formado com o estabelecimento
de cânones é imenso. Há vozes ainda ocultas em nosso horizonte poético. Vejamos
o enorme número de poetas no Panorama do Movimento Simbolista, de Andrade
Muricy. Sabemos quantos deles são efetivamente lidos hoje em dia, em termos
acadêmicos. Poderíamos falar também da classificação em “gerações”: cada uma
delas tem seu número “oficial” de poetas, e outros tantos que permanecem
“ocultados”. Há, por fim, o caso do Surrealismo no Brasil.
Podemos elencar alguns fatores que, penso
eu, auxiliam a entender alguns pontos deste contexto: parte de minha formação,
por exemplo, se deu através da leitura da Agulha
Revista de Cultura quando ainda aliada ao Jornal de Poesia e da convivência com Claudio Willer. Acredito que
seja também o caso de muitos poetas abarcados por este escopo “a partir dos
anos 1980”. E isso continua ocorrendo até hoje.
Portanto, não acredito em “renascimento”,
mas em continuidade. Notamos esses aspectos da lírica a partir dos anos 80
porque deixamos de aceitar apenas o que está aí, estabelecido pelo crivo
acadêmico/formalista/oficial, e passamos a procurar o que se revolve nas
sombras, às margens. Para mim, a recuperação de vozes dissidentes está em
consonância com uma renovação na lírica, proporcionada também pelas editoras
independentes que tomaram para si a tarefa de acolher autores que, como
apontado na pergunta, têm como característica decisiva a solidariedade.
[FOLHA DE VIDA]
Elvio Fernandes Gonçalves Júnior (São
Paulo, 1992). Poeta. Autor de O coração
em si (2017) e Chave menor
(2018).
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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: Enrique
de Santiago (Chile, 1961)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 126 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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