segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

1987 CARLOS ORFEU



[ DEZ POEMAS ]

[ELIDIR A IMAGEM]

elidir a imagem
moldura
sépia
crua 

na estante
sobre as janelas dos olhos
a imobilidade dos rostos

e o inapreensível grito
das coisas insubstituíveis



[NAS PAREDES]

nas paredes
em despudor de silêncio
a litania do invisível

no cio do limo
a sinfonia do mofo
lavra
o
segredo
da
rachadura


[AZULEJOS BRANCOS]

azulejos brancos
cardumes de passos
                                anoitecidos

no canto da varanda
por onde formigas
brotam como fachos negros

e canibalizam o feto da chuva
na casca da cigarra morta


[O MAR LATEJA MURMÚRIOS]

o mar lateja murmúrios
depósitos de séculos
sereias de harpas poluídas
garrafas pet de escamas

espermas bóiam filhos invisíveis

um fêmur de cavalo parece leve
no ritmo azul martelando na areia
como fosse um cão de escumas e algas

o mar morde artelhos e o mergulho do atleta
e ainda sofre o abuso das gaivotas
bicando seu dorso selvagem 


[SEDE É COMO UM RUGIDO DE RIO]

sede é como um rugido de rio
encontrando a margem da garganta

sede é peixe uterino
no oceano do corpo

visto por fora
despido no espelho
visível deserto de assombros 

sede é a possibilidade de romper
o naufrágio e adejar na superfície


[MAÇÃS]

maçãs
na mesa


:apodrecem
os olhos
do corpo

dentes
do fruto


abrem rastros
na pele       
turva


abandonada
na estrutura
óssea da cadeira


[FECHAR O MUNDO]

fechar o mundo
com os chacais do suspiro

abraçar o instante
fugidio peixe
do anzol dos braços

o escuro ilumina
as cicatrizes
avessas ao lodo
acenam ao cais dos girassóis
quando todos os retratos
murcham-se
desenraizados do tempo

e o possível
devir
anuncia-se
natimorto 


[A CARNE SE TATEIA]

a carne se tateia
como se outro corpo

escorresse solto no gesto
dos olhos entre os dedos

a carne se tateia
e falta um antebraço

e falta uma perna
falta o olho direito

a carne se tateia
e falta motivo para ficar

em pé e falta a cabeça
para tocar as nuvens


[FULGE A CARNE NA RUBRA ÂNSIA]

fulge a carne na rubra ânsia
canta a densidade dos detritos

as mínimas coisas que regressam
latejam no clamor de um nome


[FALAM TUAS SOMBRAS]

falam tuas sombras
vestígios e passagens

falam tuas larvas
salivas sêmens
musgos e diálogos

na floração do conflito
na senda e noite da carne

acendas tua fala



[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

CO | O poema é um cavalo galopando nos campos sanguíneos da carne. Como disse Octavio Paz: “o surrealismo é uma atitude do espírito humano.” A liberrdade de imaginar e podar e ser podado pela carne do poema, é umas das sedes que embeveço no surrealismo.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

CO | Paul Celan, Herberto Helder, Orides Fontela, Heidegger e Alejandra Pizarnik, esses são alguns nomes que fazem parte de mim.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

CO | Os poetas contemporâneos buscam a pele de uma voz própria. Há densidades diversas na nossa poesia contemporânea brasileira.  Nomes potentes e imensos.


 [ FOLHA DE VIDA ]

Carlos Orfeu, nasceu em Queimados, 1987. É devoto das artes, sobretudo, da literatura e poesia. Publica em blogs pessoais, revistas e blogs literários. O poeta em 2017 lançou o livro Invisíveis cotidianos, pela Editora Literacidade.


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: Enrique de Santiago (Chile, 1961)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 126 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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