segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

1986 ANNA APOLINÁRIO


[ DEZ POEMAS ]

SELVÁTICA

Morder a polpa da palavra
Violentar o verbo

Açoite
Até que o rubro escoe

Atingir o cerne
Com sabre, punhal

Lacerar o arco e a lira
Alvo metafísico

Colisão cáustica
Matilha sádica

Eu quero o aborto
Da aurora boreal


TALHO

salamandras no cio
arranham
as ancas de minha esquizoidia

línguas negras de argila
os hematomas são drusas
ultrametistas
verso violáceo metamorfoseado
na carne da Carmen de Godard

sal, suor, sangue, gritos
agora eu cheiro a feromônio de raflésia

eis o início de um grande amor:
carniça


SALMO

teu sexo escreve o evangelho de Sade
Mea vulva, mea vulva, mea maxima vulva”

sou uma oração suja
roçando tua nuca
rosário rebentado de volúpia

sou uma hóstia
em tua língua
ardo


DESÍGNIO

a beleza galopava aguda no meu sangue
dobrei os joelhos para ver
mulheres de Klimt
anjos de Breton

dois animais ganiam:
os punhos cerrados do amor


VÊNUS VULCÂNICA

medusa enforcada
o espelho estilhaçado pelo eterno retorno de Saturno

Atena e Aracne rasgam
abismos sanguíneos em meus abismos
afiam demônios

meu batom vermelho batizado com belladonna
pulsos seios púbis perfume de endorfinas ofídicas
pupilas dilatadas por metanfetaminas hálito de tequila e haxixe

nefelibata, calço os coturnos de Hilda visto seu casaco rosso
e macero cicutas com meu amante
frente ao fantasma asfixiado de Sylvia Plath


VORTÉX

Com audácia
manejar
os gumes da fala
em êxtase
no deserto da lauda
exaurir o sangue
signos em agudo auge
incansável navalha
na retina, exato entalhe

Tensionar a entranha
instaurar o arremate
dar de comer ao verbo
a própria carne
o corpo doado
à tudo o que for delírio
demolição
este talento obscuro
infernal júbilo
labuta e consumição


TEIA

Francesca Woodman desliza
por dentro das fotografias
com olhos aranhiços
a face sublime suicida
Francesca dança
nua
levita e tece
Penélope suspensa
espreita, espera
de súbito, o rapto
Francesca nos dilacera


MOSAICO

Serei sempre faca
que a poesia afia
faca serei
sempre faca
faca faca
afia afia
poesia
sempre faca
que a poesia afia

Uma faca só lâmina
palavra afiada
pela língua cabralina?
um açoite na fala
uma vertigem nas linhas
caligrafia febril
furiosa engenharia

Vênus, Pandora,
sacerdotisa e sibila
uníssonas
sou delas
febre prece cio
engatilhada
panteriça
felina ferina lírica

Macambira na garganta
labaredas, libélula
delirante esporão na goela

Eu sou a guelra
o arpão
o abismo e a selva
eu sou a peçonha
eu sou a seta
zarabatana que te acerta!


QUANDO RESPIRAS EU SINTO A IMENSIDÃO DO TEU SONHO DENTRO DE MIM

Teus pulmões estendem tapeçarias frementes em meus ouvidos.
Colossais fios em galope por todo meu corpo.
Indomável reluzente vestimenta de céu & trovão.
Minhas pálpebras estremecem:
o movimento das asas de um pássaro mágico dentro do labirinto.
Teu sonho é um sussurro de rústicos rubis molhando meus lábios.
Meneio meus cabelos:
salamandras dançam hipnotizadas
ao som de teus tambores.
Quando tua língua se move, desmesurada víbora,
e meus dedos escavam em busca da chave,
as mil portas do poema ardem,
minha faiscante raflésia.
Quando respiro eu traço um tremor de terra
na corola sangrenta do teu sonho.


UM HOMEM NU ESCOVA OS CABELOS DIANTE DO ESPELHO EXCITANDO-SE COM A REAÇÃO DE SEU ROSTO A CADA ESCOVADA

O espelho é um diabo à espreita,
a nudez inquieta do homem dentro da noite sigilosa.
O homem, este espectro, estrela vertiginosa,
portando uma máscara de carne, armadura voluptuosa
vascularizada em voracidade, terá alma?
Gana e vaidade, seus cabelos se dilatam em brutal tesão,
avançam contra a cara transtornada,
acetinadas ondas negras,
revoltas e lascivas crescendo e crescendo e crescendo.
O sexo intumesce, epifania narcísica,
as pálpebras estremecem, sucessão de arrepios,
distúrbios vasculares cerebrais periféricos,
lábios, mãos, dorso, pés, coxas, mamilos,
gravidade de pólvora, curto-circuito e incêndio,
dedos, testículos, dentro da caverna auricular,
com ou sem aura, colapso no sistema vestibular,
a pele delira, regurgita uma parelha de conflitos
e banha o chão com uma chuva de vertigens.


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

AA | Criação é sobretudo transfiguração, da experiência ardente alimentada pelo amor, mistério, beleza, o assombro existencial em si. Não creio que haja criação no vazio, sinto que o poema nasce do exercício de uma paixão vertiginosa e despudorada, da apreensão do movimento íntimo e secreto de todas as coisas viventes, deste modo, percebo que poesia, amor e liberdade entranham-se ao ato de criação, são intrínsecos, como partículas elementares geradoras de uma nova linguagem capaz de integrar homem e mundo, uma forma transgressora de conhecimento sobre o mundo. A vivência pulsante do poeta é a matéria para sua alquimia verbal, é neste ofício encantatório que me encontro, em perpétua epifania, deslumbre, subversão e revelação.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

AA | Disse Eduardo Milán: “Todo poeta vem de outro poeta, ou talvez de uma amálgama de poetas”, ou nesta antiquíssima inscrição: “Todos os livros são um só.” Acredito na magia e na força oculta que rege e une a criação artística em todas as suas expressões e tempos. Minha escrita se afina, se irmana e dialoga com a de vários outros poetas, sinto-me nutrida pelo mesmo fogo mágico que emana dos versos de Joyce Mansour, dentro de nossos livros crepitam símiles gritos ígneos, a mesma carne flambada ao sabor das obscenas vertigens. Com a poesia de Sylvia Plath sempre mantive conexão visceral, como se fôssemos raptoras do mesmo punhal de palavras, fêmeas em fusão de tempestades imagéticas, entranhamento onírico de assombros, bebo-a como um precioso vinho, de rara safra, terrivelmente belo que me causa os mais deliciosos delírios. Há também o sussurro lascivo e sacrílego de Bataille, o roçar de seus dedos famintos nos recônditos mais suculentos de minhas páginas. Os poetas portugueses, com sua lírica descomunal sempre incendiaram-me, a exemplo de Herberto Helder, Al Berto, Antonio Ramos Rosa, Luis Miguel Nava, Antonio José Forte, são todos poderosos demônios atiçando-me. Enquanto folheio Hilda, deslizo e deliro por suas teias de alta tensão erótica, tateando os volts de sua verve, impregnando minha pele de todo aquele vigoroso visgo. Entre os vivos, perturba-me a prosa selvagem e provocativa de Raduan Nassar, o cinema explosivo de Jodorowsky, os estudos audaciosos de Marina Abramovic, o verso repleto de delicadezas cintilantes de Marize Castro, a voracidade verde absinto em Iolanda Costa, os abalos sísmicos sensoriais advindos do piano hipnótico de Tori Amos, a guitarra pungente e a voz devastadora de PJ Harvey, e por fim, a ciência abissal e a flama convulsiva de um alquimista chamado Floriano Martins.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

AA |Alegro-me com esta crescente efervescência de jovens poetas, pela excelência dessa produção, partilho deste mergulho, mantenho diálogo com essas novas vozes, alimento o sentimento de admiração, amizade e empatia, e creio na renovação da lírica brasileira, no florescer de uma lírica afinada ao Surrealismo, calcada na exploração ousada de territórios e limites, na reinvenção do exercício poético em soberana alquimia, em busca da palavra incandescente criadora de novos mundos, linguagens, vidas, novas maneiras de amar.


[ FOLHA DE VIDA ]

ANNA APOLINÁRIO (Paraíba, 1986) é poeta, licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal da Paraíba, especialista em Língua, Linguagem e Literatura. Organizadora do Sarau Selváticas de autoria feminina (@sarauselvaticas), integrante do Sagaz Zine (@sagazzine) zine/junk journal virtual produzido por mulheres, integrante do elenco das Escritoras Suicidas. Estreou em 2010, com Solfejo de Eros (Câmara Brasileira de Jovens Escritores), em seguida vieram Mistrais (Prêmio Literário Augusto dos Anjos, Edições Funesc, 2014), Zarabatana (Editora Patuá, 2016) e Magmáticas Medusas(Editora Cintra/ARC Edições, 2018). Participou da antologia Um girassol nos teus cabelos: poemas para Marielle Franco (Quintal Edições/Mulherio das Letras, 2018) e da série As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira Volume 3 organizada por Rubens Jardim. Possui textos publicados em diversos sites e revistas literárias nacionais e estrangeiras. Sua obra Zarabatana é objeto de estudo do grupo de pesquisa do LES/UFPB/CCHLA (Laboratório de Estudos Semióticos).


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: Enrique de Santiago (Chile, 1961)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 126 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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