[ DEZ POEMAS ]
SELVÁTICA
Morder a polpa da palavra
Violentar o verbo
Açoite
Até que o rubro escoe
Atingir o cerne
Com sabre, punhal
Lacerar o arco e a lira
Alvo metafísico
Colisão cáustica
Matilha sádica
Eu quero o aborto
Da aurora boreal
TALHO
salamandras no cio
arranham
as ancas de minha esquizoidia
línguas negras de argila
os hematomas são drusas
ultrametistas
verso violáceo metamorfoseado
na carne da Carmen de Godard
sal, suor, sangue, gritos
agora eu cheiro a feromônio de raflésia
eis o início de um grande amor:
carniça
SALMO
teu
sexo escreve o evangelho de Sade
“Mea vulva, mea vulva, mea maxima vulva”
sou
uma oração suja
roçando
tua nuca
rosário
rebentado de volúpia
sou
uma hóstia
em
tua língua
ardo
DESÍGNIO
a beleza galopava aguda
no meu sangue
dobrei os joelhos para
ver
mulheres de Klimt
anjos de Breton
dois animais ganiam:
os punhos cerrados do
amor
VÊNUS VULCÂNICA
medusa enforcada
o espelho estilhaçado pelo eterno retorno de Saturno
Atena e Aracne rasgam
abismos sanguíneos em meus abismos
afiam demônios
meu batom vermelho batizado com belladonna
pulsos seios púbis perfume de endorfinas ofídicas
pupilas dilatadas por metanfetaminas hálito de tequila
e haxixe
nefelibata, calço os coturnos de Hilda visto seu casaco
rosso
e macero cicutas com meu amante
frente ao fantasma asfixiado de Sylvia Plath
Com audácia
manejar
os gumes da fala
em êxtase
no deserto da lauda
exaurir o sangue
signos em agudo auge
incansável navalha
na retina, exato entalhe
Tensionar a entranha
instaurar o arremate
dar de comer ao verbo
a própria carne
o corpo doado
à tudo o que for delírio
demolição
este talento obscuro
infernal júbilo
labuta e consumição
TEIA
Francesca Woodman desliza
por dentro das fotografias
com olhos aranhiços
a face sublime suicida
Francesca dança
nua
levita e tece
Penélope suspensa
espreita, espera
de súbito, o rapto
Francesca nos dilacera
MOSAICO
Serei sempre faca
que a poesia afia
faca serei
sempre faca
faca faca
afia afia
poesia
sempre faca
que a poesia afia
Uma faca só lâmina
palavra afiada
pela língua cabralina?
um açoite na fala
uma vertigem nas linhas
caligrafia febril
furiosa engenharia
Vênus, Pandora,
sacerdotisa e sibila
uníssonas
sou delas
febre prece cio
engatilhada
panteriça
felina ferina lírica
Macambira
na garganta
labaredas,
libélula
delirante
esporão na goela
Eu sou a guelra
o arpão
o abismo e a selva
eu sou a peçonha
eu sou a seta
zarabatana que te acerta!
QUANDO RESPIRAS EU SINTO A IMENSIDÃO
DO TEU SONHO DENTRO DE MIM
Teus pulmões estendem
tapeçarias frementes em meus ouvidos.
Colossais fios em
galope por todo meu corpo.
Indomável reluzente
vestimenta de céu & trovão.
Minhas pálpebras
estremecem:
o movimento das asas
de um pássaro mágico dentro do labirinto.
Teu sonho é um sussurro
de rústicos rubis molhando meus lábios.
Meneio meus cabelos:
salamandras dançam
hipnotizadas
ao som de teus tambores.
Quando tua língua
se move, desmesurada víbora,
e meus dedos escavam
em busca da chave,
as mil portas do
poema ardem,
minha faiscante raflésia.
Quando respiro eu
traço um tremor de terra
na corola sangrenta
do teu sonho.
UM HOMEM NU ESCOVA OS CABELOS
DIANTE DO ESPELHO EXCITANDO-SE COM A REAÇÃO DE SEU ROSTO A CADA ESCOVADA
O espelho é um diabo
à espreita,
a nudez inquieta
do homem dentro da noite sigilosa.
O homem, este espectro,
estrela vertiginosa,
portando uma máscara
de carne, armadura voluptuosa
vascularizada em
voracidade, terá alma?
Gana e vaidade, seus
cabelos se dilatam em brutal tesão,
avançam contra a
cara transtornada,
acetinadas ondas
negras,
revoltas e lascivas
crescendo e crescendo e crescendo.
O sexo intumesce,
epifania narcísica,
as pálpebras estremecem,
sucessão de arrepios,
distúrbios vasculares
cerebrais periféricos,
lábios, mãos, dorso,
pés, coxas, mamilos,
gravidade de pólvora,
curto-circuito e incêndio,
dedos, testículos,
dentro da caverna auricular,
com ou sem aura,
colapso no sistema vestibular,
a pele delira, regurgita
uma parelha de conflitos
e banha o chão com
uma chuva de vertigens.
[ TRÊS PERGUNTAS
]
FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial
do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?
AA | Criação é sobretudo transfiguração, da
experiência ardente alimentada pelo amor, mistério, beleza, o assombro existencial
em si. Não creio que haja criação no vazio, sinto que o poema nasce do exercício
de uma paixão vertiginosa e despudorada, da apreensão do movimento íntimo e secreto
de todas as coisas viventes, deste modo, percebo que poesia, amor e liberdade entranham-se
ao ato de criação, são intrínsecos, como partículas elementares geradoras de uma
nova linguagem capaz de integrar homem e mundo, uma forma transgressora de conhecimento
sobre o mundo. A vivência pulsante do poeta é a matéria para sua alquimia verbal,
é neste ofício encantatório que me encontro, em perpétua epifania, deslumbre, subversão
e revelação.
FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos,
independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os
motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?
AA | Disse Eduardo Milán: “Todo poeta vem de
outro poeta, ou talvez de uma amálgama de poetas”, ou nesta antiquíssima inscrição:
“Todos os livros são um só.” Acredito na magia e na força oculta que rege e une
a criação artística em todas as suas expressões e tempos. Minha escrita se afina,
se irmana e dialoga com a de vários outros poetas, sinto-me nutrida pelo mesmo fogo
mágico que emana dos versos de Joyce Mansour, dentro de nossos livros crepitam símiles
gritos ígneos, a mesma carne flambada ao sabor das obscenas vertigens. Com a poesia
de Sylvia Plath sempre mantive conexão visceral, como se fôssemos raptoras do mesmo
punhal de palavras, fêmeas em fusão de tempestades imagéticas, entranhamento onírico
de assombros, bebo-a como um precioso vinho, de rara safra, terrivelmente belo que
me causa os mais deliciosos delírios. Há também o sussurro lascivo e sacrílego de
Bataille, o roçar de seus dedos famintos nos recônditos mais suculentos de minhas
páginas. Os poetas portugueses, com sua lírica descomunal sempre incendiaram-me,
a exemplo de Herberto Helder, Al Berto, Antonio Ramos Rosa, Luis Miguel Nava, Antonio
José Forte, são todos poderosos demônios atiçando-me. Enquanto folheio Hilda, deslizo
e deliro por suas teias de alta tensão erótica, tateando os volts de sua verve,
impregnando minha pele de todo aquele vigoroso visgo. Entre os vivos, perturba-me
a prosa selvagem e provocativa de Raduan Nassar, o cinema explosivo de Jodorowsky,
os estudos audaciosos de Marina Abramovic, o verso repleto de delicadezas cintilantes
de Marize Castro, a voracidade verde absinto em Iolanda Costa, os abalos sísmicos
sensoriais advindos do piano hipnótico de Tori Amos, a guitarra pungente e a voz
devastadora de PJ Harvey, e por fim, a ciência abissal e a flama convulsiva de um
alquimista chamado Floriano Martins.
FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas
nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto
na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido
de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento.
O que observas a este respeito?
AA |Alegro-me com esta crescente efervescência
de jovens poetas, pela excelência dessa produção, partilho deste mergulho, mantenho
diálogo com essas novas vozes, alimento o sentimento de admiração, amizade e empatia,
e creio na renovação da lírica brasileira, no florescer de uma lírica afinada ao
Surrealismo, calcada na exploração ousada de territórios e limites, na reinvenção
do exercício poético em soberana alquimia, em busca da palavra incandescente criadora
de novos mundos, linguagens, vidas, novas maneiras de amar.
[ FOLHA DE VIDA ]
ANNA APOLINÁRIO (Paraíba,
1986) é poeta, licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal da Paraíba, especialista
em Língua, Linguagem e Literatura. Organizadora do Sarau Selváticas de autoria
feminina (@sarauselvaticas), integrante do Sagaz Zine (@sagazzine) zine/junk
journal virtual produzido por mulheres, integrante do elenco das Escritoras Suicidas.
Estreou em 2010, com Solfejo de Eros (Câmara Brasileira de Jovens Escritores),
em seguida vieram Mistrais (Prêmio Literário Augusto dos Anjos, Edições Funesc,
2014), Zarabatana (Editora Patuá, 2016) e Magmáticas Medusas(Editora
Cintra/ARC Edições, 2018). Participou da antologia Um girassol nos teus cabelos:
poemas para Marielle Franco (Quintal Edições/Mulherio das Letras, 2018) e da
série As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira Volume 3 organizada por
Rubens Jardim. Possui textos publicados em diversos sites e revistas literárias
nacionais e estrangeiras. Sua obra Zarabatana é objeto de estudo do grupo
de pesquisa do LES/UFPB/CCHLA (Laboratório de Estudos Semióticos).
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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: Enrique
de Santiago (Chile, 1961)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 126 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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